segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A lei do mais caro

Rouanet inflaciona mercado; sem incentivo, preços vão às alturas
Mônica Bergamo
colunista da folha
MARCUS PRETO
de São Paulo

O fracasso da turnê de 80 anos de João Gilberto reforça a tese: nem um dos maiores artistas brasileiros sobrevive hoje sem recursos públicos das leis de incentivo à cultura.
Anunciada há seis meses e cancelada na semana passada, a série de shows não fazia uso da Lei Rouanet para captar recursos (ela permite que patrocinadores abatam do imposto parte do dinheiro investido em cultura).
Os produtores afirmaram que tentaram convencer mais de cem empresas a investir na turnê. Em vão. Decidiram retirar da bilheteria todo o dinheiro para cobrir os custos. E também seus lucros.
O preço dos ingressos foi às alturas -de R$ 500 a R$ 1.400. Resultado: boa parte encalhou. Shows foram adiados -a assessoria afirmou que o cantor estava gripado.
Na última hora, os Correios toparam investir R$ 300 mil nas apresentações do Rio e de SP. Pouco. E tarde demais.
Segundo artistas e produtores, hoje não é mais possível sobreviver sem incentivo.
"Se não uso a Rouanet, não consigo patrocínio. De cada dez empresas, sete perguntam de cara: tem lei de incentivo?", fala Flora Gil, empresária e mulher de Gilberto Gil. "Posso fazer show sem patrocínio? Posso. Mas o preço dos ingressos vai subir."


Sem patrocínio é inviável, diz Flora Gil


Chico Buarque é um dos poucos artistas que não usam incentivo; empresas 'editam' arte, diz a atriz Fernanda Torres

Com prestadores de serviço cobrando mais por causa da Rouanet, eventos não se pagam mais pela bilheteria

COLUNISTA DA FOLHA
DE SÃO PAULO


Flora Gil diz que, para o artista, seria mais confortável se o mercado funcionasse sem o dinheiro das empresas.

"O artista teria que se alinhar apenas com ele mesmo -não com uma marca. Não precisaria ir a reuniões e mais reuniões, nem citar o patrocinador em entrevistas. Mas, sem esse dinheiro, hoje, os projetos são inviáveis."

Chico Buarque é um dos poucos que resistem: ele não usa o dinheiro público da renúncia fiscal. Até há pouco, era até mais radical: não buscava nem mesmo patrocínio de empresas para os shows.
Em 2006, cedeu em parte: sua turnê foi bancada pela TIM -mas sem incentivo. Neste ano, seguradoras financiam suas apresentações.

"Até o fim dos anos 90, com o mercado fonográfico ainda vivendo a exuberância de seus anos dourados, nos contratos dos principais artistas com suas respectivas gravadoras havia uma cláusula denominada 'tour support'", verba que financiava parte da turnê de lançamento dos discos, diz Vinicius França, empresário de Chico.

"Colocava-se uma produção de pé e os shows estreavam com suas contas praticamente zeradas." Com o declínio do mercado fonográfico, a verba deixou de existir.

MAIS CARO
Os custos de produção, por outro lado, subiram, "incluindo profissionais e equipamentos cada vez mais sofisticados", diz França. "Hoje é virtualmente impossível para quem pretende fazer longa turnê de qualidade assumir sozinho esses custos."

Marisa Monte, outro caso raro, também conseguiu "dinheiro bom", do marketing das empresas, sem renúncia, para uma turnê. Em 2006, foi bancada pela Natura, uma das poucas empresas que investem ao menos parte em cultura sem renúncia fiscal.

Neste ano, representantes de Marisa procuraram a empresa. Mas, em 2012, a companhia só investirá em projetos do Natura Musical, mais baratos e incentivados. São R$ 1,5 milhão em seis projetos. A turnê anterior dela foi estimada em R$ 5 milhões.

ESTRATOSFERA
No passado, espetáculos se bancavam com a receita da bilheteria -e o público não tinha que dar as calças em troca da entrada de um show ou teatro, como ocorreu agora no caso de João Gilberto.
Mas as leis de incentivo inundaram o mercado de dinheiro e inflaram os preços da produção cultural.
"Quando sabem que você tem Rouanet, o preço das coisas vai para a estratosfera", diz o ator Juca de Oliveira.

"Os custos sobem pela pressuposição de que seu espetáculo tem apoio, e, portanto, dinheiro. Então [os prestadores de serviço] sobem o preço. Os financiamentos elevaram todos os custos, sobretudo de divulgação."

Juca estava tentando montar, "a sangue frio", ou seja, sem leis de incentivo, um espetáculo baseado num livro de Lya Luft. "Eu ia mendigar a divulgação por aí."

"E, como se não bastasse, o Brasil é imenso. Sem avião não se chega a lugar nenhum. Calcule o custo de uma peça com apenas dois atores, equipe de luz, som e produção, junte a alimentação, transporte e o hotel; a bilheteria não cobre de jeito nenhum", diz a atriz e colunista da Folha Fernanda Torres.

SHAKESPEARE

"Antigamente, os artistas faziam uma cooperativa e ganhavam um percentual da bilheteria. E aí se fazia permuta de madeira, de roupa, a produção era extremamente barata. Ou pelo menos palatável", diz Juca de Oliveira.
"Vamos ter que voltar a discutir o tema. Não faz sentido que apenas pessoas que têm patrocínio possam fazer teatro. Fica tudo desesperadamente pobre."

Ele diz que hoje os produtores captam recursos pela Lei Rouanet -e tiram o espetáculo de cartaz quando esse dinheiro acaba, mesmo que esteja fazendo sucesso.

"Antigamente, se a peça lotava, ficava anos no teatro", diz o ator, que ficou seis anos em cartaz com o espetáculo "Meno Male", quatro com "Caixa Dois" e cinco com "Hotel Paradiso."
"Gosto de viver da bilheteria, como Shakespeare, com os dois olhos na máquina registradora. E hoje as pessoas vivem do dinheiro da lei."

Fernanda lembra que empresas acabam "editando" a arte conforme a conveniência do marketing. Cita mostra da americana Nan Goldin, censurada no Oi Futuro (Rio).

"O mundo corporativo não comporta a vida mundana, apaixonada, torta e nada exemplar de Goldin", diz.
"Entregar a cultura nas mãos do marketing ou no retorno da bilheteria não funciona inteiramente, o governo e a sociedade têm de se envolver. A arte, na maior parte do tempo, é uma atividade que opera no vermelho."

(MÔNICA BERGAMO E MARCUS PRETO)

Na internet, site ensina a investir por meio de incentivos fiscais


Cultivo.cc pretende atrair dinheiro para pequenos projetos

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
de são paulo


Conseguir aprovar seu primeiro projeto na Lei Rouanet não é o que tira o sono da produtora Camila Boer, 34.
Dureza mesmo, ela aposta, será a etapa seguinte: encontrar um patrocinador que banque os R$ 3 milhões estimados para "Que Samba É Esse?", projeto que inclui série de shows e documentário sobre o samba-rock do cantor Jorge Ben e companhia.

Muito produtor já gastou sola de sapato na mesma via-crúcis pela qual Boer passa.

Para contornar esse caminho, uma nova plataforma na internet quer fazer o meio de campo entre projetos com dificuldades para captar recursos e potenciais investidores.
O diferencial do Cultivo.cc (www.cultivo.cc) é aliar a lógica do "crowdfunding" a leis de incentivo fiscal do Brasil.

"Crowdfunding" quer dizer financiamento da multidão -uma espécie de "vaquinha" do século 21. Com a ajuda de redes sociais, como Twitter e Facebook, levanta-se pequenas quantias até que se chegue à bolada necessária para realizar um projeto.

A prática funcionou até catapultar a campanha de Barack Obama.

ENTRAVES DA ROUANET

O portal trabalhará com três leis federais de isenção fiscal: Rouanet, Audiovisual e Esporte. Será uma vitrine de projetos para possíveis mecenas, investindo em processo ativo de captação de recursos.

Há várias formas de financiar uma proposta e debitar esse valor no Imposto de Renda. Via Rouanet, apoiar shows de MPB, por exemplo, rende descontos parciais no imposto. Outros setores, como artes plásticas, dão 100% de isenção ao investidor.

Isso tudo dentro de um limite do quanto se pode aplicar do IR: 4% para pessoas jurídicas e 6% para as físicas.

O problema é que, hoje, burocracia, "juridiquês" e desconhecimento sobre a lei funcionam como espantalhos para o investidor, diz o designer Gustavo Junqueira, 27, um dos quatro sócios do Cultivo.
Em outras palavras: fora grandes empresas, há muito "peixe pequeno" por fora da lei. Vai pelo ralo a chance de que "as pessoas possam ver o que está sendo feito com o dinheiro do imposto".

Em 2010, o Ministério da Cultura deu sinal verde para que projetos captassem cerca de R$ 5 bilhões pela Rouanet, mas só se angariou 30% desse valor, segundo os dados mais recentes da pasta.

Para o colunista da Folha Ronaldo Lemos, o problema é "conjugar a boa ideia com a realidade burocrática da Rouanet". Ele lembra propostas similares que não avançaram, como perguntar no formulário de declaração do IR: "Quer contribuir para projetos culturais? Marque um X aqui".

A vantagem do Cultivo.cc "seria aproveitar a internet para isso, sem necessidade da cooperação da Receita", diz Lemos.

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