sábado, 28 de julho de 2012

Of Monsters and Men - Little Talks

A Charge nossa de cada dia - Duke

Django Django - Waveforms

A Charge nossa de cada dia - Flávio

Roxy Music - Love Is The Drug

' Analfatóteles’ - JOSÉ MIGUEL WISNIK

Tom Zé sabe tirar um ótimo partido dos efeitos mirabolantes e amalucados da sua argumentação cancional

A Fonte da Nação, em Irará, devia ter convênio com a fonte da eterna juventude, a julgar pelo novo disco que Tom Zé está lançando, “Tropicália lixo lógico”. É um CD de tese. Depois de já ter mostrado como a bossa nova nos lançou definitivamente na modernidade, ao reverter a nossa monocultura agroexportadora em arte de exportação (“Vaia de bêbado não vale”), agora canções frescas e deliciosas como “Capitais e tais”, “Amarração do amor” e “De-de-dei xá-xá-xá” vêm entremeadas de canções conceituais como “Apocalipsom A”, “Tropicalea jacta est”, “Marcha-enredo da creche tropical”, “Tropicália lixo lógico” e “Apocalipsom B”. Nelas, é a Tropicália que aparece como a “moleca esperta” que nos fez saltar da Idade Média diretamente para a Segunda Revolução Industrial, ao fundir a cultura oral do Recôncavo e do sertão baiano, cunhada numa ancestral lógica não ocidental, com uma versão alterada da lógica aristotélica, disparada pelos estímulos do mundo eletrônico, da física quântica, da semiótica, do rock e da antropofagia oswaldiana nos anos de 1960.

Segundo Tom Zé, a “placa virgem e faminta” do cérebro infantil guarda poderosamente, especialmente nos primeiros anos, informações do mundo circundante e, no caso dos baianos, da cultura árabe nordestinizada, de cheganças, desafios e repentes, da poética provençal traduzida em cancioneiro popular, tudo vertido em pensamento e sensibilidade de tipo oral, com seu correspondente substrato não verbal. Quando as crianças chegam à escola, expostas e submetidas ao letramento e à lógica aristotélica, essa outra lógica da oralidade é supostamente neutralizada, embora guardada em regime recessivo no hipotálamo.

A teoria do “lixo lógico” é que as informações contemporâneas de então, da poesia concreta, do teatro de Zé Celso, do cinema de Glauber (ele mesmo um “analfatóteles” como Caetano, Gil  , Torquato , Capinam e o próprio Tom Zé) excitaram o padrão lógico latente no hipotálamo, fazendo-o vazar para o córtex cerebral e disparando a verdadeira pororoca mental (para usar uma imagem amazônica) que produziu o movimento da Tropicália. É esse mito que as canções contam, com uma trama sonora cortante, excitante, inteligente, e com as participações de Emicida, Mallu Magalhães, Rodrigo Amarante e Pélico (para confirmar que a fonte da juventude continua a jorrar).

Tom Zé sabe tirar um ótimo partido dos efeitos mirabolantes e amalucados da sua argumentação cancional, pontilhada de frases latinas, citações eruditas, exemplos científicos e referências literárias. Se não soa racionalmente comportada, é claro, é porque confirma, então, o caráter não estritamente aristotélico e múltiplo do “lixo lógico” que é o seu alimento criativo (“quod erat demonstrandum”). Os estranhamentos produzidos estão sob afiado controle, e são do mesmo tipo daqueles que se expandem nos seus shows e na genial entrevista da “Bravo!”, que converte o gênero jornalístico em sensacional teatralização das próprias agudezas, fraquezas expostas e pulos do gato (que a revista soube muito bem incorporar à edição). Tom Zé toma pra si o poder de dizer e acontecer, e faz no final
uuma hilariante paródia exemplar do desejo que certa imprensa tem de extrair dele desabafos críticos contra parceiros: “Ô, Neusa, o moço resolveu me atiçar. Quer que eu desça a lenha em Deus e todo mundo. Não tem problema. Bote o gravador mais perto de mim. Lá vai: tropicalismo, tu é feio! Tu é sem vergonha! Tu é descarado!”

A propósito, transcrita toda na primeira pessoa, omitindo as perguntas que lhe são dirigidas, que deduzimos da sua própria fala, a entrevista desperta como esquema discursivo um
longíquo e engraçado “efeito Riobaldo”, vindo desse sertanejo baiano que expõe, de certa forma, a nós as ruminações sobre a história que viveu. Essa associação livre me leva a dizer algo que sempre me despertou a atenção: tanto Tom Zé quanto Guimarães Rosa são filhos de comerciantes que passaram a infância ouvindo, na loja do vilarejo, que se confundia com suas casas, as falas narrativas e poéticas da linguagem oral do sertão que acorria, de todas as partes, para a venda local. Não estou
preocupado aqui com as diferenças evidentes entre eles. Mas em dizer que m  Guimarães Rosa
também pode ser incluído na categoria dos “analfatóteles”, sertanejos remixados na urbe, supraletrados que deslocam a lógica aristotélica ao submetê-la, com todas as consequências disso, aos jogos e paradoxos de sons e sentidos, às outras dimensões do mundo não letrado, ao qual Tom Zé permaneceu sempre fiel, como marca renitente e escolhida da sua diferença e da sua integridade.

Aliás, para quem conta, como ele, ter presenciado o espanto da chegada a Irará da água encanada, da lâmpada elétrica e do advento quase miraculoso da latrina de porcelana inglesa, o salto da Idade Média à Segunda Revolução Industrial descreve, antes de mais nada, e mais do que a ninguém, a sua própria trajetória singular, sem deixar de ser um achado sobre a multiplicidade de tempos e de lógicas que se combinam na trama cultural brasileira, e que têm no movimento tropicalista um momento de excepcional eclosão.

Tom Zé quintessenciou o poder da interação pelo jogo, a alegria e a provocação contidas na nossa vontade de brincar, que ele desperta e desafia com seus riffs polifônicos, com suas inesgotáveis invenções sonoras, estribilhos e bordões (“onde botam ovos as canções”).
O GLOBO
28/07/2012

terça-feira, 17 de julho de 2012

Cibelle & Devendra Banhart - London London

Humor

Sigur Rós - Rembihnútur

A Charge nossa de cada dia - Marcio Moura

The Vaccines - No Hope

As ideias não correspondem mais aos fatos

Arnaldo Jabor - Estado de SP
 
O tempo atual é Renascença ou Idade Média? Os acontecimentos estão inexplicáveis, pois a barbárie das coisas invadiu o mundo dos homens. Temos um acesso a informação infinita, mas nada se fecha em conclusões coerentes, nada acaba, nada se define.
O socialismo não deu certo, o capitalismo global não trouxe paz nem progresso, tudo que depende da vontade dos homens e de seus sonhos de controle, não chega a um final feliz. As coisas têm vida própria e seus criadores não controlam mais os produtos. O mundo é cada vez mais uma tumultuosa marcha de fatos sem causa, de acontecimentos sem origem. Cada vez temos mais ciência e menos entendimento. As teorias não deram certo e percebemos hoje que Kafka e escritores do início do século 20, como Mann, Musil, depois Beckett e Camus sacaram o lance. Esperando Godot é mais profundo e profético que 100 anos de ilusões políticas.
Hoje, viramos objetos de um "sujeito" imenso, sem nome, sem olho, misterioso, que talvez só entendamos depois do tempo esgotado, quando for tarde demais. Essa é a sensação dominante.
Por que estou com essas angústias filosóficas hoje? Bem... porque no Brasil também estamos diante do dilema: Renascença ou Idade Média, progresso ou regresso?
A rapidez do mundo atual, para o bem e mal, nos deixa para trás. Vivemos uma modernidade veloz e falamos discursos antigos. As ideias não correspondem mais aos fatos, como cantou Cazuza.
Hoje as palavras que eram muros de arrimo foram esvaziadas de sentido. Uma palavra que era pau para toda obra: "futuro". Que quer dizer? Antes, 'futuro' era um lugar onde chegaríamos um dia, que nos redimiria de nossos sofrimentos no presente. Agora o termo 'futuro' tem uma conotação incessante, como se já estivéssemos nele. Estamos com saudades do presente, que nos escapa como um passado. O presente se esvai e o futuro não para de 'não' chegar.
Outra palavra: "Felicidade." Ser feliz hoje é excluir o mundo em torno. Ser feliz é uma vivência pelo avesso, pelo "não". Ser feliz é não ver, não pensar, é não se deixar impressionar pelas desgraças do País ou dos outros.
Outra: "Miséria." A miséria sempre nos foi útil. Diante dela tínhamos a vantagem, a riqueza da "compaixão". Era doce sentir pena dos infelizes. Hoje, diante das soluções impossíveis, temos uma espécie de raiva, de irritação nobre, bem 'ancien regime' contra os desgraçados. Ficamos humilhados diante da impotência de soluções. O pobre virou um 'estraga-prazeres'. E os nomes?
Que nome daremos ao desejo de extermínio que brota nos cérebros reacionários? Exterminar bandidos - e excluídos também?
E que nome daremos à paralisia da política brasileira, ao imobilismo das reformas, o absurdo desinteresse pelos dramas do País? Que nome daremos ao ânimo do atraso, à alma de nossa estupidez? Que medula, que linfa ancestral energiza os donos do poder do atraso, que visgo brasileiro é esse que gruda no chão os empatadores do progresso e da modernização? Vivemos sob uma pasta feita de egoísmo, preguiça, escravismo colonial. Que nome dar a essa gosma que somos?
Que nome dar às taras de nossos intelectuais incompetentes? São dois tipos básicos que surgem: o gênio inútil e o neocretino. O gênio inútil sabe tudo e não faz nada. O neoidiota tem certezas sem saber nada.
E que nome daremos a esse bucho informe que a miséria está criando nas periferias?
Como chamar esta nova língua, este novo "bem" dentro do "mal"? Não é mais "proletariado" ou "excluídos" apenas. Surge uma razão dentro da loucura. Parece um país paralelo esfarrapado, com cultura própria, com uma ética produzida pela fome e ignorância.
E na política? Quem somos, o que somos? Neoliberais, velhos radicais, neoconservadores, progressistas reacionários, direita de esquerda ou, hoje no poder, 'esquerdismo de direita'?
E a palavra chave de hoje: 'democracia.' Que é isso? Que quer dizer? No Brasil, democracia é lida como tolerância, esculacho, zona geral. Democracia, que é o único sistema 'revolucionário' a que devemos aspirar, é a melhor maneira de espatifar o entulho arcaico, corrupto, patrimonialista que o Estado abriga. A única revolução que se faria no Brasil seria o enxugamento de um Estado que come a nação, com gastos crescentes, inchado de privilégios e clientelismo, um Estado que só tem para investir 1,5 do PIB. A única revolução seria administrativa, apontada na educação em massa, nas reformas institucionais, já que, graças a Deus, a macroeconomia foi herdada do FHC e o Lula teve a esperteza de mantê-la, graças ao Palocci, que salvou o País.
Só um choque de livre empreendimento pode mudar o Brasil. Mas esta evidencia é vista com pavor. Como aceitar o óbvio, que o Estado, nas últimas décadas, congestionado, moribundo, só tem impedido o crescimento? Isso vai contra os velhos dogmas dos intelectuais... A maioria dos críticos sociais e culturais prefere morrer a rever posições. O recente caso do Paraguai é vergonhoso. Protestam pelo 'golpe', como se o Lugo fosse um grande líder, quando todo mundo sabe que era uma espécie de Berlusconi tropical; ignoram o fato de que a Constituição deles previa um 'impeachment' como esse e abrem caminho para que o fascista Chávez comece a provocar o Mercosul junto com a espantosa Cristina Botox que está destruindo a Argentina. Como perguntou alguém outro dia: 'Quando nossos intelectuais de esquerda vão denunciar pelo menos a Coreia do Norte?'
A verdade é que para eles a democracia parece lenta e ineficaz. Como disse o Bobbio: O ódio à democracia une a esquerda e direita. Querem um autoritarismo rápido, que mude "tudo isso que está aí". Esse episódio do Paraguai, que a presidente Dilma visivelmente teve de aderir de má vontade, por imposição dos 'cucarachas' fascistas, aponta para uma restauração da velha febre anti-imperialista que justifica e absolve a incompetência da América Latina. E tudo isso apoiado por picaretas neomarxistas como o showman Slavoj Zizek e alguns babacas daqui.
A América Latina está com fome de autoritarismo, que é bem mais legível para os paranoicos.

domingo, 15 de julho de 2012

MARCELO GLEISER A ilusão do saber

Folha de S. Paulo, 15/7/2012
Tanto Newton quanto Maxwell estavam certos: a luz é tanto uma partícula quanto uma onda
 
Muitas vezes o familiar oculta os maiores mistérios. Esse é o caso da luz, um fenômeno tão comum que quase ninguém dá muita bola para ele. Acordamos com ela todos os dias, ligamos e desligamos lâmpadas com descaso, raramente refletindo sobre a sua natureza, sobre o que está por trás dessa intensidade visível, porém impalpável, etérea, porém concreta, discreta, porém essencial.
No seu tratado sobre a luz intitulado "Óptica", publicado em 1704, Isaac Newton defende sua crença de que a luz é constituída de pequenas "partes": "Não são os raios de luz corpúsculos diminutos emitidos por corpos brilhantes?", pergunta. Sugere, além disso, que a luz viaja com velocidade finita, fazendo referência aos resultados de Ole Roemer, o qual, em 1676, mediu a velocidade da luz usando o eclipse de Io, uma das luas de Júpiter.
Em 1865, James Clerk Maxwell publicou o tratado "Teoria Dinâmica do Campo Eletromagnético", no qual descreve a luz como ondulações do campo eletromagnético.
A teoria explica conjuntamente a eletricidade e o magnetismo como manifestações do campo eletromagnético: uma carga elétrica produz um campo elétrico à sua volta, como cabelos rodeando uma cabeça. Tal como a gravidade, seu efeito cai com o quadrado da distância. Campos magnéticos são gerados quando cargas elétricas são aceleradas.
Uma rolha oscilando numa piscina cria ondas circulares. Imagine que a rolha é uma carga elétrica; ao oscilar, ondas eletromagnéticas são irradiadas concentricamente. (A carga as emite em três direções, e não duas.) Se a rolha subir e descer rápido, as ondas estarão próximas, terão frequência alta; se lentamente, a frequência será baixa.
Algo assim ocorre com as ondas eletromagnéticas, que podem ter altas e baixas frequências: o que chamamos de luz visível é um tipo de onda com frequências entre 400 e 790 Terahertz (1 Terahertz=1.012 ciclos/segundo). Já os raios X e gama têm frequências bem mais altas, enquanto o infravermelho e as micro-ondas têm frequências mais baixas.
Maxwell imaginou que, tal como ondas na água ou de som, a luz precisasse de um meio para se propagar. Esse era o estranho éter: transparente, imponderável e muito rígido, uma quase impossibilidade. Mas todos acreditavam nele, mesmo após os experimentos de Michelson e Morley não o terem encontrado.
Só em 1905 o jovem Einstein descartou o éter com a sua teoria da relatividade: ao contrário de todas as outras, as ondas eletromagnéticas podem se propagar no vazio. (É possível que ondas gravitacionais também o façam, assunto que fica para outra semana.)
Para complicar, a luz não tem massa. "Como algo que não tem massa pode existir?", perguntaria o leitor. Em física, energia é mais útil que massa. E a luz tem energia, podendo ser descrita como onda ou partícula: Newton e Maxwell estavam corretos. As partículas de luz, os fótons, têm energia proporcional à frequência. (Vê-se logo a estranheza: uma partícula com frequência, que é propriedade de onda!)
Lembro-me das palavras de Daniel Boorstin: "O maior obstáculo à novas descobertas não é a ignorância; é a ilusão do saber". Mesmo que saibamos tanto sobre o mundo, sabemos ainda tão pouco.
 
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".

A Charge nossa de cada dia - Aroeira

Quem não é? LUIS FERNANDO VERISSIMO

O Tribunal Federal da Suíça afirmou, num documento recém-publicado, que João Havelange e Ricardo Teixeira receberam suborno para influenciar a Fifa na decisão de quem faria a transmissão das Copas do Mundo de 2002 e 2006 e em outros acordos da Fifa e da CBF. O documento custou a ser publicado porque os advogados da Fifa argumentaram, em defesa de Havelange e Teixeira, que o pagamento de suborno é prática comum na América do Sul e na África, onde a propina faz parte do salário “da maioria da população”. Foi publicado agora porque o presidente da Fifa, Joseph Blatter, que deve seu cargo ao Havelange, resolveu usar seu ex-chefe e Teixeira como exemplos de que está combatendo a corrupção. Antes abraçava os dois e seu esquema, agora os apunhala pelas costas com o relatório finalmente liberado da justiça suíça. Gente fina.

Você, eu e a maioria da população brasileira teríamos motivos para nos indignar com a afirmação de que nosso salário é normalmente reforçado por propina, vinda sabe-se lá de onde, e que Havelange e Teixeira só estariam sendo um pouco mais brasileiros do que o normal. Mas nos mesmos jornais que trazem a notícia da denúncia de Havelange e Teixeira e a revelação de que a Fifa nos considera todos corruptos lemos que o suplente do Demóstenes Torres, cassado pelas suas ligações com o Carlinhos Cachoeira, também tem ligações com o Carlinhos Cachoeira, além de precisar explicar por que deixou de declarar boa parte do seu patrimônio ao fisco. Fica-se com a impressão de que a Fifa tem razão.

Me lembrei do texto que escrevi certa vez sobre a visita de uma comissão a um manicômio. A comissão é recebida por uma recepcionista, que passa a dar instruções desencontradas sobre como chegar ao gabinete do diretor – “Entrem por aquele corredor marchando de costas e cantando a Marselhesa” – até que vem um médico buscá-la, explicando que trata-se de uma louca que pensa que é recepcionista. Mas o médico não é médico, também é um louco passando por médico, e que é levado por um segurança. Que não é um segurança, é outro louco que declara ser sobrinho-neto do Hitler, e é levado por um enfermeiro para o seu quarto. Mas o enfermeiro também não é enfermeiro, é um louco que etc, etc. A comissão finalmente chega ao gabinete do diretor – ou alguém que pode ser o diretor ou um louco que se passa pelo diretor. Como saber se é o diretor mesmo?

– Não há como saber – diz o possível diretor. – Nem eu sei. Mas temos que supor que eu sou o diretor e não outro louco. Senão isto aqui vira um caos!

Temos que supor que nem todos são corruptos, ou afilhados reais ou simbólicos do Carlinhos Cachoeira. Senão isto aqui fica ingovernável. 


O Globo
15/07/2012

Nasser Come on

Você não sou eu - ANNA MUYLAERT

Arquivo aberto
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Você não sou eu

Rio, 1984
 
ANNA MUYLAERT

No início dos anos 80, aos 18 anos, tranquei a faculdade de cinema na USP por seis meses.
Patrocinada pela família, fui morar em Paris, onde via filmes diariamente, fazia listas e anotações, na tentativa de elaborar um projeto ou um discurso cinematográfico que eu não sabia qual era.

Embora minha determinação de dirigir filmes fosse grande, eu ainda era feita, como todo adolescente, "da mesma matéria dos sonhos". Foi neste contexto de cinefilia e busca de identidade que deparei com um filme do alemão Wim Wenders, diretor que despontava na época.

Era "Alice nas Cidades".

A experiência foi impactante: senti como se tivesse encontrado todas as respostas para as minhas perguntas juvenis. E, como é próprio do adolescente, Wim Wenders virou meu ídolo: eu me esforçava para ler em francês tudo sobre ele e seus filmes, comprava pôsteres, assistia às mostras.

Passei a sofrer do que o crítico Harold Bloom chamaria da "angústia da influência".

Terminado o semestre, voltei ao Brasil, pendurei os pôsteres no quarto e voltei para a escola. Não muito depois, ouvi a notícia de que Wenders viria mostrar na sessão de abertura do Festival do Rio o seu novo filme, "Paris, Texas".

Fiquei enlouquecida diante da hipótese de conhecê-lo pessoalmente. Inscrevi meus curtas da Escola de Comunicações e Artes em uma mostra paralela do festival, com o objetivo de mostrá-los ao meu ídolo. Lutei, com sucesso, por um convite para a sessão de abertura. E fui para o Rio.

Na noite da abertura, coloquei meu melhor vestido e o vi pela primeira vez, no palco, apresentando o filme. A sala ficou escura e começou a projeção daquela obra-prima, à qual assisti com um olho na tela e o outro no balcão, onde o Wenders estava sentado.

Quando a sessão acabou, todos se dispersaram, e ele sumiu pelo corredor afora.

Decepcionada, fui para o bar da piscina do Hotel Nacional. Cheguei no balcão para pedir uma bebida quando se aproximou de mim, em tom de paquera, o ator Denis Hopper -o amigo americano em pessoa.

Eu, lógico, dei bola, e ele me convidou para sentar na mesa dele. Que, descobri logo em seguida, era a mesa de Wim Wenders.

Sentei-me com aquele sorriso de quem vive um milagre secreto, mas disfarcei a emoção, tentando não parecer só uma tiete, embora fosse exatamente isso.

Tiramos fotos e falamos trivialidades. Tentei puxar assunto, dar opiniões inteligentes.
Por mais que eu me esforçasse, ele me tratava como uma local bonitinha que poderia ser útil no trato com o garçom. Não foi antipático, mas agia como se eu fosse criança. Vivi uma agonia crescente, até que resolvi dar o fora e encerrar aquele vexame particular.

Antes de partir, tive a cara de pau de pedir a ele que visse meus curtas no festival, ao que ele, solícito, pediu que eu anotasse num papel o nome dos filmes. Então ele também recomendou um curta e, como eu, anotou o nome.

Eu me despedi, levantei e parti. Já no lobby do hotel, quando li o que ele tinha escrito no papel, quase cai para trás. "You are not I". Estava escrito: " Você não sou eu".

Então veio a revelação. Ele tinha toda a razão, eu não era ele, era mesmo apenas uma criança e, de repente, estava livre. Livre da angústia da influência, livre do ídolo, livre para buscar um caminho que fosse meu.

O grande encontro não tinha acontecido, mas sim algo muito maior. E Wim Wenders tinha deixado de ser um ídolo para se tornar um mestre.

Folha de S.Paulo
15/07/2012 


Bloc Party - Octopus

Barbara Gancia - Meu pacto com Woody Allen

Fantástico esse Woody Allen, não? Pode ir formando na sua mente a imagem do cineasta metido numa fantasia de coelhinho da Duracell batendo dois pratos dourados nas mãos, a rodar. Sem parar, rodando e batendo, rodando e batendo... Ele é tão extraordinário que outro dia eu decretei aqui a sua morte e agora já o estou ressuscitando, dando uma polidinha no coelho, levantando suas orelhinhas e colocando o bicho de novo para funcionar.

Da vida nada se leva, curta o momento, veja a beleza nas pequenas coisas. Não há significado maior em nada ou coisa qualquer que valha a pena, que dirá algo que venha nos dar a real dimensão do sofrimento ou a mesquinhez que enfrentamos nesta vida terrena. Desde "Vicky Cristina Barcelona", Woody Allen vem nos preparando para seu ocaso. Parece nos dizer: "Olha, não há mais nada pelo que se agitar. Eu já fiz os filmes que queria.

Se desejam mais, vocês podem ir procurar em outro canto, porque deste mato não sai mais coelho. Mas podemos fazer o seguinte: eu preciso continuar em movimento, odeio a ideia da morte. E vocês não conseguem abrir mão daquelas duas horinhas de prazer que eu proporciono a cada ano ou dois. Então a gente pode fechar assim, sem maiores compromissos: nos encontramos na sala de cinema de tempos em tempos, vocês não me cobram demais nem eu me esforço até enfartar, pode ser?".

Quer saber? Por mim está de ótimo tamanho. Antes Woody Allen em um dia ruim do que um "Transformers" tinindo de bão. Tome, sr. Allen, leve meu dinheiro, pode levar todinho. "Meia-Noite em Paris" foi um filme desleixado, feito com a grana do governo Sarkozy para mostrar a Carla Bruni? Tudo bem, o próximo não será.

E, de fato, eu já fui sabendo que não iria ver nenhum "Annie Hall" e tive uma noite muito agradável assistindo a "Para Roma Com Amor".

Woody encontrou um jeito de seguir adiante. Chega a ser heroico que um cara que todo o público identifica com seus personagens consiga continuar a manter uma distância entre aquilo que é real e o que não é depois de todos os escândalos que aconteceram em sua famosa vida pessoal. Diria que é para lá de respeitável que ele tenha conseguido sobreviver a isso tudo, à quase falência e ainda ouse dirigir filmes. No mínimo, estamos falando de um sujeito singular e equilibrado que merece ser celebrado.

Está certo que há momentos, especialmente desde "Vicky Cristina Barcelona", que um filme de Woody Allen chega a parecer aquelas festas tradicionais da Amazônia ou do Maranhão, ou mesmo desfile de escola de samba, patrocinados por marca de sabão em pó ou secretarias de Cultura de Estado, sabe?

A gente tem ciência de que Woody Allen entrou em franca decadência e ele não nega, estamos nisso juntos. Mas é charmoso e uma anedota bem mais engraçada do que o homem que só canta ópera no chuveiro que ele se proponha a discutir a inutilidade da celebridade quando é justamente do que restou dela que ele agora está ganhando o pão de cada dia. Artisticamente, Woody Allen nunca foi disso. Mas o mundo está que é um badulaque só.

Eu mesma hoje estou aqui provando por a mais bê que papel aceita qualquer desaforo. Aceita ver uma coluna seguida de outra renegando tudo o que foi escrito há 15 dias. Woody tem razão. Tudo já foi dito, pintado, cantado, recitado, filmado e escrito. Que tal apenas relaxar e curtir o momento?

Revista SP
Folha de S.Paulo
15/07/2012

The Shins - It's Only Life

Transtornos e desordens - João Ubaldo Ribeiro

De uns tempos para cá, é cada vez mais forte a tendência a não se ver o indivíduo como responsável pelos próprios atos. No terreno da ciência social esquerdoide, o sujeito é assaltante porque lhe faltaram oportunidades, não teve educação, vive numa sociedade consumista, foi vítima de bullying e mais quantos indicadores se concebam, em pesquisas cujos resultados são definidos pela própria formulação e, muitas vezes, não passam de manipulações pseudoestatísticas, destituídas de base sólida. Enxergam-se relações de causa e efeito inexistentes, que resistem até mesmo à óbvia verdade de que a ampla maioria dos que enfrentaram e enfrentam essas situações não é de delinquentes.

No terreno da psicanálise de boteco, o sujeito surra mulher e filhos porque foi também surrado, principalmente pela mãe. Ou - pois a psicanálise de boteco tem o condão de adaptar suas explicações e a causa que, num exemplo, surte determinado efeito em outro surte efeito contrário - porque não foi surrado e nem sequer advertido e, assim negligenciado pela mãe, nutre amor e ódio pela figura materna, na qual desconta seus recalques baixando a porrada na santa mãe de seus filhos, os quais também apanham porque dividem as atenções da dita figura materna. Ou qualquer outra especulação asnática, das muitas que volta e meia ainda ouvimos.

Agora, por meio da entusiástica colaboração de cientistas, psiquiatras e, principalmente, fabricantes de drogas psicoativas, vamos ingressar definitivamente na era em que qualquer comportamento ou qualquer emoção serão vistos como uma doença mental, no sentido mais lato do termo. Aliás, pouco se tem usado a expressão "doença mental". O chique agora, que repetimos como papagaios bem ensinados, é "transtorno", "desordem" ou "distúrbio". Sabemos que certamente a maioria dos psiquiatros e das psiquiatras, bem como a maioria dos cientistos e cientistas, embora talvez não a maioria dos fabricantes e fabricantas de drogas, não é constituída de enganadores venais e inescrupulosos, que tomam dinheiro dos fabricantes para promover a vendagem bilionária de remédios.

Mas muitos e muitas são (está certo, vou parar com este negócio de flexionar os gêneros de tudo, sei que é chato; mas é só porque quero mostrar como certas coisas enfeiam e aleijam nossa já tão perseguida língua portuguesa) e a bandidagem deles combinada vai de vento em popa.

O número de transtornos e desordens aumenta exponencialmente e já se observou que, anunciado um novo mal, de que antes não havia relato, logo surgem novos "pacientes", gente que agora padece de síndromes também antes nunca descritas. E os males do espírito, digamos, muitas vezes não geram sintomas físicos, ou, se geram, são de difícil definição etiológica, de forma que o diagnóstico vira conceitual e subjetivo: eu acho que você está deprimido porque acho que seu quadro configura o que eu acho que é depressão.

Não há mais preguiça, há transtornos ou desordens de atenção, de motivação, de interação social, de tudo o que se possa imaginar. Não há mais agressividade, rudeza no trato, timidez, temperamento calado, nada disso, só há transtornos e desordens. Quando expira a patente de uma droga, seu fabricante se apressa a criar, novamente com a ardorosa colaboração de cientistas e psiquiatras contratados ou subvencionados generosamente, uma nova doença, a que a mesma droga se aplique, mudando apenas de nome. Emoções antes normais em qualquer ser humano podem facilmente revelar-se transtornos ou desordens, conforme o freguês e a moda psiquiátrica corrente. Não se fica mais triste, fica-se deprimido. Não se fica mais ansioso pela antecipação de alguma coisa, fica-se com distúrbios de ansiedade. E para tudo há uma pílula.

Claro, chegaremos, se já não chegamos e ainda não nos demos conta, ao ponto em que todo indivíduo, se confrontado com um hipotético "padrão normal", será portador de vários transtornos, distúrbios e desordens. Qualquer acontecimento que afete suas emoções, seu estado de ânimo ou mesmo seu bem-estar físico deverá ser objeto de controle medicamentoso. Posso até imaginar que talvez já exista, e no futuro poderá prosperar, a figura do PP, o Personal Psychiatrist, não para receitar ou atender no consultório seu cliente milionário, mas para acompanhá-lo ao longo de todo o dia, ministrando-lhe a droga apropriada para a manifestação de qualquer de seus inúmeros distúrbios.

A infância, com a falsa descoberta de um número alarmante de bebês portadores de transtorno bipolar, passou a ser uma doença. Assim como, com toda a certeza, a puberdade, a adolescência, a jovem maturidade, a meia-idade e a velhice. Tudo doença, é claro, bola nisso tudo, bola em toda a existência, você é que pensa que é sadio, é porque não procurou direito sua doença. E, aliás, sugere a prudência que escolhamos logo nossos transtornos, desordens e distúrbios, porque do contrário poderemos estar sujeitos a que escolham por nós. E ninguém escapará, porque o objetivo é englobar toda a Humanidade.

O problema não é a ciência decretar que, de uma forma ou de outra, somos todos malucos. Isso todo mundo às vezes pensa. O problema é quando decidem qual é a nossa maluquice e nos forçam a uma "normalidade" que não queremos e não temos por que aceitar. A chancela da ciência pode ser adulterada. E não é impossível que, em determinadas situações, divergências com o Estado, ou com grupos de poder, acarretem muito mais que censura às artes e à imprensa. Podemos ser forçados a agir "normalmente" e considerados insanos, se discordarmos da normalidade oficial. Na União Soviética, houve tempo em que quem divergia do Estado era carimbado como doido varrido e encafuado num hospício. Tenho medo de não me encaixar na portaria da Anvisa que defina a normalidade e ser obrigado a tomar um Abestalhol por dia.
Estadão
O Globo
15/07/2012 

quinta-feira, 12 de julho de 2012

God Help The Girl - Come Monday Night

The Enemy - Saturday

Eliane Cantanhêde - De rei a cão sarnento

BRASÍLIA - "Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, não fica nada", dizia Ivan Lins nos anos 1970, repetiu ontem Demóstenes Torres, o segundo senador cassado pelos seus pares em 188 anos.
Estava sendo contraditório. Se ele é "bode expiatório", como diz, não vai cair mais nenhum rei, nem de ouros nem de paus. Tudo como dantes.

Ontem mesmo, a Câmara começou a inocentar os deputados envolvidos de alguma forma nesse esquemão do Cachoeira que inundava o Centro-Oeste e respingava em toda parte. Só sobrou o tucano Carlos Alberto Lereia para contar a história - e ser julgado pelo Conselho de Ética.

Demóstenes, porém, não é só um rei a mais no castelo de cartas que começou a ruir em 29 de fevereiro, com a prisão de Cachoeira e a profusão de fitas. É um rei muito especial. Quanto mais alto, maior é o tombo. Demóstenes desabou do trono.

Como procurador, foi presidente do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais de Justiça. Como senador, presidiu a poderosa Comissão de Constituição e Justiça. Filiado ao DEM, era líder do partido no Senado e potencial candidato a vice-presidente da República.

E, como arauto da ética e da moralidade, conquistou respeito e simpatia até mesmo no Supremo e na imprensa. Mas, ao ser cassado, era um ser absolutamente solitário -"cão sarnento". Tudo tinha, nada tem.
Se Renan, Sarney, ACM e Jader tiveram suas tropas de choque, Demóstenes morreu só e seu enterro foi sem choro nem vela. Nem ira nem comemoração, só silêncio. Desolador.

Demóstenes se vai e a CPI tende a ir atrás da campanha municipal, de palanques e holofotes, já que "a justiça foi feita" e o bode já expiou sua culpa. O resto? Deixa a polícia fazer. Reis, rainhas, cavalos e torres vão continuar deslizando em segurança no tabuleiro, até surgirem outros Demóstenes, outros Luiz Estêvão. Vai demorar. Caiu uma peça, vem o suplente aí. E o jogo continua.

elianec@uol.com.br
Folha de S.Paulo
12/07/2012

Duke Special - "Everybody Wants a Little Something"

Mash Up

"É mais fácil vencer um mau hábito hoje de que amanhã"
                            
                                                                 Confúcio

Mais vozes contra o Estado-anunciante - EUGÊNIO BUCCI

Há quase dois meses, no dia 17 de maio, neste mesmo espaço, apontei a distorção perversa trazida pelo recrudescimento do Estado-anunciante no Brasil. É bem verdade que não foi a primeira vez que toquei no assunto. Há pelos menos dez anos essa nova modalidade do patrimonialismo pátrio - o uso de verbas públicas para fins de propaganda partidária (que corresponde a interesses particulares) - vem crescendo a um ritmo que clama por atenção. No artigo de 17 de maio traduzi as razões de preocupação em números, com as cifras rombudas que as autoridades despejam anualmente no mercado publicitário. No mesmo artigo listei as razões pelas quais a hipertrofia do Estado-anunciante é, por definição, antidemocrática.

Agora peço licença ao leitor para insistir. O motivo é muito simples: de dois meses para cá, outros três articulistas - Fernando Henrique Cardoso, J. R. Guzzo e Vittorio Medioli - passaram a denunciar o mesmo problema, o que pode prenunciar algo de novo no horizonte.

Antes de relermos o que escreveram os articulistas, convém deixar bem claro por que é inaceitável a hipertrofia do Estado-anunciante. Ele se impõe como uma força unilateral, pró-governo, que desequilibra com o peso de milhões e milhões de reais as disputas eleitorais e a pluralidade do debate político no País. No limite, tende a sabotar o princípio da alternância no poder, uma vez que só existe para convencer o eleitor de que o governo em curso (qualquer que seja ele) é o melhor do mundo.

Tomemos o exemplo da cidade de São Paulo, que terá eleições para prefeito este ano. Aqui a Prefeitura pôs no ar, no primeiro semestre, uma campanha que mais parecia uma avalanche propagandística para entorpecer o cidadão. A pretexto de "informar" o contribuinte, as peças promocionais repetiram à exaustão o slogan "antes não tinha, agora tem", tentando provar que hoje o paulistano conta com serviços de saúde e educação deslumbrantes, esplêndidos, paradisíacos, gozosos como nunca teve.

Óbvio número 1: esse tipo de publicidade é propaganda eleitoral antes da abertura do período eleitoral regulamentar. É partidária, ostensivamente partidária. A publicidade governista, ainda que formalmente não descumpra a lei, não está propriamente em sintonia com os princípios que orientam a legislação eleitoral vigente. Fingindo "informar" o eleitor, faz campanha eleitoral explícita e antecipada, ainda que não fale de candidatos.

Óbvio número 2: todos os governos agem assim. Todas as prefeituras, todos os governadores dos Estados e, claro, o governo federal, que é incontestavelmente o campeão invicto nesse esporte nacional.

A solução para conter o Estado-anunciante é uma só: a lei teria de estabelecer, se não a proibição total, ao menos uma barreira sólida de contenção contra as despesas públicas em campanhas publicitárias pagas. Simples assim. Bem sabemos que o Congresso dificilmente tomará essa pauta como prioridade, pois os parlamentares, comprometidos com agendas partidárias, não vão espontaneamente contrariar o apetite que os governantes têm por visibilidade. Portanto, é preciso quebrar a inércia.

Para quebrá-la a mobilização deve nascer da opinião pública. De três semanas para cá, outras vozes passaram a falar contra o Estado-anunciante. Não exageremos com a esperança, mas talvez elas contribuam para um pouco de lucidez no ambiente político. Uma dessas vozes é a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. No dia 3 de junho, um domingo, em sua coluna aqui, no Estado, nesta mesma página, ele escreveu: "Será que é democrático deixar que os governos abusem nas verbas publicitárias ou que as empresas estatais, sub-repticiamente, façam coro à mesma publicidade sob pretexto de estarem concorrendo em mercados que, muitas vezes, são quase monopólicos? (...) O efeito deletério desse tipo de propaganda disfarçada não é tão sentido na grande mídia, pois nesta há sempre a concorrência de mercado que a leva a pesar o interesse e mesmo a voz do consumidor e do cidadão eleitor. Mas nas mídias locais e regionais o pensamento único impera sem contraponto".

O ex-presidente alerta para o peso que as verbas públicas adquiriram nos veículos de médio porte, que, muitas vezes, acabam se tornando dependentes dessa receita. Ora, se são economicamente dependentes das contas governamentais, eles talvez percam independência editorial quando se trata de criticar a administração pública. Também por isso, o Estado-anunciante hipertrofiado é indesejável na democracia.

A segunda voz que se levantou foi a de José Roberto Guzzo, ex-diretor e atual colunista da revista Veja. Em sua coluna de 6 de junho, sob o título Nós e os outros, ele definiu bem a distorção com que temos convivido, que seria repelida em qualquer democracia: "Dá para imaginar o governo da Itália, por exemplo, gastando fortunas na mídia para dizer 'Itália - um país para todos'? Ou algo assim: 'Prefeitura de Londres - antes não tinha, agora tem'? Não dá. O funcionário que sugerisse uma coisa dessas seria provavelmente encaminhado a uma instituição psiquiátrica".

Além de FHC e de Guzzo, Vittorio Medioli, ex-deputado federal por Minas Gerais, primeiro pelo PSDB e depois pelo PV, e proprietário da Editora Sempre, que publica os jornais O Tempo e SuperNotícias, em Belo Horizonte, argumentou na mesma linha. Em editorial publicado em O Tempo, de 10 de junho, Medioli afirmou: "O aspecto nefasto desse acintoso desperdício, que solapa verbas destinadas a quem as gerou (os contribuintes), paradoxalmente se verte contra os próprios, pois até um imberbe jovem compreende que essa mídia, além de cara, frauda uma realidade bem diferente e desequilibra eleições".

Que surjam outras vozes. Se a sociedade não falar, a propaganda governamental vai virar um monólogo no Brasil.

Estadão
12/07/2012 

terça-feira, 10 de julho de 2012

Bois de Bologne - Alcione Araújo‏

"Tragado pela globalização, o país se rendeu à língua tecnológica do mercado" 
 
Alcione Araújo


 
Mais que lei municipal, dar nome a prédio – residencial, comercial ou condomínio – é prática que o marketing manipula na estratégia de venda. O batismo, que teve motivações afetivas, hoje induz o comprador a crer que, morando no imóvel, viverá os estados (ou status?) de espírito sugeridos pelo nome. Para quem crê em mágica!

No começo, as casas louvavam as matriarcas na fachada: Villa Madalena, Dolores, Lorena. Logo, a tradição impôs a fé: os prédios se chamavam São José, Reis Magos, Santa Inês, São Marcos. Ou cultuavam heróis: Edifício Tiradentes, Cláudio Manoel da Costa. Ou poderosos: Edifício Pedro II, Maurício de Nassau, José Bonifácio, Getúlio Vargas, etc. Ou famílias notáveis: Palacete Dantas, Solar Matarazzo, Parque Guinle, Edifício Martinelli. Na era do Brasil-brasileiro, de fé no desenvolvimentismo, tudo o que era nativo, pessoas ou coisas, tinha valor: Edifício Jequitibá, Araucária, Jacarandá, Ipê, Magnólia. Ou Edifício Ametista, Topázio, Safira. Ou de municípios ou estados: Edifício Bahia, Belém, Natal. De origem geográfica: Edifício Rio Bravo, Mantiqueira, Itambé, Copacabana, Sete Quedas, Praia Grande. De animais e aves: Edifício Gaivotas, Andorinha, Uirapuru, Albatroz, Moby Dick, Juriti, Beija-flor... 

Os construtores descobriram o mundo e convenceram compradores de que seriam cosmopolitas morando nos edifícios Roma, Paris, Lisboa, Nova York. Ou herdariam na compra o charme da cidade: Edifício Ibiza, San Remo, Saint-Tropez, Biarritz, Cap Ferrat, Juan les Pins. Ou a nobreza de castelos e palácios: Edifício Versalhes, Rochefoucauld, Chambord, Chantilly, Windsor, Fontainebleau ou Liechtenstein. Ou o luxo da região: Edifício Mediterrâneo, Alpes, Adriático, Champs Elysées. Ou a beleza das flores: Edifício Bougainville, Flamboyant, etc. Era chique nome francês!

Enfim, acharam a arte e, como em Paris, puseram nome de artista: Edifício Dante Alighieri, Machado de Assis, Lima Barreto, Castro Alves, Cervantes, Shakespeare, Camões, Baudelaire. E personagens: Edifício Capitu, Gabriela Cravo e Canela, Anna Karenina, Diadorim, Dom Quixote, etc. A arte que transferia elegância, cultura e charme ao morador era a música erudita: Edifício Beethoven, Mozart, Brahms, Vivaldi, Stravinsky, Chopin, Debussy, Bach, Wagner, Mahler, Tchaikovsky, Ravel, Verdi. Nativo, só Villa-Lobos. Os populares nada agregavam em luxo e nobreza. 

Só a pintura tinha mais charme que a música. E tome Edifício Velásquez, Da Vinci, Kandinski, Salvador Dalí, Renoir, Miró, Portinari, Picasso, Paul Cézanne, El Greco, Michelangelo e até Van Gogh – onde o charme e a elegância na biografia do gênio depressivo com surtos mentais, que cortou a própria orelha e se matou na miséria?

Tragado pela globalização, o país se rendeu à língua tecnológica do mercado global. Prédios inteligentes e sustentáveis têm no nome o conceito do projeto, seco e frio: Business Center, Quality House, Central Park Prime, Green Park, Wave Residence, Black Stone, Onlimited Ocean Front, Independenza e Jardins de Provence até o multilíngue Chateau Monet Residence Garden. Daí o famoso comprador que ensina, ao celular, a anotar o nome do seu prédio: “Escreva bois. Boi, o marido da vaca. Diz-se boá, mas escreve bois. Boá de bolonhe”. E soletra: 
“B, o, u, l, o, g, n, e”.

Death In Vegas - Scorpio Rising

Vem aí o horário eleitoral (que não é nada gratuito) - Eugênio Bucci

Em agosto, quando as eleições municipais esquentarem um pouco mais, entrará no ar o famoso horário eleitoral “gratuito”. Que não é gratuito coisa nenhuma. Muita gente paga por ele, a começar de nós mesmos: eu, você e os demais cidadãos. Isso mesmo. Você paga - e não paga pouco.

Funciona assim: primeiro, as emissoras exibem a propaganda política - os programas partidários ou o horário eleitoral - e, depois, na hora de pagar o Imposto de Renda recebem uma compensação fiscal em troca dos minutos que cederam aos partidos políticos. Ou seja: o Fisco deixa de arrecadar tributos. O Estado paga a encomenda. Indiretamente, é a sociedade quem paga a conta.
E de quanto é a dolorosa? Tomemos como base o ano de 2010, quando tivemos eleições presidenciais. Naquele ano, a compensação fiscal dada às emissoras pela transmissão da propaganda eleitoral impôs aos cofres públicos um corte de R$ 850 milhões. Foi a própria Receita Federal que fez a estimativa, conforme noticiou oficialmente a Agência Câmara, logo em 17 de agosto de 2010. É curioso. Falam em aprovar no Brasil o financiamento público das campanhas políticas. Mas, quando olhamos para esses R$ 850 milhões, não há outra conclusão possível: uma parte - parte expressiva, muito expressiva - do financiamento das campanhas eleitorais já é pública. E cara.

Vamos repetir esse número. São R$ 850 milhões num ano só. Você acha muito? Acha que é uma remuneração razoável pelo tempo de todas as emissoras do Brasil? Para as próprias emissoras, a conta não bate. Elas afirmam que, na prática, os cifrões que deixam de recolher ao Fisco ficam bem abaixo do que ganhariam se o horário fosse vendido normalmente. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), embora afirme respeitar o horário eleitoral como um canal de esclarecimento para o eleitorado, não esconde que, para as empresas de radiodifusão, as campanhas eleitorais são financeiramente um péssimo negócio - e ainda por cima espantam a audiência. Pela lei, as rádios e TVs poderiam recuperar até 80% do valor de tabela dos minutos que cederam. No mundo real, porém, elas recuperam menos e arcam, também elas, com parte do prejuízo.

Até aqui, portanto, nós pagamos uma fatia da fatura, e as emissoras pagam outra. Só que a cobrança não termina aqui. Ela continua, com juros e correções especulativas, no nebuloso mundo das agressões e dos conchavos entre os caciques da política pátria. Eles também são chamados a assumir despesas. Eles também desembolsam seus patrimônios - constituídos de outras moedas.

Os caciques são diferentes em tudo, a não ser numa certeza, que compartilham sem a menor cerimônia: para eles, tempo não é apenas dinheiro - tempo é poder. O tempo de propaganda eleitoral na TV e no rádio é sinônimo de votos (essa moeda valiosa), e votos empilhados são um sinônimo indiscutível de poder. Estamos num país em que os agentes políticos acreditam que todo o poder emana do horário eleitoral (que não é gratuito, como você está vendo). Por um minuto a mais de televisão, os chefes partidários são capazes de dar tudo, de empenhar tudo. Aliam-se a belzebu, penhoram a reputação (essa moeda depreciada), rifam a biografia. E que fique bem claro: não é o caso de um ou de outro caudilho, de uma ou outra “pasionaria” - é o caso de todos eles (e elas), mesmo dos que (ou das que) se lamuriam, mas no fim das contas se acomodam.

Nunca antes na história deste país se atribuiu tanto poder à imagem. Nunca tantos pagaram tão caro por tão inflacionados closes de televisão. Se na guerra os generais contam tanques e ogivas, na política brasileira contam segundos, décimos de segundo. As alianças não têm sentido ideológico nenhum, é tolice choramingar. Elas têm sentido publicitário. É o que basta. Os ideólogos foram escanteados pelos marqueteiros, para sempre, e os marqueteiros custam os olhos da cara e os zarolhos da coroa.

Alguns se perguntam, incrédulos, se a televisão vale tudo isso. Outros elucubram sobre o grau de influência da internet sobre a formação da vontade do eleitor. À toa. Na cabeça dos caciques, a TV é o tabuleiro (picadeiro?) da política. E é isso mesmo. A TV é o centro, de um jeito ou de outro. As redes sociais ecoam o que a televisão pauta. Funcionam como linha acessória. Por enquanto, ao menos por enquanto. O campo de batalha é a TV, com suas ilusões e seus fetiches traiçoeiros. Como esse de parecer que, nela, a imagem nos chega de graça, como a chuva no Cerrado -como o sorriso dos demagogos.

R. Época
09/07/2012

A Charge nossa de cada dia - Thomate

João Pereira Coutinho - Flores de obsessão

A obra-prima de Woody Allen não se resume a um filme ou dois; ela é retocada ao ritmo de um por ano


WOODY Allen tem 47 filmes no currículo. E quando lhe perguntam se existe um único que ele compare aos melhores de Ingmar Bergman, Woody é modesto: nem um.

A frase sempre me pareceu excessiva: "Crimes e Pecados" (1990) está ao nível de "Morangos Silvestres" (1957). E "Zelig" (1983) não tem paralelo como comédia nos últimos 30 anos. O problema de Woody não é falta de obra-prima. É falta de obra-prima recorrente. Depois de "Crimes e Pecados", há coisas boas aqui e ali. E algumas joias antigas, como "Manhattan" (1979) ou "Hannah e Suas Irmãs" (1986).

Mas Bergman, admito, era capaz de fazer cinco filmes seguidos que mudavam a cultura de uma época. Quem começa com "Mônica e o Desejo" (1952) e termina o festim com os referidos "Morangos" sabe que não minto.

Por isso assisti a "Para Roma com Amor" sem expectativas homéricas. Os cínicos dirão que Woody Allen deixou de dirigir filmes. É hoje guia turístico que vai para onde lhe pagam: Londres, Barcelona, Paris. Quem sabe o Rio.

O próprio alimenta o mito: tempos atrás, de passagem por Portugal, perguntaram-lhe quando filmaria ele em Lisboa. Woody foi honesto: "E você consegue o dinheiro?"

Certo. Sem dinheiro, não há obra. Mas "Para Roma" não é mera encomenda italiana. É, como sempre acontece, um pretexto para revisitar os temas que são caros ao "autor" (e uso a palavra com o seu significado clássico).

O próprio Woody, aliás, assume essa condição metacrítica no filme. Por exemplo, quando os personagens contemplam as ruínas romanas e confessam sofrer de "Melancolia de Ozymandias".

Trata-se de uma referência erudita ao poema de Percy Shelley (1792-1822) sobre a estátua de Ozymandias, "rei dos reis", e testemunho material da inutilidade da existência quando a morte é certa.
Shelley escrevey "Ozymandias" em 1818, mas o poema deixou de lhe pertencer em 1980 quando foi apropriado por Woody "himself", em seu incompreendido "Stardust Memories - Memórias" (1980). É a primeira vez que um personagem seu é diagnosticado com a doença.

O cinema de Woody Allen é feito de evocações eruditas que se repetem de filme para filme. A tribo é a mesma: Shelley, Yeats, Rilke, sobretudo as linhas finais de "O Torso Arcaico de Apolo", presente neste filme pela boca pedante da personagem de Ellen Page (e presente em "A Outra", com força dramática decisiva).
Mas não são apenas as evocações eruditas que se repetem. Todo o resto retorna, a começar pelo amor romântico, pelos equívocos do amor romântico, pela tensão constante entre a razão e a emoção -a perpétua batalha em que a última vence temporariamente o confronto.

São incontáveis os filmes de Woody Allen em que os personagens (masculinos) se jogam pela janela amorosa, mesmo que o salto seja efêmero e suicidário. O ator Jesse Eisenberg representa em "Para Roma" o mártir sentimental da história. Eisenberg nasceu em 1983.

Mas, antes de ele nascer, muitos outros já tinham pulado pela mesma janela. A começar pelo próprio Woody Allen, como Alvy (em "Annie Hall") ou Isaac (em "Manhattan").

Não temos cura. E, para um longo cliente da psicanálise, nem o divã nos salva: haverá paciente que tenha dedicado à terapia tantas linhas de irrisão? "Se você encontrar Freud, peça-lhe o meu dinheiro de volta", diz ele à mulher psiquiatra (Judy Davis).

Finalmente, o melhor do filme: a história do cantor de ópera que só funciona no chuveiro. E que é levado para os palcos italianos com o chuveiro atrás.

É preciso ter passado décadas nas páginas da "New Yorker", a casa de S.J. Perelman ou Robert Benchley, para escrever uma gag dessas. Uma gag comparável ao casal que só conseguia transar em espaços públicos (em "Tudo o que Você queria Saber sobre Sexo"). Ou ao ator que estava fora do foco na vida real (em "Desconstruindo Harry").

Sim, são 47 filmes. Um ou dois não fazem má figura quando Bergman está por perto. Mas a obra-prima de Woody Allen não se resume a um filme ou dois. Na verdade, ela ainda está a ser retocada, ao ritmo de um filme por ano.

Um dia, quando olharmos para o conjunto, veremos que a repetição também é uma arte. E que os gênios são, como dizia Nelson Rodrigues, flores de obsessão.

jpcoutinho@folha.com.br
Folha de S.Paulo
10/07/2012 

Chairlift - "Amanaemonesia"

‘Chulé de Apolo’, ‘Flor-de-lis’

Um livro cataloga os apelidos dos escritores brasileiros
Carlos Drummond de Andrade é o “Urso polar”, Clarice Lispector é a “Flor-de-lis”, Mário de Andrade é a “Boneca de piche” e Dalton Trevisan, como é mais notório, é o “Vampiro de Curitiba”.

  Claudio Cezar Henriques, professor da Uerj, está lançando um livro que entrega um lado pitoresco da intelectualidade pátria. É o “Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira”. A edição, em capa dura, é da curitibana Appris.

 Cada apelido é acompanhado com verbete explicativo. Augusto Frederico Schmidt é o “Gordinho sinistro” porque desde o início da carreira tinha obsessão pela morte. Consta também quem deu o apelido. O do “gordinho” foi dado pela crítica Cecília Prado.

Claudio Cezar acha que apelidos podem ser uma boa maneira de se estudar a sociedade brasileira. “Se observarmos os apelidos de escritoras, veremos revelada a forma como nossa sociedade trata as mulheres. Praticamente todos os apelidos femininos são de reverência e endeusamento”, diz.

Os apelidos de Ledo Ivo e Oswald de Andrade saíram de um bate-boca entre eles. “Você é o ‘Calcanhar de Aquiles do Modernismo’. Oswald: “Você é o ‘Chulé de Apolo da geração de 45’”.


APELIDOS PARA UBALDO, FERREIRA GULLAR E OUTROS


 Anjo disfarçado: Mário Quintana
 
Bandeirante de livro: Monteiro Lobato
 
Coitado orangotango: Caldas Barbosa
 
Balzac brasileiro: Laurido Rabelo

 Dândi carioca: João do Rio
 
Doutor tristeza: Augusto dos Anjos
 
Gedeão do modernismo: Menotti del Picchia
 
Gogol brasileiro: Lima Barreto 

Guarda-noturno da literatura: Osório Duque-Estrada
 
Hemingway da Bahia: João Ubaldo
 
Rasputim da linha justa: Jorge Amado
 
Ratazana ao molho pardo: Cassiano Ricardo
 
Noivo da morte: Álvares de Azevedo 

 Periquito: Ferreira Gullar
CL. Gente Boa
O Globo
10/07/2012

Martina Topley-Bird canta "Baby blue"

Tenho saudades da 'alma' do cinema

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
 
Muita gente chega para mim e diz: "Como é? Não vai fazer outro filme?" "Sei lá", respondo. E penso: "Que cinema? Comercial, metafísico, político, experimental? O quê?" Às vezes, me dá vontade de filmar alguma coisa tênue, poética, não mergulhada no labirinto de produção e distribuição. Nos anos 60, buscávamos um cinema essencial, o chamado "específico fílmico", que estaria talvez nos filmes de Eisenstein, ou em Murnau, ou em Dreyer, sei lá. Os cinéfilos pensavam: "Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?" Isso me faz lembrar uma famosa frase do grande cineasta fundador Humberto Mauro que, aliás, já contei aqui nesta coluna. E repito.
Na verdade, tenho saudades do cinema, sim, justamente na época atual, em que as imagens inundam nossos olhos e ouvidos. Mas, tenho saudades de outro cinema, da fragilidade dos filmes antigos e da ideia do "objeto único" a que eles almejavam. Pouco antes de sua morte, conversei com Louis Malle sobre isso, no Rio - falamos do sonho, da utopia dos anos 60, alimentada pelo Cahiers du Cinéma, pelos círculos de fumaça dos "Gitanes" sem filtro, saudades do frisson culto das cinematecas.
Atualmente, a 'cinefilia' soa quase como um vício sexual; talvez tenha sido. Há um mundo secreto, próprio do cinema, que só alguns ainda conhecem. Hoje o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, está nos hotéis, na ponta dos dedos dos insones, está nas TVs, está rodando bolsinha nas ruas. Mas, se eu reclamo desta profusão, dizem: "Ah, qual é a tua, cara? Isso é bom para o cinema, aumenta a difusão no mercado, etc. e tal.!" Talvez, talvez, mas tenho saudades da sala escura, do cinema segredo, do cinema dos pobres tímidos e solitários, do cinema como realidade alternativa que analisávamos noite adentro nos bares. Como era bom esperar um filme do Fellini, e o novo Antonioni, e o novo Godard... Não chego a ser um cinéfilo puro. Falta-me o gosto arquivista, o detalhe das fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood. Mas tive e tenho amigos que me calam de respeito. Cinéfilo era, por exemplo, o Manuel Puig, o escritor e roteirista argentino que morou no Rio. Ele sabia tudo de qualquer filme. Outro dia, li um artigo sobre os últimos dias de Puig em Cuernavaca, no México. O relato era uma cena digna dos melodramas B que ele amava. Em sua vida, Puig tinha adotado dois "gays" jovens que ele chamava de suas "filhas". Uma delas era Yasmin, "filha" dele com o Ali Khan -, pois Puig brincava com a fantasia de ser a Rita Hayworth; a outra, (esqueci o nome) era "filha" dele (dela) com Orson Welles.
Pois bem, uma noite, velando por sua agonia, à beira do leito do hospital, a "Yasmin" achou que Puig já estava em coma. Mas, na esperança de uma melhora, resolveu testar os sinais vitais de sua "mãe". Segredou-lhe: "Mamãe... ontem eu vi Stella Dallas do King Vidor na TV... chorei tanto..." Eis que a "mãe" Puig balbuciou-lhe do leito: "É... a Barbara Stanwyck está ótima... mas o John Boles nunca me emocionou muito." Yasmin, a bichinha cinéfila, caiu em prantos e ligou eufórica para a "irmã": "Mamãe está melhorando!"
Nesta época, o cinema ainda tinha a tal "alma" que hoje desapareceu nos supermercados e videoclubes. Por isso, me lembrei do Humberto Mauro, que conheci já velhinho. Quando ele fazia seus filmes dos anos 20/30 nos fundos de quintal em Cataguazes e, depois, na Cinédia, todo amigo que ele encontrava na rua dizia para ele: "Humberto, meu querido, você precisa ir no meu sítio filmar a cachoeira que tenho lá! Você vai ver que cachoeira!" E o Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: "Por que querem que eu filme cachoeiras?" Toda hora era isso: "Rapaz, eu vi uma cachoeira incrível pra você filmar num lugar assim, assim!" Humberto Mauro não entendia por quê. Um dia, ele deu uma palestra num cineclube do interior quando, na volta, já na estação, atrasado para pegar o trem, um dos garotos agarrou-o pelo paletó e suplicou-lhe que decifrasse o grande enigma: "Seu Mauro, afinal de contas, diga, qual é a 'essência', a 'alma' do cinema?" E o velho Mauro, em meio à fumaça da locomotiva, teve a grande intuição e deu-lhe a resposta inapelável: "Cinema, meu filho, é cachoeira! É cachoeira!" Esta frase ficou famosa entre os então "amantes da Sétima Arte". E ela me remete a outra definição, do filósofo Henri Bergson, a quem os irmãos Lumière mostraram sua recente invenção: "Creio que o cinematógrafo será útil para sabermos, no futuro, como os antigos se moviam..."
Talvez seja esta a "essência" do cinema: registrar a morte comendo a vida. Hollywood é um lancinante cemitério de estrelas. São beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Fred Astaire dança no ar do nada, James Dean anunciava a morte em sua melancolia trágica. Sei como dói amar uma morta - eu que me apaixonei por Brigitte Helm em Metrópolis e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks e Cid Charisse, na necrofilia da sala escura.
Por isso, a ideia de cachoeira é a metáfora melhor. Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras devem ser retratadas na busca de alguma verdade. A grande desilusão do século 20 foi a tentativa de capturar a vida incessante em fórmulas que a esgotassem.
Não há uma realidade que se congele. Buscá-la, tanto no cinema quanto na ideologia e política, é fracasso certo.
Hoje, vemos que quanto mais aberta a máquina do mundo, mais vazia e misteriosa ela se torna. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, descrevê-la não a condensa nem explica; ao contrario, dá em tragédia. Hoje, tanto no fanatismo do Oriente, quanto na monolítica massificação ocidental, vemos este perigo e desejo.
Na verdade, somos uma cachoeira olhando a outra e nossas ações têm este fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, nunca veremos fim ou início. A cachoeira é a melhor definição do cinema ou da vida.

H+ The Digital Series - Trailer da série produzida por Brain Singer para a web, com estreia marcada para o dia 8 de agosto, no YouTube

Brian Singer prepara ‘H+’, nova série feita para a web


Em programa, milhões de pessoas morrem quando chips de comunicação são atacados por um vírus


NOVA YORK — Ainda não chegou o dia no qual as pessoas poderão se conectar a internet através de microchips implantados em seus corpos, para então enlouquecer e quase aniquilar a raça humana. Mas Bryan Singer está satisfeito em acelerar esse futuro, mesmo que ele coloque em risco seu meio de trabalho. O diretor de filmes como "Os suspeitos", "X-Men" e "Operação Valquíria" é o produtor de uma nova série para a web chamada "H+", com estreia marcada para o dia 8 de agosto, no YouTube.
Em "H+", criada por John Cabrera e Cosimo de Tommaso, milhões de pessoas têm chips de comunicação instalados em seus corpos e acabam sendo exterminadas quando um vírus ataca esses chips. Saltando para frente e para trás no tempo, a série segue os sobreviventes, enquanto explora as origens da tecnologia causadora da tragédia. Enquanto os espectadores contemplam essa união entre homem e máquina, Singer tem pensado sobre a mistura séries de TV e a web.
"Em algum momento essas mídias vão se fundir e haverá alguma mudança na forma como vemos o conteúdo", disse numa entrevista ao New York Times, "Só espero que isso não afaste as pessoas dos cinemas, pois esse é o meu trabalho oficial", completa com uma risada.
Singer, que também produziu "House", disse que "H+" foi oferecida a sua produtora "Bad Hat Harry" como uma série de TV. Mas a aptidão do programa para a web ficou clara por conta da ênfase em tecnologia e do momento crucial no qual "todos esses implantes dão defeito e criam uma morte apocalítica".
"Saltando entre os pequenos episódios na web, a audiência consegue elucidar o mistério", diz, "Ao contrário de uma série na qual você pode se perder, aqui os episódios são curtos, de três a seis minutos, então cada um vira um gancho ou uma peça num grande quebra-cabeças”.
O obejtivo de Singer com "H"+, cujo diretor é Stewart Hendler (“Pacto Secreto”), é apresentar uma série cinematográfica, com imagem e som de alta-qualidade, mas exibida na web.
Não que ele esteja se afastando do cinema ou da TV. Singer está trabalhando na pós produção de “Jack - O Matador de Gigantes”, uma fantasia a ser lançada em 2013, e também está dirigindo o piloto de “Mockingbird Lane”, que promete ser uma versão atualizada da série dos anos 1960, "The Munsters".

Vej trailer: http://www.youtube.com/watch?v=MVekrZ-H5Pc

 

C2C - Down the road

domingo, 8 de julho de 2012

Um filme do Carax - SERGE KAGANSKI

Diário de Paris
O MAPA DA CULTURA
Um filme do Carax

Cineasta volta em triunfo a seu reino
Folha de S.Paulo
08/07/2012
 
SERGE KAGANSKI
 
TRADUÇÃO PAULO WERNECK
 
PARA A MAIOR PARTE da crítica francesa, "Holy Motors", de Leos Carax, foi o grande acontecimento do último festival de Cannes e, depois, do verão cinematográfico (o filme estreou na França na quarta-feira passada e ainda não tem previsão de lançamento no Brasil).

Celebrado pela invenção e pela beleza, o filme deixou os críticos felizes por mostrar em grande forma artística um cineasta que eles acreditavam ser um caso perdido. Leos Carax foi o geninho do cinema francês nos anos 80, quando rodou "Boy Meets Girl" (no Brasil, "Encontros e Despedidas" e "Rapaz Encontra Garota", 1984) e depois "Sangue Ruim".

Seu terceiro filme, "Os Amantes do Pont Neuf"(1991), foi uma catástrofe financeira que manteve Carax longe do cinema por um bom tempo. Ele fez o belo e desigual "Pola X" em 1999, depois um segmento do filme coletivo "Tokyo!" em 2007, mas sem alcançar o sucesso.

Ou seja, de 1992 até hoje, Leos Carax era mais um fantasma intermitente do cinema que um cineasta desenvolvendo sua obra. A beleza de "Holy Motors" reside talvez nessa longa ausência e no efeito ressurreição: afastado por diversas razões, um grande cineasta melancólico volta triunfalmente a seu reino.
O trailer do filme, com legendas em inglês, pode ser visto em bit.ly/holymot.
 
OS PODALYDÈS...

Se Carax viveu um longo eclipse, faz uns bons 20 anos que os irmãos Podalydès encantam regularmente o cinema e o teatro francês. Bruno, o diretor, semeia filmes que são pura fantasia, enquanto Denis, o ator, tornou-se um dos maiores e mais produtivos puxadores de bilheterias do país.

Os dois estão em "Adieu Berthe - l'Enterrement de Memé" (adeus, Berthe - o enterro de vovó), melancólico filme sobre a família, as relações entre casais, entre irmãos, entre gerações (trailer, em francês, em bit.ly/adieuberthe).

Eles também estão presentes no último Alain Resnais, "Vous n'Avez Encore Rien Vu": Denis interpreta o duplo ficcional do diretor e dirige um filme dentro do filme.

E não é só isso. O incansável Denis dirige no teatro parisiense Bouffes du Nord o clássico de Molière "O Burguês Fidalgo", primeira comédia sobre o acesso da classe média à cultura.

A direção é total, repleta de cores (figurino de Christian Lacroix), de movimento, música, balés, fiel ao espírito original da peça. Denis olha com empatia a esse burguês, às vezes ridículo, do qual gostamos tanto de caçoar.
 
...E OS DARDENNE

Os irmãos Dardenne são mais famosos que os Podalydès. Eles não apresentaram nenhum filme em Cannes neste ano, mas Luc acaba de publicar "Sur l'Affaire Humaine" (Seuil), obra seriíssima e até mesmo grave.
Construída em capítulos curtos, impregnada de filosofia (Levinas) e psicanálise (Freud), esse livro mergulha em águas profundas, examinando temas como a morte, a violência, a relação com o outro, a ausência de deus.

Cabeça, complexo, o pensamento de Luc Dardenne jamais é esotérico: o cineasta-escritor se expressa em linguagem clara, acessível, e reflete sobre questões que podem assombrar cada um de nós em cada momento de nossas vidas. Esse livro é também um facho de luz valioso no húmus profundo no qual se enraíza o cinema dos Dardenne.
 
"FRENCH TOUCH"

Por um bom tempo, o rock francês foi ruim ou, no máximo, não passava de uma cópia do anglo-saxão. Na onda do "french touch" e de bandas como Daft Punk, Air, Justice ou Phoenix, uma nova geração de músicos franceses enfim atingiu uma criatividade original e se inseriu com sucesso na sonoridade pop rock planetária.
A internet sem dúvida contribuiu para que o pop "made in France" saísse da toca. Exemplo atual, o M83, que existe desde 2001, faz turnês pelo mundo inteiro, inclusive nos EUA.

Hoje, o M83 é essencialmente um rapaz, Anthony Gonzales, que foi morar em Los Angeles, onde foi contatado para fazer a trilha sonora original de um futuro blockbuster com Tom Cruise ("Oblivion"). O último single do M83, "Midnight City", foi escolhido como jingle pelo TF1, maior canal da TV francesa, para a transmissão da Eurocopa.

Com isso, as vendas de "Midnight City" dispararam, um ano depois da estreia. Será que a TV popular se moderniza ou é o pop que está deixando de ser descolado?

Não importa; a aliança entre dois mundos a priori antinômicos é uma novidade na paisagem francesa. Veja o clipe em bit.ly/midinightcity.

Marcelo Gleiser - Encontrado o bóson de Deus

Na física de partículas, uma "descoberta" é tão rara que a chance de outra explicação é de uma em 3,5 milhões

Como não poderia deixar de ser, nesta semana escrevo sobre a descoberta sensacional do bóson de Higgs, anunciada na última quarta feira, 4 de julho, pelos cientistas do laboratório Cern, em Genebra, na Suíça. Começo repetindo a história de como o bóson de Higgs ficou conhecido como "partícula de Deus".

Obviamente, uma partícula elementar não tem nada a ver com Deus. O apelido vem do título do livro de Leon Lederman, o prêmio Nobel que durante anos caçou a partícula (a busca pelo bóson de Higgs durou ao todo 45 anos!).

Lederman conta que originalmente queria dar ao livro o título em inglês "The Goddamn Particle" ("A partícula Amaldiçoada por Deus" ou simplesmente "A Desgraçada da Partícula"). A ideia era demonstrar sua frustração em não tê-la encontrado. Porém, o editor do livro achou que, com a exclusão de "desgraçada" do título, o livro venderia bem mais. A coisa vingou -para o livro de Lederman e para a partícula.

Mas por que tanta empolgação com o bóson de Higgs, que inclui bilhões de dólares gastos na busca por uma mera partícula?

Essencialmente, o bóson de Higgs era a peça que faltava no chamado Modelo Padrão, que descreve tudo sobre as partículas que conhecemos no Universo. Achá-lo significa completar esse modelo com enorme sucesso.

O papel do Higgs é único entre as partículas: ele é responsável por "dar massa" a todas as outras. Vale lembrar que, na física moderna, as entidades essenciais são os campos. Partículas são excitações desses campos, como pequenas ondas na superfície de um lago. O campo de Higgs estaria por toda a parte, como o ar na nossa atmosfera. Ele interage com os campos de outras partículas: por exemplo, o campo dos elétrons ou o dos fótons (o campo eletromagnético), as partículas de luz. Essa interação tem uma intensidade que varia de campo para campo. É essa intensidade variável que determina a massa das partículas e as suas diferenças.

Por que, então, o nome de "bóson"? As partículas que conhecemos podem ser divididas em dois grupos, chamados genericamente de bósons e férmions. "Bóson" homenageia o físico indiano Jagadish Chandra Bose, que desenvolveu, junto com Einstein, as propriedades dessas partículas. Elas gostam de existir em grupos com muitas delas. O Higgs e os fótons são bósons.

Já os férmions (em homenagem ao físico italiano Enrico Fermi) são mais exclusivos e no máximo aparecem em pares. Os elétrons e os prótons são férmions.

Ninguém "viu" um bóson de Higgs, pois eles se desintegram em outras partículas em minúsculas frações de segundo. O que se "observa" são os vários produtos dessas desintegrações. Os resultados são estatísticos, devido aos bilhões de colisões e desintegrações que ocorrem. Na física de partículas, uma "descoberta" é um evento tão raro que a chance de surgir outra nova explicação é de uma em 3,5 milhões.

O interessante é o que está por vir. Sabemos que a partícula é um bóson. Mas não sabemos se corresponde  à previsão mais simples do Modelo Padrão ou se é algo mais exótico. Todos torcem pelo exótico, pois terão abertas portas para uma nova física. Depois de 45 anos, seria uma pena encontrar só o Higgs.
 
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: goo.gl/93dHI
Folha de S.Paulo
08/07/2012 

Tom e Katie - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

Tom Cruise e Katie Holmes estão se separando. Me lembrei do que escrevi quando eles se casaram, pelos rituais da Igreja da Cientologia. Armani fez não só a roupa do noivo e da noiva para o casamento como a da filhinha de meses do casal – e eu fiquei com a vaga impressão de ter feito um resumo da nossa civilização numa frase. Se me pedissem uma frase para colocar em alguma cápsula do tempo, para ser aberta daqui a 200 anos, eu submeteria o que escrevi. Daqui a 200 anos ninguém mais vai saber quem eram Tom Cruise, Katie Holmes e Armani, embora a filha deles talvez tenha alcançado alguma forma de eternização científica e ainda viva, ela também dentro de uma cápsula. A Igreja da Cientologia não existirá mais – ou será a principal igreja do mundo, tendo crescido muito depois que 100 islamitas disfarçados de cardeais explodiram-se ao mesmo tempo dentro da catedral de São Pedro, arrasando o Vaticano. Mecca foi arrasada em represália, e o público perdeu um pouco do entusiasmo pelas religiões maiores.

O casamento de Tom e Katie, vestindo Armanis, se deu numa pequena cidade à beira de um lago, perto de Roma, escolhida pela sua paisagem romântica, e fo assistido só por convidados. Tom e Katie e a filhinha não apareceram para o público e é provável que nem tenham visto a paisagem, já que não chegaram perto de nenhuma janela. Na nossa civilização era assim, as celebridades escolhiam cuidadosamente e anunciavam os lugares em que não queriam ser vistas, e não eram vistas. Em outros tempos isto seria considerado, no mínimo, um desperdício de Armanis. No nosso tempo as celebridades tinham se tornado uma espécie de abstração. Eram apenas projeções de si mesmas, o que garantia a exposição controlada sem o risco de esbarrão ou perguntas cretinas sobre a criança, por exemplo. Mas nem mais em pequenas cidades italianas era incomum a noiva casar de barriguinha, ou com o filho já nascido e vestido. Para que daqui a 200 anos não pensassem mal de nós lendo sobre o casamento ostensivamente fechado de Tom e Katie, eu incluiria na cápsula o recorte de outra notícia que li mais ou menos na mesma época.

Num hotel de Las Vegas uma sucursal do Museu de Cera da Madame Tussauds tinha planejado fazer o casamento de Angelina Jolie e Brad Pitt, ou de reproduções em cera e tamanho natural dos dois, numa cerimônia que não só o público poderia ver de perto como seria assistida por convidados especiais como John Wayne, Elvis Presley, Liberace, Ronald Reagan e outros, além de, provavelmente, Tom Cruise e Katie Holmes, todos feitos de cera. Alguém achou que seria de mau gosto e a ideia foi abandonada. Pena. O casamento real de Angelina e Brad também foi num lugar conspicuamente à prova da nossa curiosidade, mas no futuro saberiam que pelo menos tentamos trazê-lo para a realidade. Ou coisa parecida.

O Globo
08/07/2012

A corrupção na ilha - JOÃO UBALDO RIBEIRO

Estes assuntos de corrupção não são objeto de unanimidade, em Itaparica. Na verdade, receio ter de admitir que a corrente ideológica liderada pelos irmãos Toninho e Jorginho Leso - assim chamados, não apenas porque filhos do finado Roque Leso, mas por serem, no geral, ainda mais lesos que o pai - vem crescendo em importância e hoje pode ser tida como uma força política de peso. No entendimento dos Lesos, como já tive oportunidade de explicar aqui, o dinheiro, por ser público, não tem dono e, portanto, todos os que podem devem botar a mão nele, está lá para isso mesmo. E quem não pode meter a mão trate de dar um jeito de poder, é assim que se sobe na vida.

Para resumir a posição dos Lesos, eles nutrem grande admiração pelos corruptos e não veem xingamento nisso, antes o reconhecimento do valor de quem se deu bem na vida e, quando passa pela ilha, é em cada lanchona que só se vê na televisão, tomando seus belos uísques com água de coco, abocanhando as filhas dos outros, viajando para o mundo todo sem tirar um tostão do bolso nem para comer, indo para lá e para cá de carro oficial, não respeitando fila nem repartição, não pagando nem gasolina nem hospital, recebendo casa de graça, aposentadoria com oito anos de serviço, 15 ou 16 salários, sem patrão, sem horário, com assessor até para coçar as costas - é possível não admirar um homem desses?

Claro que não é possível, um homem desses venceu na vida e quem fala mal são os invejosos, que não conseguiram chegar lá. Na ilha cresce o número dos que já não acham os Lesos tão lesos assim e, sem guardar muito segredo, procuram seguir os passos que eles consideram acertados. Por exemplo, orientar logo os meninos para seguir a carreira de corrupto, pois, no dizer já imortal de Jorginho Leso, "quem não tem essa ambição fracassa na criação". Quanto às meninas, apesar dos grandes progressos feitos pelo sexo feminino, podem não querer nada com estudo ou trabalho, mas devem procurar um bom corrupto para marido, é futuro garantido.

Contudo, faltando aos Lesos prestígio intelectual, tradição na vida política e talentos de oratória, dificilmente sua posição prosperaria, se não fosse o decidido apoio de lideranças reconhecidamente sólidas, entre as quais, como já suspeitavam os frequentadores mais assíduos do Bar de Espanha, a do próprio Zecamunista, que esteve ausente algum tempo e retornou à ilha na semana passada. Ele já sabia da opinião dos Lesos, mas nunca se manifestara contra ela, como seria de esperar-se. Sua volta era aguardada com ansiedade.

Que novidades se escutariam? As perguntas quase se estampavam no ar, enquanto ele, com seu chapéu do Exército Vermelho e o ar sisudo, passava pela porta da igreja de São Lourenço, tirava o chapéu para depois repô-lo rapidamente e se dirigia ao bar. Ninguém achou incongruente um ateu militante, comunista até no nome, tirar o chapéu para saudar o santo, pois todos se lembram de sua resposta a quem lhe tirou pergunta: "A ideologia não se sobrepõe à boa educação, meu caro asno." Inesperado era Jacob Branco ao lado dele, com o sobrolho franzido e as feições contraídas. Jacob só faz essa cara quando o discurso está baixando na ideia dele e vai disparar a qualquer momento.

Instalados os dois, pedidas as cervejas, Pedro de Piroca (é Pedro de Piroca mesmo, filho do finado Piroca, irmão de Raimundo de Piroca, de Zé de Piroca, de Regina e de Raquel, quem quiser pode checar; ele é, aliás, excelente mecânico), que gosta de ouvir um discurso, provocou Zecamunista, informando-lhe que Toninho Leso estava revoltado porque ia haver julgamento do mensalão, uma injustiça para quem trabalhou para conseguir suas melhoras.

- Eu estou de acordo! - explodiu Zecamunista. - Fui o primeiro a expor aqui a tese de democratização da corrupção. Chega de ladroagem só para as elites, chega de exclusão! Já tenho até o nosso lema em latim: Omnes rapere volunt, todos querem furtar, abaixo os privilégios! Toninho Leso tem toda a razão. Agora que já roubaram, não querem deixar mais ninguém roubar? Se forem condenados, isso abre um precedente péssimo para os corruptos do futuro, é um desestímulo cruel e um golpe na economia do País, que pode ser fatal. Quantos sonhos desfeitos, quantos projetos desmoronados, quantas vidas desbaratadas não virão? Quem estiver - atenção, alienados, idealistas vulgares! - querendo melhorar de vida não olhe para os lados, porque só vai ver otário. Olhe para cima! Quem está se dando bem é quem está em cima! E não prestem atenção no que eles dizem, prestem atenção no que eles fazem, é muito diferente! A corrupção é nossa, omnes rapere volunt!

Os aplausos se prolongar-se-iam, se Jacob não tivesse dado a sacudida de pescoço que prenuncia a chegada do discurso. Tinha a subida ventura de anunciar que já estavam sendo traçados planos para que a ilha não ficasse fora da prosperidade a ser trazida pelo Projeto Mão Grande, nome cogitado para a iniciativa que oficializará de vez a corrupção e acabará com a hipocrisia que nos faz pecadores. De fonte limpa, informava que fora criada na ilha a grife Camaleão, destinada a fabricar e vender trajes adequados à nova era. Cuecas capazes de transportar com discrição mais de US$ 100 mil em notas de 100. Calçolas e calçolões, a depender da portadora, para mais de 500 mil, capacidade do modelo Canguru XL. Todo o Brasil usaria as roupas íntimas Camaleão, produto de uma ilha agora na rota irreversível do progresso.

- Todo mundo faturando, sua propina é nossa adrenalina! - finalizou Jacob, arrepanhando no ar uma bolada invisível. - Independência sem morte!

- Nessa parte capitalista eu não me envolvo - disse Zeca. - Vou dirigir o departamento das calçolas, mas somente na área técnica.

Estadão
O Globo
08/07/2012 

Morre o ator Ernest Borgnine, ganhador do Oscar

Ele ganhou estatueta de melhor ator em 1955 por atuação em 'Marty'.
Americano dublava o Homem Sereia, personagem de 'Bob Esponja'.
Morreu o ator Ernest Borgnine, aos 95 anos, em Los Angeles, segundo depoimento de um porta-voz à agência Associated Press. Ele ganhou o Oscar de melhor ator em 1955, por sua atuação no filme "Marty", dirigido por Delbert Mann, ganhador da estatueta de diretor pelo mesmo longa.
Na filmografia de Borgnine constam filmes como "A um passo da eternidade" (1953), "Os doze condenados" (1967), "Meu ódio será sua herança" (1969), "Vamos fazer a guerra?" (1970), "O imperador do Norte" (1973), "O destino do Poseidon" (1972), "Fuga de Nova York" (1981) e "Blueberry - Desejo de vingança" (2004). Ele também esteve em séries de TV, com destaque para "Marujos muito loucos".
Entre seus trabalhos mais recentes, está o desenho "Bob Esponja Calça Quadrada". Ele dublava o herói Homem Sereia, do qual Bob sempre se dizia fã. "Red - Aposentados e perigosos" (2010) e o ainda não lançado "The man who shook the hand of Vicente Fernandez" também estão na filmografia.

Portal G1