sábado, 28 de julho de 2012

' Analfatóteles’ - JOSÉ MIGUEL WISNIK

Tom Zé sabe tirar um ótimo partido dos efeitos mirabolantes e amalucados da sua argumentação cancional

A Fonte da Nação, em Irará, devia ter convênio com a fonte da eterna juventude, a julgar pelo novo disco que Tom Zé está lançando, “Tropicália lixo lógico”. É um CD de tese. Depois de já ter mostrado como a bossa nova nos lançou definitivamente na modernidade, ao reverter a nossa monocultura agroexportadora em arte de exportação (“Vaia de bêbado não vale”), agora canções frescas e deliciosas como “Capitais e tais”, “Amarração do amor” e “De-de-dei xá-xá-xá” vêm entremeadas de canções conceituais como “Apocalipsom A”, “Tropicalea jacta est”, “Marcha-enredo da creche tropical”, “Tropicália lixo lógico” e “Apocalipsom B”. Nelas, é a Tropicália que aparece como a “moleca esperta” que nos fez saltar da Idade Média diretamente para a Segunda Revolução Industrial, ao fundir a cultura oral do Recôncavo e do sertão baiano, cunhada numa ancestral lógica não ocidental, com uma versão alterada da lógica aristotélica, disparada pelos estímulos do mundo eletrônico, da física quântica, da semiótica, do rock e da antropofagia oswaldiana nos anos de 1960.

Segundo Tom Zé, a “placa virgem e faminta” do cérebro infantil guarda poderosamente, especialmente nos primeiros anos, informações do mundo circundante e, no caso dos baianos, da cultura árabe nordestinizada, de cheganças, desafios e repentes, da poética provençal traduzida em cancioneiro popular, tudo vertido em pensamento e sensibilidade de tipo oral, com seu correspondente substrato não verbal. Quando as crianças chegam à escola, expostas e submetidas ao letramento e à lógica aristotélica, essa outra lógica da oralidade é supostamente neutralizada, embora guardada em regime recessivo no hipotálamo.

A teoria do “lixo lógico” é que as informações contemporâneas de então, da poesia concreta, do teatro de Zé Celso, do cinema de Glauber (ele mesmo um “analfatóteles” como Caetano, Gil  , Torquato , Capinam e o próprio Tom Zé) excitaram o padrão lógico latente no hipotálamo, fazendo-o vazar para o córtex cerebral e disparando a verdadeira pororoca mental (para usar uma imagem amazônica) que produziu o movimento da Tropicália. É esse mito que as canções contam, com uma trama sonora cortante, excitante, inteligente, e com as participações de Emicida, Mallu Magalhães, Rodrigo Amarante e Pélico (para confirmar que a fonte da juventude continua a jorrar).

Tom Zé sabe tirar um ótimo partido dos efeitos mirabolantes e amalucados da sua argumentação cancional, pontilhada de frases latinas, citações eruditas, exemplos científicos e referências literárias. Se não soa racionalmente comportada, é claro, é porque confirma, então, o caráter não estritamente aristotélico e múltiplo do “lixo lógico” que é o seu alimento criativo (“quod erat demonstrandum”). Os estranhamentos produzidos estão sob afiado controle, e são do mesmo tipo daqueles que se expandem nos seus shows e na genial entrevista da “Bravo!”, que converte o gênero jornalístico em sensacional teatralização das próprias agudezas, fraquezas expostas e pulos do gato (que a revista soube muito bem incorporar à edição). Tom Zé toma pra si o poder de dizer e acontecer, e faz no final
uuma hilariante paródia exemplar do desejo que certa imprensa tem de extrair dele desabafos críticos contra parceiros: “Ô, Neusa, o moço resolveu me atiçar. Quer que eu desça a lenha em Deus e todo mundo. Não tem problema. Bote o gravador mais perto de mim. Lá vai: tropicalismo, tu é feio! Tu é sem vergonha! Tu é descarado!”

A propósito, transcrita toda na primeira pessoa, omitindo as perguntas que lhe são dirigidas, que deduzimos da sua própria fala, a entrevista desperta como esquema discursivo um
longíquo e engraçado “efeito Riobaldo”, vindo desse sertanejo baiano que expõe, de certa forma, a nós as ruminações sobre a história que viveu. Essa associação livre me leva a dizer algo que sempre me despertou a atenção: tanto Tom Zé quanto Guimarães Rosa são filhos de comerciantes que passaram a infância ouvindo, na loja do vilarejo, que se confundia com suas casas, as falas narrativas e poéticas da linguagem oral do sertão que acorria, de todas as partes, para a venda local. Não estou
preocupado aqui com as diferenças evidentes entre eles. Mas em dizer que m  Guimarães Rosa
também pode ser incluído na categoria dos “analfatóteles”, sertanejos remixados na urbe, supraletrados que deslocam a lógica aristotélica ao submetê-la, com todas as consequências disso, aos jogos e paradoxos de sons e sentidos, às outras dimensões do mundo não letrado, ao qual Tom Zé permaneceu sempre fiel, como marca renitente e escolhida da sua diferença e da sua integridade.

Aliás, para quem conta, como ele, ter presenciado o espanto da chegada a Irará da água encanada, da lâmpada elétrica e do advento quase miraculoso da latrina de porcelana inglesa, o salto da Idade Média à Segunda Revolução Industrial descreve, antes de mais nada, e mais do que a ninguém, a sua própria trajetória singular, sem deixar de ser um achado sobre a multiplicidade de tempos e de lógicas que se combinam na trama cultural brasileira, e que têm no movimento tropicalista um momento de excepcional eclosão.

Tom Zé quintessenciou o poder da interação pelo jogo, a alegria e a provocação contidas na nossa vontade de brincar, que ele desperta e desafia com seus riffs polifônicos, com suas inesgotáveis invenções sonoras, estribilhos e bordões (“onde botam ovos as canções”).
O GLOBO
28/07/2012

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