domingo, 4 de março de 2012

Pós-canção - Ailton Magioli e Francisco Bosco‏





Música brasileira encontra caminhos para expressar a voz dos artistas da nova geração. Leitura política da realidade é mais diversa e plural

Ailton Magioli















Chico Buarque


Por mais que praticamente todos eles estejam vinculados à tradição da canção popular, não dá para negar: a desgastada sigla MPB passa por aguardada renovação, depois do longo reinado daqueles que contribuíram para a sua consolidação. Chico Buarque, Gal Costa, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso e tantos outros continuam em cena, mas dividem o território com Criolo, Céu, Romulo Fróes, Tulipa Ruiz, Kristoff Silva, Marcelo Jeneci, Lucas Santtana, Karina Buhr, Makely Ka, Wado, Mariana Wisnik, Luiza, Curumim, Tiê, Edu Kneip, Coletivo Instituto, Thiago Amud, Cidadão Instigado, Graveola e O Lixo Polifônico, Flávio Renegado, Transmissor e muitos outros responsáveis pela reciclagem.














Gal Costa


“É o fim do ciclo da geração 1960, apesar de muitos deles continuarem compondo e cantando”, detecta o pesquisador e professor Frederico Coelho, da PUC Rio, cujo interesse pelo tema resultou na organização coletiva do livro MPB em discussão – Entrevistas (Editora UFMG). Para ele, o próprio Chico Buarque apontou a novidade, ao prever que a canção, tal qual a conhecíamos, não sobreviveria por muito tempo. “Eles não são mais a voz hegemônica da MPB”, acrescenta Frederico, lembrando que nomes como Céu, Lucas Santtana e o hermano Marcelo Camelo já são referência.

“A banda Los Hermanos toca tão profundo hoje quanto Chico tocava a um jovem fã na época dele”, compara Frederico, para quem mudaram tanto o público quanto as referências da canção. “Já não precisa partir da bossa nova, do bolero e dos ritmos nordestinos para fazer canção. Ela pode nascer do rap, do dub jamaicano, da eletrônica”, diz Frederico Coelho, admitindo que a principal característica da nova MPB é a mudança no formato da produção. “Se antes havia as grandes gravadoras e seus estúdios, cujo vínculo dependia da divulgação de apenas três mídias fixas (rádios, jornais e TVs), hoje há uma gama imensa de recursos tecnológicos à disposição dos músicos, sem necessidade de sair de casa, incluindo a internet e as comunidades virtuais.”

Para o pesquisador, provavelmente ninguém mais vai vender 100 mil cópias de discos – exceção feita às carreiras formatadas para trabalhar com a massa, como artistas de axé, religiosos e sertanejos. “Se anteriormente a opção era estourar ou se tornar alternativo, agora é diferente. Está tudo pulverizado”, constata. Ele salienta que a nova MPB vem sendo feita por artistas de uma faixa etária que varia de 25 a 45 anos. “Marcelo D2, por exemplo, é da nova MPB. Ele começou como rapper, passou a fazer rap com samba e hoje faz quase um samba mesmo”, exemplifica.

Na opinião de Frederico Coelho, se a geração dos anos 1960 também era vinculada a uma discussão sociológica da MPB, diante da trágica experiência da ditadura militar, hoje isto se fragmentou, com o formato possuindo uma relação mais antropológica com a MPB. “A canção se articula com a realidade social do país com pontos de vista mais diversos. Até os anos 1960, tínhamos a música urbana, a música folclórica e a música sofisticada, que era a bossa nova. Trabalhava-se sobre duas, três matrizes básicas. Hoje, um jovem pode compor a partir do tecnobrega, de uma guitarrada amazônica ou de um samba carioca. A base da relação musical é muito mais ampla”, compara. Frederico avalia que, atualmente, ninguém que estuda ou pesquisa música brasileira vai questionar se alguém fez uma canção em cima de base internacional.


A nova canção é nova?


Francisco Bosco*, especial para o EM



Desde os anos 1990 questiona-se o valor dos novos cancionistas brasileiros. Resumida ao mínimo, a historiografia é assim: até 1929 é o período de formação; de 1930 a 1957, consolidação; entre 1958 até o fim dos 1970, época de ouro modernizadora. A partir daí já pairam suspeitas. O rock errou? Há algo além de Chico Science nos anos 1990? Rap é canção? E finalmente: a geração atual é tão inventiva quanto foram as suas precedentes no "século da canção", como a chamou Luiz Tatit?

Essas suspeitas tiveram um momento crítico de formulação na já célebre entrevista de Chico Buarque em 2004, em que ele lançou a hipótese de um fim da canção. Uma resposta fecunda é a do cancionista Romulo Fróes, que há um tempo aprofunda e contraria a hipótese de Chico. Para Romulo, a novidade da canção contemporânea não está nas relações internas de seus elementos fundamentais (melodia, harmonia, ritmo e letra), como ocorreu desde o início, mas na sua sonoridade, com a exploração de novas possibilidades tecnológicas de timbres.

Isso vai ao encontro do aumento de importância, entre nós, da figura do produtor: Catatau, Kassin, Gui Amabis, como produtores, são tão importantes quanto Céu, Otto, Criolo, Karina Buhr, Lucas Santanna. A canção nova é mesmo nova? A própria pergunta encerra uma ideia velha de novidade. Tende-se a julgar a cultura com parâmetros antigos.

Não há hoje figuras centrais, como havia na era do rádio ou dos festivais. O impacto de artistas na cultura é bem menor. A indústria fonográfica quebrou. A cultura se descentralizou. Talvez não haja no momento o grande cancionista – mas isso ainda é possível? E está mesmo fazendo falta?


* Ensaísta, poeta e letrista, parceiro de João Bosco

Tecnologia deu mais liberdade Artistas contemporâneos não fazem questão de movimentos ou manifestos e buscam no clima de cooperação a saída para as consequências da crise da indústria fonográfica



Ailton Magioli





Para o compositor Romulo Fróes, um dos talentos da MPB contemporânea, é sempre saudável manter canais desimpedidos com a tradição


Discípulo do produtor brasiliense Tom Capone (1966-2004), o também produtor e guitarrista carioca Plínio Profeta, de 39 anos, lembra que o banquinho e o violão perderam espaço nos últimos tempos. “O imediatismo do momento já não permite que um artista passe anos lançando discos, sem vender, para consolidar uma carreira. Como as gravadoras perderam força, os independentes começaram a criar carreira independente. Artistas como Criolo, Tulipa Ruiz e Céu já surgiram com mentalidade independente”, constata Plínio, lembrando que a própria noção de qualidade na música mudou.

“Se antigamente as pessoas vinham da contracultura hippie, hoje é preciso ter noção de marketing para fazer música. A própria produção é quase um selo de composição”, aposta Plínio Profeta. O produtor lembra que o avanço tecnológico permitiu a gravação de discos em casa. “Já não precisamos de gravadoras e muito menos de seus estúdios”, comemora. Como ressalta o pesquisador Frederico Coelho, o senso de coletividade predomina no meio, ainda que artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque e Caetano Veloso já explorassem tal característica em seu trabalho.

Longe de querer constituir um movimento ou algo do gênero – não há diretrizes e muito menos manifestos –, o que a nova geração da MPB busca é a aproximação. “Por necessidade”, justifica o paulistano Romulo Fróes, de 40 anos. “Eu, por exemplo, estou aí desde 2000, fazendo disco, tentando viver de música autoral, em pleno caos da indústria fonográfica brasileira”, acrescenta o cantor-compositor, que, paralelamente à carreira solo, integra o grupo Passo Torto, ao lado de Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral.

Para Romulo, o que caracteriza a nova turma de MPB é o desapego pela indústria, associado a um contato mais íntimo, além de um sistema de gravação e divulgação diretamente associado às novas tecnologias. “Pode parecer pouco, mas isto atuou na qualidade sonora dos nossos discos”, avalia ele, atribuindo aos últimos álbuns de Caetano Veloso (Zii e Zie, de 2009, e Cê, de 2007) e de Gal Costa (Recanto, não por acaso também produzido por Caetano) papel determinante para a mudança de cena na MPB contemporânea.

Assumidamente ligado à linhagem mais triste do samba, à la Nelson Cavaquinho, o cantor paulistano diz que a nova geração de artistas brasileiros mantém relação com a MPB e sua história, “sem medos, sem reservas e sem tributos”. “O que nos distingue é a liberdade, a diversidade e a falta de vergonha”, garante Romulo Fróes, sem se esquecer de associar tais características à adquirida experiência de gravação.

Como reforça o pesquisador e professor Frederico Coelho, em Caravana sereia bloom, que acaba de lançar, a também paulistana Céu exibe intimidade com o GarageBand, que a nova geração já considera como uma espécie de novo gravador, tamanha a facilidade que encontrou em manusear o software.


O palco não mente

Característica marcante da geração responsável pela solidificação da MPB, a relação com o palco – Maria Bethânia, por exemplo, protagonizou shows antológicos, além daquele que fez ao lado dos Doce Bárbaros Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil – continua sendo objeto de preocupação da nova geração, como prova a paulistana Luzia.

Prestes a estrear o show de lançamento do primeiro disco, batizado com o próprio nome, a jovem cantora diz que a experiência de palco para ela é única e vital. “Gravo CD para me ouvirem em casa, mas para a realização artística, na minha concepção, o palco é imprescindível. É o momento em que me sinto inteira, exposta completamente, sem artifícios”, justifica Luzia, para quem, diante do atual excesso tecnológico, o palco virou muito mais “a hora da verdade”.

“O palco não mente”, justifica. A cantora admite que o espaço é vital para ela sentir a reverberação do público. Oriunda de família teatral, Luzia garante que o palco exige dela um ritual. “Eu gosto de me colocar à prova e o palco é o espaço para isto. É o que me alimenta como artista”, reconhece. “Acho também que cada vez mais vai ser exigido do artista uma performance diferente, que toque o público”, acrescenta. Fora o fato de detectar o que chama de “preocupação imagética”. “Música não é só som”, conclui Luzia, citando o grupo paulistano Cinco a Seco como exemplo de diálogo cênico entre música, TV e cinema.

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