domingo, 10 de março de 2013

A propósito de Salvador Dalí e Luis Buñuel

Do Professor Jorge Vital Moreira (Professor Universitário -Ph.d- em Wisconsin) especialmente para o Setaro's Blog:

Tenho um amigo mexicano, que é artista plástico mas decidiu estudar Psicanálise. Recentemente me escreveu umas linhas para dialogar sobre o pintor espanhol surrealista Salvador Dali e a Psicanálise. Vou dar a este caro amigo um nome fictício, vou chamar-lhe de Orozco, para preservar-lhe a privacidade.

Quando estudei no México, Orozco era um jovem pintor que vivia impressionado com o comportamento e as pinturas de Salvador Dalí. Orozco também admirava os filmes do cineasta surrealista espanhol, Luis Buñuel, que vivia exilado no México, onde faleceu em 29 de julho de 1983. 

Uma semana depois da morte de Buñuel, a Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM),  onde eu estudava, decidiu homenagear, nesse momento, o cineasta, realizando uma amostra dos seus filmes. No final de cada exibição, um destacado crítico de cinema, fazia uma conferência aula sobre o filme da noite. Meu amigo e eu decidimos ver todos os filmes e assistir às aulas sobre os filmes da mostra. Durante este período, assistimos, pela primeira vez,  os filmes Un Perro Andaluz e La Edad de Oro, os dois primeiros que Luis Buñuel realizou. Neles contou com a ajuda do amigo Salvador Dalí.

Enquanto isso, Orozco e eu decidimos ler e discutir qualquer material que conseguíssemos sobre Buñuel, Dalí e a amizade entre os dois . Naquele tempo remoto, também desejávamos saber o que fosse possível sobre o movimento artístico espanhol de vanguarda e líamos os livros do poeta e dramaturgo, Federico García Lorca (grande amigo dos dois artistas) que foi assassinado pelas forças militares de Francisco Franco que tornou-se o ditador da Espanha. Como era de se esperar, estávamos deslumbrados por conhecer as pinturas de Dalí, os filmes de Luís Buñuel, a poesia  de Garcia Lorca e a arte de Pablo Picasso.  Durante esse período, íamos ao Museu de Antropologia para ver, ao lado dos quadros de Diego Rivera e Frida Kahlo, os quadros de Dalí e a exposição dos trabalhos da coleção particular de Pablo Picasso, intitulada “Os Picassos de Picasso”.  Dos filmes de Buñuel, o que mais nos impressionou, foi o que se intitulava El (O Alucinado).

El é o filme de Luis Buñuel que, de acordo ao conferencista da noite,  melhor refletia o domínio do diretor de todos os registros do melodrama. O roteiro, baseado no romance com o mesmo título da escritora espanhola exilada, Mercedes Pinto, se enfocava na história de Francisco Galván (Arturo de Córdoba) um jovem solteiro, devoto do catolicismo, de alto nível social e ainda virgem. Na Semana Santa, durante a cerimônia do lava-pés na igreja, o olhar de Francisco passeia pelos devotos até parar subitamente nos pés de Glória (Delia Garcés). A partir desse momento ele começa a se apaixonar por ela, procurando conquistá-la por todos os meios,  mesmo que ela já seja namorada de seu amigo, o engenheiro, Raul (Luis Beristáin). A paixão de Francisco que parece nascer dos ciúmes, não para de crescer e a crescente loucura paranoica de Francisco condicionará todo o seu comportamento subsequente.

Buñuel disse sobre o filme El: "quizá es la película dónde más he puesto yo, hay algo de mí en el protagonista", e expressou que era seu filme favorito. No México, se comentava que Buñuel era um homem muito ciumento. A mesma coisa disse a sua esposa, Jeanne Rucar, na sua biografia Memorias de una mujer sin piano.
O filme El continua sendo uma das primeiras obras primas da filmografia de Buñuel. O filme, pouco conhecido no Brasil, é muito conhecido e falado na França, na Argentina e outros países. O filme ficou ainda mais conhecido devido a que o famoso e celebrado Jacques Lacan, o psicanalista francês, amigo de Buñuel, exibia o filme para seus alunos como um exemplo claro de paranoia.

Neste filme, Buñuel mostra as gritantes alienações criadas nos indivíduos pela cultura ocidental e cristã dominante, tais como a religião, o patriarcalismo, o autoritarismo, o machismo, o feitichismo e o culto à propriedade privada. Cenas das igrejas, dos campanários, dos confessionários, dos ritos católicos são constantes e funcionais em todo o desenvolvimento do filme e a crença fascista na superioridade de Deus se destaca quando Francisco compara os seres humanos com os vermes e diz: "Eu gostaria de ser Deus para esmagá-los". Francisco, o personagem de Buñuel, me lembrava o personagem Porfírio Diaz do filme Terra em Transe de Glauber Rocha, um grande admirador da obra cinematográfica de Luis Buñuel.

 Uma das mais brilhantes sequências de cenas do filme começa quando Francisco entra no quarto de Gloria com uma corda, uma agulha, linha e uma lâmina de barbear, com o objetivo de costurar a vagina de Gloria para verificar se ela lhe é fiel. O filme, como era se esperar, mostra no delírio de Francisco as marcas  do surrealismo e do inconsciente freudiano que Buñuel expressava com maestria.

Foi nesse clima que o amigo Orozco e eu decidimos ler as autobiografias de Luis Buñuel e de Salvador Dalí. Assim, por falta de tempo, dividimos o trabalho entre os dois: meu amigo, Orozco, leria a autobiografia de Dalí e eu leria a autobiografia de Luis Buñuel. No final da leitura, eu resumiria a autobiografia de Buñuel para Orozco, e ele resumiria a autobiografia de Dalí para mim.

Lembro-me que Orozco gostou da história de Buñuel que lhe resumi. Mas ficou particularmente impressionado quando sintetizei o relato de Buñuel sobre os acontecimentos ligados  à  seca e a procissão para o santo padroeiro da sua cidade. O principal objetivo da procissão era pedir ao santo para que fizesse chover sobre as plantações das famílias que foram arrasadas pela falta de água. Assim, o pai de Buñuel e os vizinhos passaram uma semana caminhando todos os dias, sob um sol escaldante, pelas ruas da cidade, com o pesado andor sobre os ombros, rezando e pedindo ao santo padroeiro por dias de chuva, mas a chuva não chegava.

Depois de uma semana sem chuva, o pai e os vizinhos,  contrariados,  saíram de casa e caminharam novamente com o santo nos ombros. Quando estavam atravessando a ponte de um pequeno riacho (um riachinho), eles começaram a cantar em voz alta "Uno, dos, tres y el tiempo se acabó" ("Um, dois, três, o tempo se acabou"). Em seguida, jogaram  o santo e andor nas águas do riacho, dando um fim ao sofrimento daquela peregrinação irracional.

Logo depois, meu amigo Orozco,  narrou-me um fato da história de vida da Dalí que me congelou a voz na garganta. Esta é a narrativa: o pai de Dalí: se opôs ao romance do jovem artista com Gala e condenou a sua relação com os artistas surrealistas daquele momento, considerando-os (como grande parte do público), como personagens que tendiam à degeneração moral. A tensão entre Dalí e o pai foi escalando, culminando no enfrentamento pessoal. Depois da publicação, na imprensa, da inscrição que Dalí colocou no desenho “Sagrado Coração de Jesus”, que estava sendo exibido em Paris, o pai já não suportou. O desenho  exibido, incluía uma inscrição que dizia:
"Às vezes, eu cuspo no retrato da minha mãe para me divertir."

Indignado, o pai exigiu-lhe uma retratação pública. Dalí recusou e foi violentamente jogado para fora de casa em dezembro de 1929. Na sequencia seu pai o deserdou e proibiu-o de voltar à Caiaques, na Espanha.

Posteriormente, Dalí contou como, durante esse episódio, deu para o pai um preservativo (uma camisa de Venus) contendo o próprio esperma com as seguintes palavras: "Tome! Agora não te devo nada."

Recentemente, como já mencionei, Orozco escreveu-me lembrando-me daqueles dias no México e fez algumas perguntas. Que opinião tem os estadunidenses de Dalí?  Jorge, se você fosse o psicanalista de Dalí, que hipótese teria para analisar o comportamento dele, a sua relação com a esposa Gala e com Luis Buñuel? Que diagnóstico você faria para começar um  processo de tratamento psicanalítico  do Dalí?

Ainda que não seja psicanalista, as interessantes perguntas do meu amigo, motivou-me a refletir sobre algumas das questões que conectavam o comportamento de Dalí com a psicanálise.

Como muitos sabem, Salvador Dalí foi sempre um personagem escandaloso e polêmico em todos os lugares por onde andou e trabalhou. Quando morou e trabalhou nos EUA, ele continuou sendo uma poderosa fonte de escândalos.

No entanto,  não parece justo que os estadunidenses critiquem o comportamento de Dalí "por ter casado com Gala e manter relações sexuais extra matrimoniais que são conhecidas pelo nome de “ménage à trois". Eu não pratico, nem desejo praticar "ménage à trois", mas julgar Salvador Dalí e suas obras, bem como a sua relação com a Gala, através da lente ideológica e moralista do Puritanismo da mídia estadunidense, me parece errado e uma posição ilegítima. Por quê?

Porque, entre outras razões, as histórias sobre o caráter e o comportamento de Dalí foram transformados em mitos modernos. As diferentes versões dessa história de luta e separação do pai são exemplos da mitologia do personagem de Dalí. Eu relatei aqui uma versão da história, mas  já escutei outras versões que também parecem tão plausíveis quanto a que contei.

Eu, acredito que não é no nível moral, mas sim no nível político ideológico, onde Dalí pode ser julgado de forma mais objetiva e legitima. Por quê? Porque os fatos são inconfundíveis: Dalí era simpático ao regime de Hitler e um defensor do ditador espanhol Francisco Franco cujas forças militares assassinaram seu amigo, o poeta Federico García Lorca.

Salvador Dalí, em Nova York, em 1942, denunciou seu ex-amigo, o cineasta surrealista Luis Buñuel como comunista e ateu, o que levou Buñuel a ser despedido de sua posição no Museu de Arte Moderna de Nova York e, posteriormente, seu nome foi incluído na lista negra da indústria cinematográfica americana.

Por causa das suas declarações e posições políticas a favor dos regimes autoritários fascistas, Dalí foi expulso do movimento surrealista por André Breton (poeta francês, o líder do movimento) com o apoio de artistas surrealistas, como o poeta francês Louis Aragon e muitos outros.

Mas aqui deveria voltar às questões do amigo Orozco e resumir as minhas considerações: se eu fosse o psicanalista de Dalí, uma das minhas hipóteses para trabalhar com ele seria analisar a mente inconsciente do pintor surrealista. Conforme a teoria psicanalítica freudiana, poderíamos afirmar que Dalí não concluiu “as etapas de seu desenvolvimento psíquico sexual”, satisfatoriamente.

Dalí parece, mesmo adulto, estar aprisionado na fase fálica (complexo de Édipo) e precisa tornar-se consciente desse lado inconsciente, para se libertar. Com o fim de justificar a minha hipótese, farei uma pequena lista de quatro situações que me parecem exemplares para sustentá-la, a seguir: Salvador Dalí passou a vida repetindo a primitiva situação triangular formada pela relação entre sua mãe, seu pai e ele próprio. Do ponto de vista da teoria psicanalítica, Dalí esteve sempre dividido entre seu amor pela mãe e o ódio pelo pai. Aqui estão os quatro exemplos que evidenciariam a neurose de Dalí:

1    A constante luta de Dalí contra o pai que resultou na expulsão do pintor da casa dos progenitores. 2) Quando Dalí conheceu e começou a ter um caso com Gala, ela era a esposa de seu amigo, o poeta francês, Paul Éluard. 3) O cineasta surrealista e seu amigo, Luis Buñuel, rompeu a amizade com Dalí, devido à presença de Gala entre eles. 4) Ao longo de sua vida, Dalí nunca se afastou da concorrência gerada pela rivalidade da relação triangular entre pai, mãe e filho, permitindo ser parte constante do "ménage à trois" entre ele, a esposa Gala e a coleção de amantes que Gala teve.

       Ainda que a época denominada pós moderna do capitalismo tardio, seja, de acordo ao crítico marxista Fredric Jameson, contra a história, contra a memória e contra o inconsciente freudiano, os humanos, na minha opinião, ainda contaria com a ajuda das pinturas de Dalí, de Picasso, dos filmes de Buñuel, Hitchcock, dos livros do psicanalista Slajov Zizek e do educador Paulo Freire para continuar apostando na luta marxista pela libertação dos oprimidos contra a  exploração e a dominação imposta pelo sistema capitalista

Artigo publicado no Serato´s Blog (http://setarosblog.blogspot.com.br/)

A charge nossa de cada dia - Quinho


Marinheiro só

Ao narrar a trajetória errática de um ex-fuzileiro naval, Paul Thomas Anderson chega à maturidade em O Mestre, um filme complexo e difícil de rotular
 
por Antônio Xerxenesky
 
Pode parecer estranho, mas houve uma época em que o norte-americano Paul Thomas Anderson era considerado um cineasta experimental. Em Magnólia (1999), apresentou uma repentina chuva de sapos e botou o elenco inteiro para cantar, num momento dramático, uma canção pop de Aimee Mann. No seu trabalho seguinte, Embriagado de Amor (2002), desconstruiu a comédia romântica e fez o ator Adam Sandler ser perseguido por sombras. O resultado foi um filme bizarro, no qual o jogo de cores se revelava peça fundamental.
Após cinco anos de silêncio (Anderson não é nada prolífico), o diretor retornou com Sangue Negro (2007), obra que, perto das mencionadas, aparenta ser muito mais tradicional. A narrativa com ecos de Cidadão Kane presta homenagem à Hollywood antiga e ao cinema focado em atuações poderosas. Um longa incomum, especialmente pelo desfecho de violência catártica, mas sem muitas trucagens ou pirotecnias.
O Mestre, que entra agora em cartaz no Brasil, segue nesta linha: a busca por um trabalho sofisticado, elegante, capaz de nos recordar de que ainda existe inteligência em Hollywood. Desde o início da produção, a história foi alvo de controvérsia nos Estados Unidos por colocar em primeiro plano o surgimento de uma seita muito similar à cientologia, culto que tem como garoto-propaganda Tom Cruise. Tais questões extra-cinematográficas são irrelevantes, pois nada ajudam a decifrar o grande enigma que é o novo longa de P. T. Anderson.

Selvageria Imprevisível
O enredo gira em torno de Freddie,ex-soldado da Marinha interpretado por Joaquin Phoenix, que se desloca sem rumo pela vida, abandonando empregos e mulheres por motivos insondáveis. Acidentalmente, ele conhece um escritor e pensador chamado Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), que vem ganhando popularidade em certos meios por suas técnicas curiosas de terapia, nas quais busca traumas em vidas passadas. Uma relação de amizade – e de mestre e discípulo, apesar de Freddie nunca ler os escritos de Dodd – se forma entre os dois.
É muito fácil dizer que Lancaster é um charlatão e suas teorias não fazem sentido. Mais difícil é apontar se o personagem está ciente disso ou se acredita na sua obra. A ambiguidade é a marca central do roteiro e é visível também na figura de Freddie. Joaquin Phoenix oferece talvez a melhor performance de sua carreira, dedicando-se por completo a dar vida a uma figura da qual nunca sabemos o que esperar. Cada tique facial ou peculiaridade na fala parece indicar uma faceta ainda desconhecida. O ator é lembrado em Hollywood por ser difícil de lidar, e Anderson se vale disso, captando sua selvageria imprevisível. Em diversos momentos,Freddie lembra o “touro indomável” de Robert De Niro capturado por Martin Scorsese – por sinal, um clássico que Anderson homenageou de forma escancarada em Boogie Nights (1997).
Ainda que ele seja um diretor com apurado senso visual, O Mestre é acima de tudo um filme de atores, e as cenas se prolongam nas extensas conversas que permeiam o roteiro, deixando sobrar um silêncio ao mesmo tempo inútil e essencial. Diferentemente de Sangue Negro, aqui não se constrói um clímax e se avança num ritmo tão errático quanto o do protagonista. Apesar de todas as possíveis ligações freudianas (as recorrentes imagens de água são uma das muitas metáforas presentes), fica difícil extrair um significado definido dessa última obra, que é tanto a mais tradicional (em termos de direção) como a mais incomum, complexa de entender e rotular. Talvez isso seja o que chamam de maturidade.
 
Antônio Xerxenesky é autor do romance Areia nos Dentes e do volume de contos A Página Assombrada por Fantasmas.

Revista Bravo