Por
Sérgio Rizzo, para o Valor, e Robinson Borges, de São
Paulo
Antes de começar a servir o menu de degustação, uma das
garçonetes do restaurante Brasil a Gosto toma o habitual cuidado de perguntar se
alguém tem restrições alimentares. "Absolutamente nenhuma", responde o
estrangeiro falante e bem-humorado sobre o qual estão concentradas gentilmente
as atenções da casa. "Eu como de tudo." A garçonete sorri, ouve as demais
respostas, toma notas e se vai, deixando no ar a involuntária (e divertida)
ambiguidade do que acabou de lhe dizer o estrangeiro em questão. Quase uma piada
pronta, bola no ar a ser chutada na direção do gol: o que significaria "comer de
tudo" para um artista cujo trabalho mais célebre, o longa-metragem "O
Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante", é ambientado em um restaurante
onde o prato principal, a certa altura da trama de traição e vingança, se torna
carne humana?
Fique tranquilo, caro leitor. Este "À Mesa com o Valor" com o britânico Peter Greenaway não foi nada indigesto. Foi aberto por inocentes bolinhos de arroz e encerrado por um "caffè latte macchiato". Nem mesmo se falou nesse tema de seu filme estrelado por Helen Mirren, exceto por analogia: ao reconhecer que "O Cozinheiro" ainda se mantém como a sua obra mais conhecida, Greenaway destacou a recepção ao longa-metragem na Rússia, onde foi lançado pouco depois do início da desintegração da União Soviética e visto como "um filme profético sobre como seria a chegada do capitalismo ao país". Curiosamente, no Reino Unido foi enxergada na mesma obra uma alegoria da era Thatcher. No universo das artes, como se vê, o canibalismo pode se prestar a diversas leituras políticas, nenhuma muito lisonjeira para os envolvidos.
Registre-se, porém, que o convidado manteve a palavra. Só fez questão de pedir uma taça de vinho branco nacional - Dádivas Chardonnay 2011, Lidio Carraro - e comeu de tudo o que zelosamente lhe serviram à mesa num canto discreto do piso superior do restaurante, próximo a um jardim de inverno com luz natural. Ao longo do almoço, demonstrou genuíno interesse pelos ingredientes sempre que se aproximou da mesa, preocupada em apresentar uma nova rodada do menu, a chef Ana Luiza Trajano, proprietária do Brasil a Gosto, o sofisticado restaurante de gastronomia brasileira no bairro paulistano dos Jardins. "Ela é muito jovem!", surpreendeu-se agradavelmente Greenaway, de 70 anos, ao conhecê-la. "Há muitos jovens aqui no Brasil, não?"
Em uma inversão de papéis que pareceu mais característica de uma alma inquieta e curiosa do que apenas gentileza protocolar com os anfitriões, essa foi apenas uma das muitas perguntas do cineasta aos seus entrevistadores. Com superávit de espontaneidade, Greenaway fez uma turnê de indagações por vários temas: percorreu desde a influência da Igreja Católica na sociedade brasileira - "imagine a sua avó ouvindo o que você dirá sobre isso e aparecendo à noite para castigá-lo" - até o estado de satisfação pessoal e profissional de cada um de nós, passando pela Patagônia - o repórter fotográfico Cláudio Belli vestia uma camiseta que fazia referência à região - e por uma enquete sobre em qual cidade gostaríamos de viver, caso pudéssemos fazer a escolha.
Greenaway, prontamente, afirmou que mora na "melhor cidade do mundo", ao menos para alguém como ele: Amsterdã, na Holanda. Mais tarde, ao ouvir menção a Florença, reconheceu que se sentiria igualmente muito bem em duas cidades italianas nas quais "você está rodeado pela história", Veneza e Roma.
Fique tranquilo, caro leitor. Este "À Mesa com o Valor" com o britânico Peter Greenaway não foi nada indigesto. Foi aberto por inocentes bolinhos de arroz e encerrado por um "caffè latte macchiato". Nem mesmo se falou nesse tema de seu filme estrelado por Helen Mirren, exceto por analogia: ao reconhecer que "O Cozinheiro" ainda se mantém como a sua obra mais conhecida, Greenaway destacou a recepção ao longa-metragem na Rússia, onde foi lançado pouco depois do início da desintegração da União Soviética e visto como "um filme profético sobre como seria a chegada do capitalismo ao país". Curiosamente, no Reino Unido foi enxergada na mesma obra uma alegoria da era Thatcher. No universo das artes, como se vê, o canibalismo pode se prestar a diversas leituras políticas, nenhuma muito lisonjeira para os envolvidos.
Registre-se, porém, que o convidado manteve a palavra. Só fez questão de pedir uma taça de vinho branco nacional - Dádivas Chardonnay 2011, Lidio Carraro - e comeu de tudo o que zelosamente lhe serviram à mesa num canto discreto do piso superior do restaurante, próximo a um jardim de inverno com luz natural. Ao longo do almoço, demonstrou genuíno interesse pelos ingredientes sempre que se aproximou da mesa, preocupada em apresentar uma nova rodada do menu, a chef Ana Luiza Trajano, proprietária do Brasil a Gosto, o sofisticado restaurante de gastronomia brasileira no bairro paulistano dos Jardins. "Ela é muito jovem!", surpreendeu-se agradavelmente Greenaway, de 70 anos, ao conhecê-la. "Há muitos jovens aqui no Brasil, não?"
Em uma inversão de papéis que pareceu mais característica de uma alma inquieta e curiosa do que apenas gentileza protocolar com os anfitriões, essa foi apenas uma das muitas perguntas do cineasta aos seus entrevistadores. Com superávit de espontaneidade, Greenaway fez uma turnê de indagações por vários temas: percorreu desde a influência da Igreja Católica na sociedade brasileira - "imagine a sua avó ouvindo o que você dirá sobre isso e aparecendo à noite para castigá-lo" - até o estado de satisfação pessoal e profissional de cada um de nós, passando pela Patagônia - o repórter fotográfico Cláudio Belli vestia uma camiseta que fazia referência à região - e por uma enquete sobre em qual cidade gostaríamos de viver, caso pudéssemos fazer a escolha.
Greenaway, prontamente, afirmou que mora na "melhor cidade do mundo", ao menos para alguém como ele: Amsterdã, na Holanda. Mais tarde, ao ouvir menção a Florença, reconheceu que se sentiria igualmente muito bem em duas cidades italianas nas quais "você está rodeado pela história", Veneza e Roma.
Nascido em Newport, no País de Gales, Greenaway decidiu ainda
na adolescência se profissionalizar como pintor e estudou de 1962 a 1965 no
antigo Walthamstow College of Art, que deu origem à atual University of East
London. Entrou para o cinema influenciado pela obra-prima "O Sétimo Selo", de
Ingmar Bergman, e pela nouvelle vague, especialmente por cineastas como Jean-Luc
Godard e Alain Resnais. Embora tenha feito carreira internacional como diretor -
realizou mais de 60 filmes - e profissional multimídia que assina exposições,
instalações e óperas, ainda se considera essencialmente um artista plástico. De
fato, em seus filmes ele recorre sempre aos parâmetros estéticos da pintura. Não
causa estranheza, portanto, a ligação com Amsterdã: de seu estúdio, no sótão de
uma casa no "quarteirão dos museus" onde vive com a mulher, a diretora de teatro
Saskia Boddeke, e as duas filhas mais novas (de nove e sete anos), ele enxerga o
Museu Van Gogh, de um lado, e o Museu Rijks, do outro. Greenaway tem ainda duas
filhas adultas, de seu casamento anterior.
Quando está na cidade, Greenaway leva uma vida repleta de
trivialidades, quase um antídoto para sua sempre controvertida produção
artística, parte dela aclamada pela crítica, mas quase sempre vista como uma
obra difícil, com imagens exuberantes e certo delírio visual. Sua obrigação
doméstica é levar as filhas à escola, o que inclui acordar mais cedo do que
todos na família para preparar o café da manhã e acompanhá-las até o destino.
Trânsito, filas duplas, estresse matinal? Esqueça. Os três vão de bicicleta.
Além do estúdio caseiro, ele mantém um escritório no centro de Amsterdã. "Saio
todo dia", garante. E não esconde o conforto com o discreto modo de vida local.
"Para os holandeses, vale a seguinte regra: não tente ser extraordinário porque
ser comum já é algo extraordinário. O exibicionismo material é algo
proibido."
O hábito de manter as janelas abertas, por exemplo, estaria
relacionado ao desejo de mostrar como as pessoas ali dentro vivem de maneira
simples. "Tenho um produtor holandês. Meu diretor de fotografia é holandês.
Tornou-se muito conveniente morar lá. E virei um cidadão honorário. Agora, tenho
até um cartão de desconto do supermercado, o que vale mais do que o meu
passaporte como prova de cidadania."
Impecavelmente trajado de terno de risca de giz e camisa preta
quadriculada fechada até o último botão, Greenaway transborda animação durante
todo o almoço - que durou quase três horas, muito além do previsto. Nada ali
indicava que ele havia desembarcado de um voo Amsterdã-São Paulo e participado,
pela manhã, de um encontro informal com alguns cineastas paulistas. À tarde,
teria outros compromissos profissionais e, à noite, faria uma conferência da
série Fronteiras do Pensamento. Voltaria para Amsterdã no dia seguinte, mas
celebrava antecipadamente o prazer de outro voo em classe executiva. "Terei 12
horas para ler e escrever, sem telefone, e serei interrompido apenas por pessoas
servindo coisas para comer e beber."
- O senhor não gosta de assistir a filmes durante o voo?
- Não... Na verdade, faz muito tempo que não saio de casa,
compro o ingresso, me sento na poltrona e fico ali do começo ao fim de um
filme.
Por causa das filhas, tem visto produções infantojuvenis - "A
Invenção de Hugo Cabret", de Martin Scorsese, e "As Aventuras de Tintim: O
Segredo do Licorne", de Steven Spielberg, estavam entre as mais recentes, vistas
em 3D. De forma geral, Greenaway acha todas "muito aborrecidas", espécie de
livros ilustrados. Os filmes de Tim Burton, de quem as filhas gostam, também não
o seduzem.
"Não estou convencido de que ele tenha uma grande imaginação.
Parece fazer uso de clichês, um cineasta muito convencional." O desencanto é
amplo e generalizado. "O cinema está morto" já se tornou um de seus bordões, que
ele repete à mesa. Para Greenaway, o que se mantém, de D.W. Griffith a Scorsese,
pode ser resumido em três aspectos: narratividade épica cristã - que inclui
finais felizes, a luta do bem contra o mal - e ideias freudianas de drama
psicológico. "Griffith lançou uma maldição sobre o cinema: introduziu a
irrelevância da narratividade. Isso faz que as pessoas se dirijam às livrarias
para fazer filmes", comenta. "Acho que devemos recomeçar do grau zero. Como se
fôssemos [Walt] Disney diante de uma folha em branco."
Greenaway estabelece a data em que o cinema "morreu": 21 de
setembro de 1983, "quando o controle remoto foi introduzido na sala de estar",
alterando para sempre o comportamento dos espectadores. O cinema do futuro
precisa ser interativo e multimídia para a geração "laptop", que não aceita mais
o entretenimento passivo que satisfazia seus pais e avós. "Godard sabiamente
disse que, quando você olha para a frente, está perdendo dois terços do mundo,
que se encontram às suas costas." Ele acredita na contribuição das novas
tecnologias, que poderiam acabar com a "tirania do cinema". "Minha teoria é de
que o cinema está morrendo por causa de algumas opressões: a do quadro - eu e
vocês não vemos o mundo enquadrado, mas o cinema nos limita a isso -; a das
livrarias; a da natureza da interpretação - o cinema subutiliza atores, como faz
o teatro -; e a da câmera, a mais difícil de todas."
À mesa, o produtor da série Fronteiras do Pensamento Luís
Ludmer, que presenciou a reunião de Greenaway com cineastas paulistas, conta que
eles ficaram surpresos por essas opiniões, já expressas em diversas outras
circunstâncias.
E, entre uma casquinha de camarão com farofa de dendê e uma
salada de lagostins, Greenaway prossegue suas lamentações. Dessa vez, contra os
videogames, mesmo com todas as suas possibilidades interativas. "Como o cinema,
eles continuam a girar em torno do bom e do mau, de personagens. São baseados em
dualidades - noite/dia, macho/fêmea."
Não se pode acusá-lo de incoerência: nos últimos 20 anos, sua
carreira tem se distanciado do cinema convencional e se aproximado de
experimentações multimídia. Filmes como "A Última Tempestade" (1991) e "O Livro
de Cabeceira" (1996) - que ele aponta como os mais típicos de seu estilo -
demonstram uma inquietude com as limitações bidimensionais da tela, aprofundando
as experimentações de seus curtas-metragens de início de carreira e de longas
como "The Draughtsman's Contract" (1982), "Um Z e Dois Zeros" (1986) e "Afogando
em Números" (1988).
Em paralelo, Greenaway tem se dedicado à montagem de óperas e
de exposições multimídia, como o ambicioso projeto "The Tulse Luper Suitcases" -
espécie de pacote do qual fizeram parte filmes de longa-metragem, uma série de
TV, 92 DVDs (associados às 92 malas do personagem do título), CD-ROMs e livros.
E, fiel à formação original, ele também se ocupa de pinturas, como a série
"Novos Quadros Clássicos", em que recorre a tecnologias de processamento de
imagens para recriar ("reler", no jargão acadêmico) obras referenciais, do
Renascimento à era moderna, como "Ronda da Noite", do holandês Rembrandt, que
deu origem a um longa homônimo em torno de mistérios sobre a realização do
quadro. É como pintor, aliás, que Greenaway arrisca dizer que talvez venha a ser
lembrado no futuro, porque "a pintura tende socialmente a perdurar", enquanto o
cinema "estará morto".
Leia o texto original em:
http://www.valor.com.br/cultura/2732620/o-cineasta-da-ressurreicao#ixzz1zktnB5Q0
Nenhum comentário:
Postar um comentário