segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Arquivista de rebeldes - ANDRÉ BARCINSKI

Biografia

Arquivista de rebeldes


Tosches, o jornalista que abdicou da modernidade

ANDRÉ BARCINSKI


RESUMO
Aos 62, o jornalista e biógrafo Nick Tosches lança obra sobre cena musical nova-iorquina nos anos 50 e 60. Integrante de uma geração que brilhou na década de 70 e responsável pelo resgate de nomes obscuros do rock, o americano é assumidamente um personagem de outra era: "A cultura moderna me deprime".

Nick Tosches é uma instituição nova-iorquina. Há décadas almoça no mesmo restaurante, o Da Silvano's, no West Village, famoso pela cozinha toscana. Diz ter saudades do tempo em que a cidade não parecia uma filial da Disneylândia. Fuma sem parar. É mal-humorado e ácido. Não à toa chegou a trabalhar caçando cobras para um serpentário.

Tosches é, assumidamente, um personagem de outra era: "A cultura moderna me deprime", diz em entrevista à Folha, por e-mail, o escritor e jornalista, nascido em 1949, em New Jersey, numa família de origem albanesa e italiana.

Nos anos 70, Tosches fez parte de uma brilhante geração de críticos musicais -Lester Bangs, Richard Meltzer- que se destacava com textos livres e apaixonados em revistas norte-americanas como a "Creem" e a "Fusion". O estilo da turma, altamente influenciado pelo "new journalism" de Capote, Mailer e Hunter Thompson -Tosches cita ainda Henry Miller, Christopher Marlowe e Borges como grandes inspirações-, misturava o idioma das ruas com a aspereza de um Hubert Selby e a liberdade de um Faulkner.

Nos últimos 40 anos, Tosches colaborou com publicações como "Esquire", "Vanity Fair" e "Rolling Stone". Mas ficou conhecido mesmo por seus livros. No fim dos anos 70 e início dos 80, lançou dois volumes que ajudaram a resgatar inúmeros artistas esquecidos: "Country: The Twisted Roots of Rock and Roll" (Da Capo Press, 1977) e "Unsung Heroes of Rock'n'Roll: The Birth of Rock in the Wild Years Before Elvis" (Da Capo Press, 1984).

Os volumes contam a história do rock'n'roll pré-Elvis, período que Tosches considera a fase de verdadeira revolução do rock, antes de ser cooptado pela indústria cultural. "Naquela época não existia apenas o livre mercado, existia a total liberdade", disse o autor à "Salon". "Você podia mentir, roubar, enganar e usar trabalho escravo. Eles só não sabiam o que estavam vendendo ou para quem. Era incrível: muita música fantástica surgiu no processo."

PRIMITIVO
A tese central dos livros era a de que o rock verdadeiro e primitivo, aquele nascido dos conflitos raciais e sociais do pós-guerra e inicialmente escorraçado pela sociedade americana, já estava morto e enterrado quando Elvis gravou seu primeiro compacto.

Combinando uma pesquisa rigorosa com um texto direto e raivoso como a música em questão, Tosches descobriu mérito em artistas praticamente ignorados. Resgatou nomes como Big Joe Turner, Screamin' Jay Hawkins e Louis Jordan. Os livros se tornaram referência e ajudaram a reescrever a história do rock.
O autor sempre foi obcecado por música, conforme lembra, especialmente pelo lado mais obscuro e desconhecido do rock. Sua coleção, lendária, inclui compactos raríssimos dos anos 40 e 50.

"Quanto mais música descobria em minhas pesquisas, mais música desconhecida me sentia tentado a procurar", diz Tosches. "Naquele tempo, isso significava procurar em lugares obscuros por compactos raros de 45 e 78 rotações, assim como LPs a que ninguém no mundo parecia dar a menor importância. Era assim no tempo em que escrevi 'Unsung Heroes of Rock'n'Roll'. Claro que, nos anos seguintes, boa parte da música sobre a qual eu escrevi acabou relançada em CD."

Desde então, o autor se tornou uma espécie de arquivista das histórias de rebeldes e iconoclastas. "A cultura moderna é uma coisa morta e sufocante. Aqueles que se rebelam contra ela são as verdadeiras forças da vida e da liberdade. Penso neles mais como pessoas de verdade do que como rebeldes. Aqueles que tentam ser diferentes não me interessam. Me interessam os que são naturalmente diferentes."

INFERNO
Em 1982, Tosches lançou "Hellfire" (Grove Press), biografia do músico Jerry Lee Lewis. O livro é seu "Coração das Trevas", um mergulho ao inferno de um artista tão genial quanto atormentado. A revista "Rolling Stone" cravou: "É a melhor biografia de rock jamais escrita". E o cultuado jornalista Greil Marcus, autor de "Like a Rolling Stone - Bob Dylan na Encruzilhada" (Companhia das Letras, 2010), disse: "Cedo ou tarde, esse livro será reconhecido como um clássico americano".

Nos anos seguintes, Tosches continuou sua jornada pelos subterrâneos da cultura norte-americana, lançando biografias polêmicas sobre Dean Martin ("Dino", 1992), o mafioso Arnold Rothstein ("King of the Jews", 2005) e o boxeador Sonny Liston ("The Devil and Sonny Liston", 2000).

Neste último, defende a tese de que Liston era leão de chácara da máfia e que entregou duas lutas lendárias contra Cassius Clay/Muhammad Ali.

Sobre seu trabalho como biógrafo, o jornalista diz: "Os livros são chamados biografias, mas prefiro pensar neles como biografias de um mistério ou de um tempo. Todos os personagens que escolhi pesquisar são pessoas que, de uma maneira ou outra, me intrigaram. Sempre penso neles como personagens centrais na linha de frente de uma história maior".

No Brasil, apenas dois livros de Tosches foram lançados, ambos pela Conrad: "Criaturas Flamejantes", excerto de 136 páginas de "Country: The Twisted Roots of Rock and Roll" (que tem 304 páginas), e "A Última Casa de Ópio", em que narra sua saga em busca de... bem, uma casa de ópio.

Seja escrevendo sobre música, seja escrevendo sobre esportes, Tosches se diz, antes de tudo, um pesquisador. "Eu costumo me perder em minhas pesquisas. É uma forma de adiar o trabalho de escrever, mas é a única maneira de revelar o desconhecido."

O autor diz não confiar em pesquisas de internet. "Sempre começo em arquivos de verdade. A internet é uma coisa perigosa. Há muita informação boa ali. Mas há muita desinformação também. A internet como fonte de pesquisa só corrobora, a cada dia, o que Rimbaud disse: 'Tudo que nos ensinaram é uma mentira'."

CINEMA
Tosches também tem um trabalho significativo de não ficção. Lançou diversos romances e volumes de poesia. Seu livro mais conhecido, "In the Hand of Dante" (Little, Brown, 2002), um delírio profano que narra sua saga em busca de um manuscrito de "A Divina Comédia", será filmado por Julian Schnabel (de "O Escafandro e a Borboleta"), com Johnny Depp no papel principal.

Escolado por anos e anos de frustrações com adaptações de seus livros para Hollywood (Martin Scorsese chegou a anunciar que dirigiria "Dino", com Tom Hanks no papel de Dean Martin, mas desistiu), Tosches se diz otimista com o novo filme: "Conheço Johnny bem o suficiente para saber que ele não vai f... meu livro".

O mais recente livro de Tosches é "Save the Last Dance for Satan" [Kicks Books, 128 págs., US$ 12,95, cerca de R$ 22, à venda em nortonrecords.com], versão expandida de um artigo que fez para a "Vanity Fair" sobre a cena musical que gravitava no célebre Brill Building, em Nova York, no fim dos anos 50 e início dos 60.

O título saiu pelo selo editorial da gravadora Norton Books, dedicado a autores "malditos" e livros de temática musical, e traz histórias sobre personagens famosos e desconhecidos, como Frank Sinatra e Alan Freed.

"Os artistas são variados. A única coisa que têm em comum é o fato de terem vivido numa época em que a indústria da música estava muito ativa, quando o rock'n'roll estava numa fase inofensiva, mas o mercado por trás dele estava em sua fase mais selvagem e corrupta, um verdadeiro submundo."
E o presente? Não interessa a Nick Tosches?

Ele é categórico: "Não. A cultura atual não tem nada a me oferecer. Nós vivemos tempos escuros, tempos covardes. Eu abdiquei da modernidade".

O jornalismo musical, área em que transita há quatro décadas, está para ele mais morto que Elvis: "Não acompanho. Me parece ter se tornado tão medíocre e sem alma quanto a própria música. É apenas mais um aspecto vagabundo de uma cultura sem nenhum valor".

Nos últimos anos, Tosches tem se voltado, cada vez mais, para a não ficção. Está terminando um novo romance, um projeto ambicioso que, segundo ele, quase o enlouqueceu.

"Espero terminá-lo nos próximos meses, sem enlouquecer de novo", revela. "Esse é o único romance que escrevi e que assustou até a mim mesmo, tipo: 'Oh, Deus, não posso escrever isso para outros olhos verem!'. Parece que cada demônio escondido em minha alma apareceu no livro. Não quero revelar mais nada agora, nem mesmo o título. Vai sair ano que vem."

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