domingo, 22 de janeiro de 2012

Nonita - UMBERTO ECO

Imaginação


PROSA, POESIA E TRADUÇÃO



Nonita UMBERTO ECO


tradução JOANA ANGÉLICA D'AVILA MELO


Nonita. Flor da minha adolescência, angústia das minhas noites. Poderei algum dia rever-te? Nonita. Nonita. Nonita. Três sílabas, como uma negação feita de doçura: No. Ni. Ta. Nonita, que eu possa recordar-te até que tua imagem seja treva e teu lugar, sepulcro.Chamo-me Umberto Umberto. Quando ocorreu o fato, eu sucumbia destemidamente ao triunfo da adolescência. No dizer de quem me conheceu, não no de quem me vê agora, leitor, emagrecido nesta cela, com os primeiros sinais de uma barba profética que me endurece as faces, no dizer de quem me conheceu então, eu era um efebo valente, com aquela sombra de melancolia que creio dever aos cromossomos meridionais de um ascendente calabrês. As jovenzinhas que conheci me cobiçavam com toda a violência de seus úteros em flor, fazendo de mim a telúrica angústia de suas noites. Das donzelas que conheci pouco recordo, porque era presa atroz de bem diferente paixão, e meus olhos mal afloravam as faces delas, douradas na contraluz por uma sedosa e transparente pelugem.Eu amava, amigo leitor, e com a loucura dos meus anos solertes, amava aquelas a quem chamarias, com alheado torpor, "as velhas". Do mais profundo emaranhado das minhas fibras imberbes, desejava aquelas criaturas já marcadas pelos rigores de uma idade implacável, dobradas pelo ritmo fatal dos 80 anos, minadas atrozmente pelo fantasma desejável da senescência.Para designar estas últimas, desconhecidas da maioria, esquecidas pela indiferença lúbrica dos habituais "usagers" de rijas friulanas de 25 anos, adotarei, leitor -oprimido também nisto pelas regurgitações de uma impetuosa sabedoria que me aterroriza todo gesto de inocência que por acaso eu tente-, um termo que espero seja exato: parquetas.O que dizer, vós que me julgais ("toi, hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!"), da matutina presa que se oferece no palude deste nosso mundo subterrâneo ao calidíssimo amador de parquetas! Vós que correis pelos jardins vespertinos à caça banal de jovenzinhas mal tumescentes, o que sabeis da caça silente, umbrátil, casquinante, que o amador de parquetas pode conduzir sobre os bancos dos velhos jardins, na sombra odorosa das basílicas, pelas trilhas saibrosas dos cemitérios suburbanos, à hora dominical na esquina dos asilos, às portas dos abrigos noturnos, nas fileiras salmodiantes das procissões do padroeiro, nas pescarias beneficentes, em uma amorosa, cerradíssima e, ai de mim, inexoravelmente casta emboscada, para espreitar de perto aqueles rostos escavados por vulcânicas rugas, aquelas olheiras aquosas de catarata, o vibrátil movimento dos lábios crestados, recolhidos no delicioso afundamento de uma boca desdentada, às vezes sulcados por um filete luzidio de êxtase salivar, aquelas mãos triunfantes de nódulos, nervosas, lúbrica e provocantemente tremulantes ao desfiarem um lentíssimo rosário!Poderei jamais participar-te, amigo leitor, o langor desesperado daquelas fugidias presas dos olhos, o frêmito espasmódico de certos contatos ligeiríssimos, um golpe de cotovelo na tropelia do bonde ("Desculpe, senhora, quer sentar-se?" Oh, satânico amigo, como ousavas recolher o úmido olhar de reconhecimento e o "Obrigada, meu bom jovem", tu que gostarias de encenar ali mesmo tua báquica comédia da posse?), o roçar de tua panturrilha contra um joelho, venerando, ao te esgueirares entre duas fileiras de assentos na solidão vespertina de um cinema de bairro, o apertar com ternura contida -esporádico momento do mais extremo contato!- o braço ossudo de uma anciã que eu ajudava a atravessar no semáforo com ar contrito de jovem explorador!As vicissitudes da minha irreverente idade me induziam a outros encontros. Já o disse, eu parecia bem fascinante, com minhas bochechas morenas e um rosto terno de mocinha oprimida por uma suave virilidade.Não ignorei o amor de adolescentes, mas o sofri, como um pedágio às razões da idade. Recordo um entardecer de maio, pouco antes do ocaso, quando no jardim de uma "villa" fidalga -era no Varesotto, não longe do lago avermelhado pelo sol que descambava- jazi à sombra de uma touceira com uma menina de 16 anos, implume, coberta de sardas, tomada por um ímpeto de amorosos sentidos verdadeiramente desalentador.E foi naquele instante, enquanto lhe concedia apaticamente o ambicionado caduceu da minha púbere taumaturgia, que vi, leitor, quase adivinhei, em uma janela do primeiro andar, a silhueta de uma decrépita nutriz dobrada curvamente em duas enquanto desenrolava ao longo da perna o amontoado informe de uma meia preta de algodão.A visão fulgurante daquele membro inchado, marcado por varizes, acariciado pelo movimento inábil das velhas mãos entretidas em desenovelar a peça de roupa, pareceu-me (olhos meus concupiscentes!) como um atroz e invejável símbolo fálico afagado por um gesto virginal: e foi nesse instante que, tomado por um êxtase robustecido pela distância, explodi estertorando numa efusão de biológicos consensos, que a donzela (irrefletida fedelha, quanto te odiei!) recolheu gemebunda, como um tributo aos próprios fascínios ainda verdes.Terás compreendido algum dia, meu néscio instrumento de diferida paixão, que desfrutaste do alimento de uma mesa alheia, ou a obtusa vaidade dos teus anos incompletos apresentou-me a ti como um fogoso, inesquecível, pecaminoso cúmplice?Tendo partido com a família no dia seguinte, uma semana depois me enviaste um cartão assinado como "tua velha amiga". Intuíste a verdade, revelando-me tua perspicácia no uso acurado daquele adjetivo, ou apenas cometeste a giriesca bravata de uma secundarista em guerra com as filológicas boas maneiras epistolares?Desde então, como fitei trêmulo toda janela, na esperança de ver aparecer ali a "silhouette" desenfaixada de uma octogenária no banho! Em quantos serões, semiescondido por uma árvore, consumei meus solitários deboches, com o olhar voltado para a sombra, perfilada atrás de uma cortina, de uma anciã suavissimamente concentrada em um repasto ruminante! E a decepção horrenda, súbita e fulminante ("tiens donc, le salaud!"), da figura que se subtrai à mentira das sombras chinesas e se revela ao peitoril como aquilo que é, uma desnuda bailarina de seios túrgidos e ancas ambarinas de potranca andaluza! Assim, durante meses e anos corri insaciado à caça iludida de adoráveis parquetas, voltado para uma procura que, eu sei, extraía sua indestrutível origem do momento em que eu nasci, e uma velha e desdentada parteira -infrutífera busca do meu pai, que àquela hora da noite não conseguiu encontrar nenhuma outra além daquela, um pé à beira da sepultura!- me subtraiu ao viscoso cativeiro do ventre materno e me mostrou à luz da vida seu rosto imortal de "jeune parque".Não procuro justificações para vós que me ledes ("à la guerre comme à la guerre"), mas quero ao menos explicar-vos quão fatal foi a combinação de eventos que me levou àquela vitória.A festa à qual eu havia sido convidado era uma deprimente petting party de jovens manequins e universitárias impúberes. A flexuosa luxúria daquelas jovenzinhas excitadas, o negligente oferecimento de seus seios por uma blusa desabotoada no ímpeto de uma figura de dança me repugnavam.Eu já pensava em deixar correndo aquele lugar de banal comércio de virilhas ainda intactas, quando um som agudíssimo, quase estrídulo (e porventura poderei exprimir a frequência vertiginosa, a rouca degradação das cordas vocais já exauridas, "l'allure suprême de ce cri centenaire?"), um trêmulo lamento de fêmea velhíssima mergulhou a reunião no silêncio.E, na moldura da porta, eu a vi, o rosto da longínqua parca do choque pré-natal, marcado pelo entusiasmo escorrido da cabeleira encanecidamente lasciva, o corpo engelhado que marcava com ângulos agudos o tecido do vestidinho preto e liso, as pernas já débeis dobradas inexoravelmente em arco, a linha frágil do fêmur vulnerável desenhada sob o pudor antigo da saia veneranda.A insípida jovenzinha que nos recebia ostentou um gesto de enfadada cortesia. Ergueu os olhos para o céu e disse: "É minha nonna, minha avó"...


SOBRE O TEXTO Trecho de "Nonita", que integra os "Diários Mínimos", coletâneas de paródias e pastiches intelectuais que ganham nova edição pela Record em maio. Leia o texto completo, com informações do autor sobre em que condições os manuscritos fictícios de "Nonita" teriam sido localizados, em folha.com.br/ilustrissima.

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