quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O oráculo americano

O oráculo americano

DE SÃO PAULO


O escritor, ensaísta, roteirista e dramaturgo norte-americano Eugene Luther Gore Vidal morreu na madrugada de ontem, em casa, em Los Angeles (EUA), aos 86. Ele estava com pneumonia.

Autor de 25 romances, dois livros de memórias, oito peças de teatro e centenas de ensaios, Vidal alimentou com gosto a persona do intelectual público, midiático e ávido pela controvérsia.

Como escritor, dedicou-se sobretudo aos romances históricos e de costumes. No cinema, colaborou com roteiros de filmes como "Ben Hur" (1959). Mas foi no papel de ensaísta político que o autor construiu seu prestígio.

"Gore é um homem sem inconsciente", dizia o escritor italiano Italo Calvino, sobre a lucidez do intelectual.

São dele as mais perspicazes observações sobre o declínio do império americano, que Gore Vidal dizia "estar apodrecendo em ritmo fúnebre", sobretudo pela afeição ao militarismo.

Liderou críticas à política internacional norte-americana no período das guerras do Vietnã e do Iraque. Classificou o ex-presidente George W. Bush como "o homem mais estúpido dos Estados Unidos". Também criticou o tratamento dispensado por Israel aos palestinos.

Após o 11 de Setembro, acusou o governo dos EUA de levar os ataques "para dentro de casa", com diplomacia que considerava equivocada.
 
MONTAIGNE

Pela destreza com que aprofundava temas políticos e refletia sobre as transformações da sociedade no pós-guerra, foi chamado de "uma versão americana de Montaigne". Fazia jus à comparação escrevendo com propriedade, humor e finas provocações intelectuais.

De origem aristocrática e neto do senador Thomas P. Gore (1870-1949) -para quem lia na infância, dada a cegueira do avô-, candidatou-se duas vezes ao Congresso. Derrotado, voltou à trincheira da reflexão política.

"Vidal é um dos raros seres civilizados que restam no nosso mundo", sentenciou Paulo Francis, em artigo publicado na Folha em setembro de 1980.

Também se destacou pela militância sexual. Com o livro "A Cidade e o Pilar", de 1948, causou furor por narrar um romance entre dois homens.

Já em "Palimpsesto", contou ter se relacionado com mais de mil homens e mulheres até os 25 anos.
Mas, com o ex-executivo Howard Austen, morto em 2003, Gore Vidal manteve um relacionamento de 55 anos. O segredo da longevidade da relação, segundo ele, era nunca terem dormido juntos.
Doente, fez a última aparição em 2009, quando ganhou o National Book Awards.

Análise ensaios

Versátil, Gore Vidal passa à história como bom ensaísta


Premiado, escritor se via como sucessor de Edmund Wilson
 
MARIO CESAR CARVALHO
DE SÃO PAULO


Gore Vidal (1935-2012) foi escritor, dramaturgo, roteirista de cinema, político e jornalista, mas deve passar para a histórica como ensaísta.

É a parte menos perecível de sua obra, segundo a crítica americana.

Sua obsessão era interpretar o império americano, principalmente numa época em que a ideia de nação caminhava para o ofuscamento, de acordo com o escritor.

Não foi à toa que Vidal ganhou o National Book Awards, um dos principais prêmios norte-americanos, por "United States Essays 1952-1992", uma coletânea de 1.300 páginas e 140 textos jamais editada no Brasil.

A Segunda Guerra Mundial, da qual participara no Pacífico Sul, dera a Vidal o tema de seu primeiro romance ("Williwaw", 1946) e a chave para a sua interpretação dos Estados Unidos.

Em 2006, no ensaio "American Empire", ele sintetizou o que achava dos EUA: "Truman e amigos aprenderam e nunca esqueceram uma importante lição: é por meio da guerra e da militarização que nos tornamos prósperos com pleno emprego".

Harry Truman (1884-1972) foi presidente logo após a Segunda Guerra (1945-1953) e forjou a Guerra Fria -a divisão do mundo entre dois impérios: os EUA (capitalista) e a União Soviética (comunista)-, impulsionada por gastos militares crescentes.

Ele achava que Franklin Roosevelt (1882-1945), presidente entre 1933 e 1945, tinha provocado os japoneses a atacar Pearl Harbor com o objetivo de criar uma guerra e impulsionar a economia, como diz no documentário "Why We Fight" (Por que Nós Lutamos), de 2005. Com o ataque, em 1941, os EUA passam a investir pesadamente em armas e tornam-se dependentes dessa indústria para crescer.
Vidal dizia que nascia ali a nova perversão da democracia americana: cobrar muitos impostos dos civis e muito pouco das corporações.

Essa visão belicosa da história tem raízes familiares. O pai de Vidal era professor de aeronáutica da Academia de West Pont, a mais prestigiosa dos EUA, e o próprio escritor estudara engenharia aeronáutica na Universidade Harvard, em 1943.

Vidal não fazia segredo que fora em Harvard que havia forjado a sua visão da história. "Eu trabalho com ideias que formei em Harvard anos atrás. Eu não tenho uma ideia real desde que entrei nisso", disse, com um misto de sinceridade chocante e autopromoção calculada.

Nos ensaios, Vidal se via como um continuador de Edmund Wilson (1895-1972), um dos maiores ensaístas norte-americanos.

Era uma maneira nada sutil de se incluir entre os maiorais.

Atraso e feijoada despertaram ira do autor no Brasil
 
DE SÃO PAULO


Em março de 1987, Gore Vidal desembarcou no Brasil a convite da editora Companhia das Letras, da Unicamp e da Folha.

O escritor veio da Itália com seu companheiro, Howard Austen.
Para aceitar o convite, ele exigiu passagens de primeira classe, estadias em hotéis de luxo e festas de recepção.

Os incidentes ocorridos durante a visita de Vidal são narrados em dois divertidos textos que o editor Luiz Schwarcz publicou no blog da Companhia.

As confusões (e a ira do autor) começaram já no aeroporto, quando problemas de conexão no Rio atrasaram o desembarque em São Paulo em algumas horas.

Pouco depois, na entrevista coletiva no hotel Ca' D' Oro, Vidal irritou os jornalistas com seu costumeiro estilo mordaz. "Eu vim aqui como emissário secreto do FMI", ironizou à época.
Ele deu palestra na Folha no dia 23. Depois do evento, o então repórter do jornal Nelson Ascher enfureceu Vidal ao defini-lo como "o mestre das gags prontas".

Vidal também teve problemas com a culinária. Depois de experimentar uma feijoada pela primeira vez, numa recepção feita em um sítio, o escritor passou um bom tempo no banheiro.

Análise romances


Obra semeia dúvidas férteis sobre a história de um império
 
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA


A série que Gore Vidal produziu sob o título de "Narrativas do Império" é um desafio radical e inteligente aos lugares-comuns que marcam as referências à história dos EUA.
Ela é composta por sete volumes que cobrem a vida política e social do nascimento da nação até o fim do chamado "século americano", o 20.

Infelizmente, não alcançou o período posterior aos atentados de 11 de setembro de 2001 e à crise do "subprime", com suas consequências, quando se vivencia o declínio relativo do "império".

Em todos os livros ("Burr", "Lincoln", "1876", "Império", "Hollywood", "Washington, DC" e "A Era Dourada"), sobressaem seu ceticismo e senso crítico agudo -ambos fora da curva de entendimento que os próprios americanos têm de si mesmos.

Além de colocar em questão, saudavelmente, as presunções de grandeza e correção política da vida nacional americana, eles trazem ao leitor de qualquer nacionalidade um problema essencial da história: é possível recuperar a verdade do que ocorreu no passado e, caso não seja, como Vidal indicava, como escolher versões da história "mais verdadeiras"?

O que se depreende dessa leitura é que Vidal optou por releituras dos fatos que ampliassem ao máximo perguntas sobre o que é estabelecido como oficial, com o objetivo de despertar consciência.

Embora não tenha sido um historiador (foi basicamente um autodidata), Vidal fez muita pesquisa para escrever seus romances históricos e se engajou em combates com os profissionais da área em defesa de várias de suas muito controvertidas teses, como a de que o presidente Abraham Lincoln sofria de sífilis.

Apesar da disposição para o embate sobre a acuidade de seus relatos históricos (para qualquer tipo de embate, de fato), Vidal provavelmente pouco se importava com ela: o que lhe interessava era desafiar certezas estéreis e semear dúvidas férteis.
 
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA é editor da revista "Política Externa" e autor de "Correspondente Internacional"

Análise vida pública

Porta-voz da autocrítica americana, intelectual deplorava intervencionismo
 
ALEXANDRE VIDAL PORTO
ESPECIAL PARA A FOLHA


Gore Vidal tinha tudo para ser presidente dos Estados Unidos: ambição, carisma e contatos.
Desde criança, interessava-se por história e, durante a adolescência, lia regularmente para o avô cego que cumpria mandato como senador do Partido Democrata.

Suas leituras favoritas eram a Constituição americana e a Declaração dos Direitos dos Cidadãos.
Nessas leituras, Vidal travou contato com a descrição de uma América modelar, fundada em princípios ideais de igualdade e justiça social.

Aos 17 anos, em 1942, alistou-se no exército. Aos 20, iniciou uma precoce e bem recebida carreira literária.

No entanto, na publicação de seu terceiro livro, "A Cidade e O Pilar" (1948), deu-se conta de que a América idealizada que aprendera com o avô não existiria para ele e jamais lhe pertenceria.
"A Cidade e O Pilar" conta a história de Jim Willard e sua descoberta e autoaceitação como homossexual.

O livro lhe deu fama, mas estigmatizou-o e causou seu banimento dos suplementos literários de jornais como o New York Times, onde foi barrado durante anos. Mais que isso, a identificação de Gore Vidal como homossexual inviabilizou as possibilidades de sua carreira política.

Ele se candidatou a deputado por Nova York em 1960 e a senador pela Califórnia em 1982, mas não se elegeu.

A América de oportunidades iguais para todos não existia para um homossexual como ele. Haveria, portanto, de contruí-las. Passou a vida comportando-se como se tivesse um papel presidencial a desempenhar na formação de seu país.

Tornou-se o intelectual público, com opiniões sobre todos os temas da agenda política e social americana e as expressava com elegância, inteligência e argúcia. Tornou-se uma espécie de porta-voz da autocrítca nacional.

Assumiu as funções de cronista do que identificava como o processo de degradação americana. Enxergava os EUA conduzidos por presidentes ineptos e com uma população politicamente ignorante e desinteressada. Antes de morrer, previa que ainda se instalaria uma ditadura militar no país.
Ao "Paris Review" declarou que "esperava viver suficiente para ver uma democracia sexual na América".

Criticou todos os presidentes americanos sob os quais viveu, especialmente os republicanos Ronald Reagan e George W. Bush, que detestava.

Deplorava o intervencionismo americano e afirmou à revista "Vanity Fair" que os ataques de 11 de setembro eram consequência da política externa imperialista dos EUA no Oriente Médio.
Ainda assim, é possível dizer que Vidal amava os EUA profundamente e que dedicou a vida a apontar caminhos para sua restauração.

Ele minimizava a importância da homossexualidade em sua vida. Uma de suas frases mais citadas é: "não existem pessoas homossexuais, apenas atos homossexuais".

Ainda assim viveu com seu companheiro Howard Austen por décadas e, no primeiro volume de suas memórias, "Palimpsesto", afirma que jamais amou ninguém como a Jimmy Trimble, seu colega de escola com quem teve um envolvimento romântico e a quem dedicou "A Cidade e O Pilar", ao lado de quem, aliás, passará a eternidade, enterrado no cemitério de Rock Creek, em Washington.
 
ALEXANDRE VIDAL PORTO, 47, é mestre em direito por Harvard, diplomata e autor de "Matias na Cidade" (Record)
FOLHA DE S.PAULO
02/08/2012 

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