quinta-feira, 31 de maio de 2012

Fernando Rodrigues - Um novo manual do crime

BRASÍLIA - "Fui investigado clandestinamente", disse ontem Demóstenes Torres ao depor no Conselho de Ética do Senado.

Trata-se de uma referência oblíqua à decisão a ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal sobre a validade das provas coletadas contra Demóstenes. Sob o aspecto institucional do país, essa decisão será talvez a mais relevante do atual escândalo.

Como senador, Demóstenes tem direito ao execrável foro privilegiado. Não pode ser investigado sem autorização do STF. Nos últimos cerca de dois anos, a Polícia Federal investigou Carlinhos Cachoeira. Com chancela da Justiça, telefones foram monitorados. A voz de Demóstenes surgiu em centenas de ligações.

O senador, agora encrencado, foi alvo indireto do trabalho da PF. Por causa do direito ao tal foro privilegiado, argumenta que as provas são ilegais. Tudo deveria ter sido interrompido quando sua voz foi captada nas conversas de Cachoeira.

A PF e o Ministério Público usam o argumento do encontro fortuito.

O investigado Cachoeira telefonou para Demóstenes. O senador, de fato, caiu no grampo, mas não era o alvo da investigação. Não haveria razão para interromper o inquérito.

Caberá ao STF julgar. Se vencer a tese de Demóstenes, o processo inteiro vai para o lixo. Por tabela, todos os réus saem livres. Um novo manual do crime será lançado.

Nesse novo contexto, o criminoso potencial deve antes de tudo comprar um celular. Depois, dá um jeito de ser atendido ao telefone com regularidade por um dos 513 deputados ou dos 81 senadores. Tarefa fácil. Muitos congressistas têm compulsão por tais contatos.

O criminoso então estará automaticamente blindado. Se for grampeado pela polícia, argumentará que tudo foi ilegal, pois um congressista estava no meio da conversa.

Ficará facílimo retardar e obstruir o trabalho da Justiça. O crime organizado, penhorado, agradecerá.

fernando.rodrigues@grupofolha.com.br


Folha de S.Paulo
30/05/2012

Escrita recriativa - Francisco Bosco

Ninguém cria do nada, mas sim seleciona, edita e organiza as linguagens à sua volta


Estima-se que quatro trilhões e quinhentos bilhões de palavras foram consumidos pela população dos EUA em 1980. Essa quantidade teria aumentado, em 2008, para quase onze trilhões de palavras, o que resulta num consumo diário de cerca de cem mil palavras por cidadão americano. Para se ter uma unidade de comparação, “Guerra e paz”, de Tolstói, tem quatrocentas e sessenta mil palavras. Ou seja, é como se cada americano consumisse um “Guerra e paz” a cada quatro dias e meio. Por consumo de palavras não se deve entender apenas ler, no sentido tradicional, mas ouvir, falar, ter os olhos assediados pelas mensagens que proliferam no espaço público. Diversamente do que foi profetizado há poucas décadas, a cultura da imagem não engoliu a cultura verbal. O surgimento da internet, do e-mail, do SMS e das redes sociais inundou de palavras os espaços público e privado. Como a literatura deve reagir a esse cenário de alta proliferação de textos?

É essa a questão que se propõe responder o livro “Uncreative writing”, do poeta americano Keneth Goldsmith (mais conhecido por ser o editor do site UbuWeb, disponibilizador de arquivos das vanguardas do século XX em áudio e vídeo). “Escrita criativa” é uma expressão bastante comum nos EUA Instituições de ensino americanas oferecem cursos assim chamados; são oficinas textuais para candidatos a escritor Goldsmith chama a atenção para o que há de conceitualmente equivocado e anacrônico nessa expressão. A palavra “criativa” está carregada de noções de genialidade e originalidade. A experiência moderna, do final do século XIX até hoje, não se cansou de refutar essa representação da atividade literária (e artística em geral).

Com efeito , uma longa sucessão de escritores — e em seguida de teóricos — recusou as ideias românticas de inspiração, espontaneidade, criação ex-nihilo, interioridade, expressão dos sentimentos etc. “A filosofia da composição”, de Allan Poe, o poema despersonalizado de Mallarmé, a perspectiva materialista do formalismo russo e a linguística estrutural de Jakobson são alguns dos momentos principais desse processo. Toda essa redefinição da ideia de criação literária é interpretada e sintetizada por Barthes em seu clássico ensaio “A morte do autor”. Nele, o semiólogo francês representa o autor como um compositor de linguagens, um orquestrador de códigos. Ninguém cria do nada, mas sim seleciona, edita e organiza as linguagens à sua volta. A originalidade está no destino, não no início. “Sem dúvida sempre foi assim”, diz Barthes.

Goldsmith concordaria. Mas, para ele, essa trajetória sofre uma inflexão atualmente, por conta da extrema proliferação da linguagem verbal. Diante dela, o que deve fazer um escritor? Para Goldsmith, ele não deve acrescentar textos a um mundo já saturado deles, mas copiá-los, editá-los, desviá-los: “Diante de uma quantidade sem precedente de textos disponíveis, o problema não é precisar escrever mais; ao invés disso devemos aprender a negociar a vasta quantidade já existente.” É o que ele chama de “uncreative writing”: o uso dos múltiplos recursos de pós-produção oferecidos pelo universo digital: copiar e colar, editar, deslocar a informação, subverter textos já existentes. Por exemplo: “Fazemos pequenas mudanças em páginas da Wikipedia (alterando um an por um a ou inserindo um espaço extra entre palavras).”

Tenho duas observações a fazer. A primeira é que, como Goldsmith não deixa de reconhecer, qualquer literatura, de qualquer época anterior, mesmo que não soubesse disso, já era “uncreative writing” (que proponho traduzir por escrita recriativa, num lance de transcriação). O que há de novo é que as técnicas de pós-produção tornaram material e explícito o que antes era imaterial e implícito. Machado de Assis editou, de maneira invisível, Sterne e De Maistre. Os escritores “recriativos” contemporâneos também editam linguagens, só que as linguagens editadas permanecem reconhecíveis no texto recriado.

A outra observação diz respeito ao problema do valor. Os espíritos tradicionalistas tendem a ver na operação proposta por Goldsmith uma espécie de valetudo democrático, uma homogeneidade
no limite niilista, onde tudo se equivale e se anula. Goldsmith responde que não se trata disso: “Democracia é bom para o YouTube, mas é geralmente uma receita para o desastre quando se trata de arte.” O valor deve ser fundado na diferença produzida pelos recursos de apropriação e edição dos textos. Vale o de sempre: quanto maior a diferença — a singularidade, o imprevisto — melhor. Concordo, mas tirando o espírito vanguardista que insufla toda a perspectiva (o que sempre me soa meio antigo), não há grande novidade nessa história. E me parece que a diferença produzida pela inserção de um espaço entre palavras num verbete da Wikipedia é muito baixa. Mas é preciso julgar caso a caso.

Para terminar, acho curiosa a resposta de Goldsmith à saturação de linguagens no mundo. Não é verdade que a recriação de textos já existentes não acrescenta novos textos (isso é, a rigor, uma contradição, no interior da argumentação dele, entre os âmbitos do método e do valor). Ela multiplica os textos, fazendo-os recircular. A resposta mais apropriada, no meu modo de ver, é a tentativa de construção de textos intensamente diferentes, capazes de se destacar do palavrório banal e infinito do mundo. Textos assim calam a algaravia reinante — suas palavras são uma espécie de silêncio.


O Globo
30/05/2012

ZUENIR VENTURA - Utopia x distopia

Há uns cinco anos, fui pela primeira vez a uma rave, levado pelo cineasta Marcos Prado. Estávamos os dois realizando pesquisa de campo — eu, procurando saber quais eram as diferenças entre a juventude de 1968 e a de 40 anos depois. Marcos querendo entender uma geração, ou melhor, uma tribo, que busca resposta para seus impasses nas drogas sintéticas, na música eletrônica e nas relações abertas. Para quem tinha a idade de ser avô da maioria daqueles 20 mil jovens que dançaram e pularam até as 7 da manhã, foi uma experiência alucinante, sem precisar de alucinógeno.

O resultado de minhas observações foi parar no livro "68 — o que fizemos de nós" (no capítulo "A primeira rave a gente não esquece"). O de Marcos está no filme "Paraísos artificiais", que vi no último fim de semana. Acho que ninguém como ele conseguiu captar com tanta fidelidade o delírio, a sinestesia de imagens e sons, e a explosão descontrolada de sensações dessas festas de celebração dos sentidos. Tudo graças ao conhecimento de causa de quem frequentou uma dezena de raves, até nos EUA, visitou clínicas, conversou com dependentes, entrevistou psicólogos, sociólogos, antropólogos e garotos de classe média envolvidos com o tráfico (chegamos a acompanhar uma das maiores operações policiais de apreensão de entorpecentes e prisão de traficantes de classe média no Rio). Mas graças também à genial fotografia de Lula Carvalho. Há sequências em que é como se a câmera estivesse reproduzindo os efeitos do ecstasy.

Essa viagem sensorial serve de fundo para um tumultuado caso de amor entre uma bela DJ de música eletrônica — a deslumbrante Nathalia Dill — e um rapaz que se envolve com o tráfico internacional e passa quatro anos na cadeia. A ação se estende até Amsterdã e exibe ousadas cenas de sexo, na verdade mais aliciadoras do que os flagrantes de ingestão de peiote, por exemplo, que podem levar a uma bad trip. Por isso, é provável que a garotada que lotava a sessão tenha saído com mais vontade de fazer amor do que de consumir uma "bala", até porque "Paraísos artificiais" aborda o tema sem preconceito, sem proselitismo ou apologia, e sobretudo sem pregação moralista.

O retrato da tribo feito por Marcos Prado lembra o diagnóstico de Frei Betto, que atribui à falta de um projeto, uma utopia, o desencanto de parte da juventude de hoje. O pior é que o vácuo é preenchido com o oposto, a desesperança, a distopia. Os livros e filmes distópicos são a moda entre os adolescentes, como mostrou uma reportagem de Leonardo Cazes. Em vez de querer mudar o mundo, há os que preferem criar um universo paralelo.

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Diante das versões sobre o encontro Lula-Gilmar-Jobim, em que cada um deles mente um pouco, como ensinar à minha neta Alice que é feio mentir? A não ser mentindo.

O Globo

domingo, 20 de maio de 2012

A Charge nossa de cada dia - Aroeira

Eliane Cantanhêde - Daqui a 50 anos

BRASÍLIA - Sabe-se tudo de Getúlio Vargas, mas ele continua sendo um desafio, 82 anos depois de ter chegado ao poder e 58 após a sua morte.

Personagem político mais biografado da história brasileira, ele não para de ser objeto de lançamentos, num grau crescente e desafiante de sofisticação e de detalhes.

Para citar três: "Os tempos de Getúlio Vargas", de José Carlos Mello, editora Topbooks, "Getúlio", de Lira Neto, Companhia das Letras, e "A Esfinge dos Pampas", de Richard Bourne, Geração Editorial.

Isso remete à força simbólica da imagem da primeira mulher presidente com os antecessores pós-1985 para a instalação da Comissão da Verdade e o início da Lei de Acesso à Informação. Momento histórico.

Sarney foi o abre-alas inesperado e atrapalhou-se na economia, mas deixou a redemocratização fluir.
Collor foi uma perplexidade, um episódio que a história ainda não mastigou e digeriu. Boi de piranha?
Itamar e Fernando Henrique patrocinaram o Real e FHC quebrou monopólios e tabus. Mudou o país.
Lula fez uma revolução social e tornou-se quase um novo Getúlio na adoração popular.

Dilma mantém a dinâmica do processo, tentando ser a síntese de tudo isso, mas fazendo correções.
Toda essa história, de 27 anos, é ainda sentida mais por corações, bolsos e corporativismos do que pela razão, pela realidade e pelo todo.

Talvez só daqui a 50 anos, visto sob perspectiva e por quem está por nascer, esse círculo virtuoso e seus percalços possam ser avaliados, escritos e vistos como eles são. (Lira Neto nasceu em 1963, nove anos após a morte de Getúlio.)

Será a hora, então, de ajustar uma balança desequilibrada entre a percepção de hoje sobre FHC e Lula. O melhor livro aliás, não será sobre um ou outro, mas o que retratar a realidade: FHC, Lula e Dilma fazem parte de um mesmo processo e, portanto, são capítulos da mesma obra.

elianec@uol.com.br
Folha de S.Paulo

A Charge nossa de cada dia - Pater

A ganância dos bancos - SACHA CALMON‏

Concedo que há muito preconceito no Brasil. A palavra diz tudo: pré-conceito. Antes de haver racionalidade conceitual, por uma marca emocional ou outra, por pura idiossincrasia, surge o preconceito. Há preconceito quanto a judeus (todo tipo de estereótipo vem a calhar). Vem de longe, dos jesuítas e da cultura católica. Há preconceito contra pobres, maçons, pretos, nordestinos, suburbanos, gays, mulheres, islamitas, e por aí vai. No campo econômico duas classes são malditas: usineiros e banqueiros. Nesses se pode baixar
o pau sem dó nem piedade. Nem por isso, com racionalidade, é vedado falar contra eles. É claro que a formação dos juros secundários depende de múltiplos fatores, entre eles o custo da capitação, os riscos, os depósitos compulsórios ordenados pelo Banco Central (BC), os financiamentos forçados, os índices de inadimplência, as despesas operacionais, etc.
 
Entretanto, o spread, ou a diferença entre o que o banco paga para ficar com o seu dinheiro rendendo (os depósitos são lastros gratuitos) e o que o ele cobra de quem lhe pede emprestado, é no Brasil, simplesmente, o mais elevado do mundo. Como o risco Brasil é nenhum e o governo paga regiamente os bancos para rolar a sua elevada dívida pública, Dilma desafiou-os a provar duas coisas: a primeira, explicar por que os juros bancários brasileiros (o mix todo) são os maiores do mundo; a segunda, declarar qual porcentual dentro do spread corresponde à margem de lucro previamente estabelecida.
 
Até agora a Federação Brasileira de bancos (Febraban)
não se pronunciou, dizendo apenas que qualquer governo pode levar cavalos até a beira do rio, mas não pode obrigá-los a beber água. Eu, sinceramente, não entendi a metáfora. Cheguei a pensar que em vez de cavalos talvez mulas ficassem melhor na frase. A defesa dos bancos tem sido feita por economistas tipo Maílson da Nóbrega e outros, por encomenda. Mas lógica e demonstrativos não aparecem. O máximo que dizem é tratarse de assunto complexo, à moda do conselheiro
Acácio, o senhor falante das coisas óbvias e redundantes, ditas com pompa e circunstância.
 
Agora com a taxa Selic baixando, descobrimos que não são apenas os bancos e financeiras que adoram juros. Os agentes econômicos do varejo também. Sempre ganharam com as prestações, daí a resposta irritante de o preço à vista ser o mesmo que o das “quatro prestações sem juros”.
 
Ninguém quer saber de concorrência nem de aumento da produtividade. O negócio é botar a margem de lucro lá em cima e fatiá-la em prestações. Como o brasileiro, como diz o outro, é um país grande e bobo, não queremos saber se a coisa vale ou não, desde que as prestações caibam nos bolsilhos. Noutras palavras, nos deixamos furtar, em vez de gritar “pega ladrão!”
 
Estão a pipocar na imprensa artigos e teses dizendo que os preços vão subir porque as prestações serão menores, comprovando o que estou a dizer. É o país das contradições. É a 6ª economia do mundo, mas é subdesenvolvido em tudo. Nossos preços estão inflacionados pela ganância dos juros, custos trabalhistas e tributação irracional. E todo mundo tem culpa no cartório: os bancos, os comerciantes, os sindicatos, o governo e nós mesmos, os tolos compradores.
 
Quanto aos banqueiros, Cláudio Gradilone nos deu conta (Isto é dinheiro de 21/3) do depoimento de Greg Smith ao jornal The New York Times, como ex-executivo do Goldman Sachs: “Já não pensamos mais em como atender nossos clientes, mas sim em como tirar o máximo de dinheiro deles o mais depressa possível.” Não se pode dizer que Greg Smith e seus juízos estão restritos a Wall Street ou à cidade londrina. Para lá da desregulamentação do setor e da podridão ética que levaram os bancos a gerar as grandes crises dos créditos
subprime, raiz dos problemas por que passam todos os países, o banqueiro é usurário e sem escrúpulos, no geral.
 
Sob a desculpa “do risco sistêmico”, receberam ajudas polpudas dos governos nacionais nos EUA e na Europa. Agora deixaram nas mãos do povo pagar as dívidas nacionais com recessão e desemprego nos países centrais. No Brasil recusam-se a reduzir as margens de lucros, “em nome dos acionistas”.
 
Sem medo de errar, são os principais responsáveis pela “cultura” dos altos preços praticados no Brasil. Somos um país de agiotas e de cidadãos de segunda classe, “fantoches” no dizer de Greg Smith. O modelo baseado no consumo massivo chegou ao fim. Agora é assim: mais crédito, mais inflação, mais juros! “Stop and go”. Não iremos a lugar nenhum. É como andar na esteira, não importa a velocidade.

Melhores momentos do Twitter

Tem jornalista pensando que seguir a notícia significa abrir uma conta no Twitter.

By @miller_ricardo

A Charge nossa de cada dia - Benett

O que move a História - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

Os pais de Adolph Hitler teriam sido aconselhados a levar o menino para uma consulta com um médico que estava revolucionando o tratamento de distúrbios mentais, em Viena. Mas decidiram que o que o Adolphinho fazia com insetos era normal para a idade dele e não procuraram o Dr. Freud. O resultado foi o que se viu.

Karl Kraus escreveu que a Viena do começo do século 20 era o campo de provas da destruição do mundo. A derrocada do império Austro-Húngaro foi o fim de um certo mundo, mas acho que Kraus quis dizer mais do que isto. Para ele, as revoluções do pensamento postas em movimento na Viena da sua época trariam o fim do longo dia do humanismo europeu que durara desde a Renascença, e o novo século restauraria a idade das trevas.

O encontro que não houve entre o intelectual judeu que radicalizou o estudo da consciência e o homem que quis eliminar as duas coisas, o judeu e a consciência, da História simboliza este prenúncio, ou esta intuição de Kraus, sobre o século. Seria fatalmente o século do desencontro entre as duas formas de modernidade, a que liberava o pensamento pela investigação científica e a que o aprisionava pelo mito do estado científico.

A questão é até onde coisas vagas como o clima intelectual de uma cidade, ou clínicas como a maluquice de alguém, influenciam a História, ou até que ponto uma boa terapia pediátrica teria evitado o Holocausto. A História teria sido diferente sem Hitler, ou com um Hitler no poder mas tratado por Freud? A ideia do nazismo como uma anomalia patológica, como coisa de loucos, é uma ficção conveniente que absolve boa parte da direita cristã europeia da sua cumplicidade.

Mas a ideia de um determinismo neutro, independente de qualquer escolha moral, também é assustadora. Precisamos de vilões mais do que de heróis, de culpados muito mais do que de inocentes. Nem que seja só para preservar o autorrespeito da espécie.

O materialismo histórico rejeita a ideia de sujeitos regendo a História e marxistas ortodoxos reagem a qualquer sugestão de que as ideias justas venham de um discernimento moral inato. Assim a História como um relato de mocinhos providenciais em guerra com bandidos doentes sobra para a literatura, ou essa categoria de ficção sentimental que é a História convencional.

Pois gostamos de pensar que é a iniciativa humana que move a História, e que o seu objetivo, mesmo que tarde, seja moral e justo, e que ela tenha uma cara e uma biografia.