quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Elio Gaspari - Já foi tarde

Se Deus é comunista, entrega a Coreia do Norte a um condomínio da ditadura de Pequim com dinheiro de Seul


Poucas vezes na história viu-se de forma tão direta e fotográfica o legado de um governante. É o buraco negro registrado pelos satélites que passam sobre o apagão da Coreia do Norte deixada por Kim Jong-il, o "Sol do Futuro Comunista", o "Comandante Invencível". Um apagão elétrico, social, político e econômico.

É com esse apagão que a jornalista americana Barbara Demick começa seu livro "Nothing to Envy" ("Nada a Invejar - Vidas Comuns na Coreia do Norte"). Ela foi correspondente do "Los Angeles Times" em Seul e, durante sete anos, entrevistou coreanos que fugiram da tirania de Kim Jong-il, que foi-se embora no domingo. Quando o "Querido Líder" nasceu, uma estrela brilhou no céu e dois arco-íris enfeitaram o dia. Sucedeu ao pai, o "Grande Marechal", e passou o poder ao filho.

Como sucedeu em 1994, quando o coração matou Kim Il-sung, o "Divino Guardião do Planeta", torce-se pela desagregação do regime que aprisiona 23 milhões de pessoas, dando-lhes fome, miséria e brutalidade.
Barbara Demick escreveu sobre uma tirania depois de um século varrido pelo Holocausto e pelo Gulag, quando seria possível pensar que já se viu de tudo. O que há de terrível no retrato da Coreia do Norte é que ele surpreende o leitor. Quando se acha que a vida de um povo não pode piorar, ela piora, envergonhando a época em que se vive.

Em 1945, a península coreana foi dividida entre duas ditaduras. A do Norte, comunista e rica. A do Sul, capitalista e pobre. Nos anos 60, quando se falava em "Milagre Coreano", o tema era a supremacia socialista. Em 1970, todos os vilarejos do país tinham eletricidade. Passou-se uma geração, o Sul tem uma democracia e o Norte tem uma tirania enlouquecida, que mais se parece com a Spectre do romance de Ian Fleming do que com um Estado. Em apenas quatro anos, entre 1991 e 1995, a renda per capita da população caiu de US$ 2.460 para US$ 719. O regime vive do socorro cúmplice da China.

Falta eletricidade, mas as 34 mil estátuas do "Pai da Pátria Socialista" são iluminadas mesmo de dia.
A professora Mi-Ran conta que via alunos de cinco ou seis anos morrerem de fome nas salas de aula. Sua turma de jardim de infância de 50 alunos caiu para 15.

Nas casas desse paraíso, uma parede da sala deve ser reservada para o retrato do Líder, que é distribuído com um pano. Fiscais zelam para que nenhuma família deixe de limpá-lo.

A fome dos anos 90 matou entre 600 mil e 2 milhões de coreanos do norte. Em algumas cidades morreram dois em cada dez habitantes. Um médico conta que ensinou mães a ferver demoradamente a sopa de capim. A certa altura, as famílias preferiam que as crianças morressem de fome em casa, porque nos hospitais, onde não havia remédio, faltava também comida.

Nessa época o governo informou que racionara alimentos porque o povo da Coreia do Sul estava passando fome e precisava ser ajudado.

Ninguém comemora aniversário na Coreia do Norte. Festeja-se apenas um dia: o do nascimento do Líder.
Kim Jong-Il, com seus sapatos-plataforma, já foi tarde. Se Deus é comunista, o filho do Líder entrega o campo de concentração a um condomínio da China com a Coreia do Sul.

Serviço: "Nothing to Envy" está na rede por US$ 9,99.

Ministro do Supremo beneficiou a si próprio ao paralisar inspeção

Ricardo Lewandowski, que concedeu liminar contra corregedoria, recebeu pagamentos sob investigação

Ministro atuava no Tribunal de Justiça de São Paulo antes de ir para o STF e não vê problema em conduta

Mônica Bergamo

COLUNISTA DA FOLHA


O ministro Ricardo Lewandowski, do STF (Supremo Tribunal Federal), está entre os magistrados que receberam pagamentos investigados pela corregedoria do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) no Tribunal de Justiça de São Paulo, onde ele foi desembargador antes de ir para o STF.

Lewandowski concedeu anteontem uma liminar suspendendo a investigação, que tinha como alvo 22 tribunais estaduais. O ministro atendeu a um pedido de associações como a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), que alega que o sigilo fiscal dos juízes foi quebrado ilegalmente pela corregedoria, que não teria atribuição para tanto.

Por meio de sua assessoria, Lewandowski disse que não se considerou impedido de julgar o caso, apesar de ter recebido pagamentos que despertaram as suspeitas da corregedoria, porque não é o relator do processo e não examinou o seu mérito.

A liminar que ele concedeu suspende as inspeções programadas pelo CNJ e permite que o relator do caso, ministro Joaquim Barbosa, volte a examinar a questão em fevereiro, quando o STF voltará do recesso de fim de ano.

A corregedoria do CNJ iniciou em novembro uma devassa no Tribunal de Justiça de São Paulo para investigar pagamentos que alguns magistrados teriam recebido indevidamente junto com seus salários e examinar a evolução patrimonial de alguns deles, que seria incompatível com sua renda.

Um dos pagamentos que estão sendo examinados é associado a uma pendência salarial da década de 90, quando o auxílio moradia que era pago apenas a deputados e senadores foi estendido a magistrados de todo o país.

Em São Paulo, 17 desembargadores receberam pagamentos individuais de quase R$ 1 milhão de uma só vez, e na frente de outros juízes que também tinham direito a diferenças salariais.
Lewandowski afirmou, ainda por meio de sua assessoria, que se lembra de ter recebido seu dinheiro em parcelas, como todos os outros.

O ministro disse que o próprio STF reconheceu que os desembargadores tinham direito à verba, que é declarada no Imposto de Renda. Ele afirmou que não entende a polêmica pois não há nada de irregular no recebimento.

A corregedoria afirmou ontem, por meio de nota, que não quebrou o sigilo dos juízes e informou que em suas inspeções "deve ter acesso aos dados relativos à declarações de bens e à folha de pagamento, como órgão de controle, assim como tem acesso o próprio tribunal".

No caso de São Paulo, a decisão do Supremo de esvaziar os poderes do CNJ suspendeu investigações sobre o patrimônio de cerca de 70 pessoas, incluindo juízes e servidores do Tribunal de Justiça.
Liminar concedida anteontem pelo ministro Marco Aurélio Mello impede que o conselho investigue juízes antes que os tribunais onde eles atuam analisem sua conduta -o que, na prática, suspendeu todas as apurações abertas por iniciativa do CNJ.

No caso de São Paulo, a equipe do conselho havia começado a cruzar dados da folha de pagamento do tribunal com as declarações de renda dos juízes. O trabalho foi paralisado ontem.


Colaboraram FREDERICO VASCONCELOS e FLÁVIO FERREIRA, de São Paulo

Saiba mais

Magistrados do TJ teriam recebido R$ 1 mi cada um

DE SÃO PAULO


A inspeção realizada pelo CNJ no Tribunal de Justiça de São Paulo teve como um dos focos um grupo de 17 desembargadores que pode ter recebido ilegalmente R$ 17 milhões dos cofres da corte paulista, como foi revelado pela Folha no dia 8.

Na investigação, feita de 5 a 14 de dezembro, a equipe do CNJ buscou documentos para apurar se o valor foi usado para pagar R$ 1 milhão de uma só vez para cada um dos magistrados.

Vários desembargadores e juízes de primeira instância do TJ têm direito a receber verbas relativas a pendências salariais, mas, em geral, as quitações ocorrem por meio de várias parcelas de pequeno valor.
A equipe do CNJ avalia se não houve violação ao princípio jurídico da impessoalidade e, consequentemente, um privilégio ilegal.

A corregedoria apura a suspeita de que no final de 2010 o então presidente do tribunal, Antonio Carlos Viana Santos, morto em janeiro, tenha se aproveitado de uma sobra orçamentária e determinado os pagamentos em favor de si e outros 16 colegas. O TJ possui 353 desembargadores.

A análise dos pagamentos foi suspensa pela decisão do ministro Marco Aurélio Mello, do STF.


Conselho vai enviar a Estados cópias de processos suspensos


Além de dar continuidade às investigações, objetivo é expor a suposta inoperância das corregedorias estaduais

Decisão do Supremo paralisou investigações iniciadas pelo CNJ sem passar por Tribunais de Justiça dos Estados
FELIPE SELIGMAN
DE BRASÍLIA


A corregedoria do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) -órgão de controle do Judiciário- deve enviar para Tribunais de Justiça nos Estados cópias de seus processos disciplinares que foram suspensos anteontem por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

Formalmente, o envio dos processos tem o objetivo de dar continuidade às apurações nos tribunais de origem dos magistrados.

A ação do conselho, porém, pretende expor a suposta inoperância das corregedorias locais -argumento usado pelos que defendem a maior autonomia do CNJ.

A decisão que esvaziou o poder de investigação do conselho paralisou automaticamente todas as investigações iniciadas diretamente pelo CNJ, sem passar antes pelos tribunais estaduais.

No mesmo dia da decisão, auxiliares da corregedora do CNJ, Eliane Calmon, já começaram a selecionar os processos suspensos para enviá-los aos tribunais nos Estados. São mais de 54 procedimentos de diferentes anos.

O material deverá ser compilado, analisado e despachado a partir de janeiro, quando os assessores de Calmon voltam ao trabalho, depois do recesso de final de ano.

Eles avaliam que, como não podem fazer nada até que a questão receba uma decisão definitiva, é melhor enviar os casos para os Estados.

'OMISSÃO'
A expectativa da corregedoria é que, ao receberam os processos, os Tribunais de Justiça não farão nada contra os seus próprios membros, corroborando assim a tese de Calmon de que há uma omissão dos órgãos de controle dos Estados.

De acordo com estatísticas do CNJ, os processos originados no próprio conselho representam a minoria.
Recentemente, a Folha publicou levantamento feito em 210 reclamações disciplinares que chegaram no órgão de controle durante este ano.

Os números mostraram que 72% delas (152) foram encaminhadas para os Estados em que os juízes suspeitos trabalham, para que as corregedorias locais atuassem.

Apenas 14% (29) das reclamações começaram a ser apuradas diretamente no CNJ. O restante ou foi arquivado ou recebeu pedido de informações.

Não serão enviados aos Estados os processos relativos a cerca de 60 magistrados que seriam investigados pelo conselho por aumento suspeito de patrimônio.

Essa investigação foi suspensa, também anteontem, por decisão de outro ministro do Supremo, Ricardo Lewandowski.

CONFLITO
A decisão de anteontem foi um dois momentos mais importantes de um conflito que eclodiu no segundo semestre de 2011 e colocou em lados opostos o presidente do CNJ e do STF, Cezar Peluso, e a corregedora Eliana Calmon.

Ele defende a atuação das corregedorias estaduais, enquanto ela diz que o enfraquecimento do CNJ abre espaço para o que chamou de "bandidos de toga".

Chicana no STF

Decisão do ministro Marco Aurélio Mello de suspender poderes do CNJ é mais uma demonstração de corporativismo no Judiciário

A criatividade demonstrada por alguns advogados nos processos judiciais, em busca de brechas na legislação que possam mudar subitamente uma decisão que se afigurava justa, é chamada, no jargão da área, de "chicana". Nesta semana, numa inusitada troca de papéis, o país viu uma dessas manobras ser patrocinada por um ministro do Supremo Tribunal Federal.

O ardil deu-se em meio à discussão de um processo de grande importância para o futuro do Judiciário: a delimitação dos poderes do Conselho Nacional de Justiça.

Criado para ser uma instância de controle, o CNJ tem a missão de combater desvios e aumentar a transparência administrativa e processual do Poder Judiciário.

A decisão do Supremo, como já observou esta Folha, poderá reafirmar essa função ou relegar o órgão a um papel apenas decorativo no jogo de poder da Justiça brasileira.

O ministro Marco Aurélio Mello é o relator do processo, que esteve na pauta da corte ao longo de praticamente todo o segundo semestre deste ano, mas não foi ainda julgado pelo plenário. Em setembro, o próprio ministro-relator chegou a solicitar que a matéria fosse retirada da pauta, alegando que não haveria "clima" para uma decisão.

Para surpresa da opinião pública, que anseia por uma discussão transparente sobre o tema, Marco Aurélio Mello esperou o último dia de trabalho do STF para conceder uma liminar que simplesmente suspende os poderes do CNJ.

Pela decisão do ministro, válida até o tribunal voltar a se reunir, em fevereiro, o Conselho não pode mais agir quando notificado de uma denúncia. Precisará aguardar a apuração a ser conduzida pelas corregedorias estaduais. O ministro também suspendeu o prazo de 140 dias que o CNJ estipulava para que fossem concluídos os processos disciplinares locais.

A consequência é que, até o fim do recesso, o CNJ terá seus poderes reduzidos para investigar eventuais irregularidades envolvendo a atuação de juízes.

O Supremo, com o ministro Mello à frente, tem se revelado, com acerto, contumaz crítico do abuso do governo federal na edição de medidas provisórias. Liminares como esta, que impõem a decisão do ministro sem que o colegiado do STF se pronuncie, de certa forma seguem a mesma linha impositiva da legislação "baixada" pelo Executivo e despertam apreensões quanto ao aperfeiçoamento do sistema de freios e contrapesos na democracia brasileira.

As frequentes movimentações de magistrados com o propósito de cercear a atuação do CNJ evidenciam as dificuldades para superar o tradicional corporativismo do Poder Judiciário, acostumado, há décadas, a lidar com seus problemas intramuros.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Marcelo Gleiser - As quatro eras da astrobiologia

Somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso eles existam; toda vida vem da mesma fonte


Domingo passado, dei a palestra inaugural na Escola Avançada de Astrobiologia de São Paulo, um evento que reuniu cientistas de ponta e alunos de pós-graduação dos quatro cantos do planeta. Minha tarefa era ligar a cosmologia, que estuda a origem e a evolução do Universo, à astrobiologia, que se ocupa da origem da vida na Terra e da possibilidade de vida extraterrestre.

Como ponto de partida, é bom lembrar que nós, e qualquer outro tipo de vida que por acaso exista no Cosmo, somos produto da mesma física e química. Nisso, somos já relacionados com outros seres extraterrestres, caso existam. Toda vida vem da mesma fonte.

As criaturas vivas são aglomerados de moléculas capazes de criar cópias de si mesmos.
Como moléculas são coleções de átomos, e átomos são feitos de prótons, nêutrons e elétrons, a vida precisa, como ingredientes essenciais, das partículas de matéria que preenchem o Cosmo.

A primeira era foi, portanto, a era física, começando com a origem do Universo e se estendendo até a formação das primeiras estrelas algumas centenas de anos após o Big Bang. Foi nessa era que surgiram os elétrons, prótons e nêutrons que, primeiro, formaram os núcleos atômicos mais leves, isótopos de hidrogênio, de hélio e de lítio. Em torno de 400 mil anos após o Big Bang, prótons e elétrons combinaram-se para formar átomos de hidrogênio, os mais simples e abundantes do Universo. Esse átomos aglomeraram-se em nuvens gigantescas que, com a ajuda da gravidade, formaram as primeiras estrelas: enormes e de curta vida. Esses monstros estelares explodiram com tremenda violência, gerando os átomos que preenchem a Tabela Periódica, o carbono, o oxigênio, o nitrogênio e os outros ingredientes de todos os seres vivos. Aqui se inicia a segunda era, a era química.

Esses átomos espalharam-se pelo espaço interestelar, semeando as galáxias nascentes que, já no segundo bilhão de anos após o Big Bang, encheram o Cosmo. Nessas galáxias, o mesmo processo de vida e morte das estrelas foi se repetindo, e mais elementos químicos foram forjados. Junto a elas, nasceram planetas e suas luas. A diversidade de mundos é espantosa, cada qual semeado com sua dose de elementos químicos. Naqueles onde existe água líquida e uma química complexa, a vida pode ter surgido. Começou aqui a terceira era, a era biológica.

Sabemos que, em torno de 3,8 bilhões de anos atrás, a vida surgiu aqui na Terra, composta dos restos de estrelas que explodiram em nossa vizinhança cósmica. Possivelmente, ela surgiu também em outros lugares, tanto antes quanto depois de ter surgido aqui. A quarta era, que chamo de era cognitiva, é bem mais recente, começando há menos de meio milhão de anos na Terra. Pode ter começado um ou dois bilhões de anos antes daqui, mas não muito mais do que isso. A vida demora a evoluir de seres unicelulares a seres multicelulares e, destes, a seres inteligentes, se é que o faz. A diversidade da vida em um planeta depende de sua história. A vida que encontramos aqui só existe aqui. Mesmo se a vida for de fato comum no Cosmo, é pouco provável que a vida inteligente o seja. Deste modo, somos únicos no universo.

Charge - Clayton

Hélio Schwartsman - Maldita partícula

SÃO PAULO - Partícula de Deus, rosa, Sacro Império Romano-Germânico. O que há por trás de um nome? As complexidades envolvidas no ato de nominar não passaram despercebidas pelos antigos, do que dá mostra a célebre querela dos universais.

A questão é colocada de modo quase poético no problema do nome da rosa. Para Abelardo (1079-1142), designadores universais, como "homem", ou melhor, a "hominidade", existem apenas como pensamentos em nossas mentes -e não concretamente no mundo das ideias, como defendia Platão, ou em cada um dos homens, como queria Aristóteles.

Assim, o nome "rosa", mesmo que não houvesse mais rosas, ainda significaria algo em nossas cabeças, ou a própria proposição "não existem rosas" deixaria de ter sentido.

Usando uma terminologia um pouco mais atual, nomes podem designar alguma coisa (referência), como no caso de "esta rosa", ou funcionar como uma fórmula-resumo (significado), uma idealização do conceito de rosa que nos permite reconhecer qualquer rosa.

É claro que as funções de referência e significado nem sempre batem. Como observou Voltaire, o Sacro Império (designação dada ao mosaico de Estados alemães entre 962 e 1806) não era sagrado, nem era um império, nem era romano. Bem, pelo menos ele era germânico.

O quase recém-descoberto bóson de Higgs, também conhecido como "partícula de Deus", é outro caso de inadequação entre referência e significado. O apelido surgiu em 1993, como título do livro do físico Leon Lederman: "The God Particle" (a partícula de Deus). O problema é que esse título foi, segundo o autor, dado contra a sua vontade. Lederman queria chamar o livro de "maldita partícula" ("goddamn particle"), "porque ninguém conseguia achá-la". Esperto, o editor ficou só com a primeira sílaba, "God", e a obra e o apelido foram um sucesso. Agora, parece, até encontraram a maldita partícula.

helio@uol.com.br

Ficha limpa e política suja - José Souza Martins

Inquietações quanto à aplicação da lei de inelegibilidade levam o País a supor que antes dela não era preciso ser honesto

A validação pelo STF da eleição de um senador do Pará, nas eleições de 2010, que havia sido impugnado com base na chamada Lei da Ficha Limpa, propõe-nos o tema mais amplo da legitimidade dos mandatos e da relação entre a sociedade e o Estado. Ainda que extraviada nos casuísmos interpretativos, nascida de um projeto de iniciativa popular e, portanto, de um movimento social, a Lei da Ficha Limpa é uma das expressões do poder subjacente da sociedade civil em face do poder do Estado. Impõe-lhe regulação e limite. Torna-se coadjuvante do Legislativo quando os que têm mandato não reúnem as condições para viabilizar a proposição e aprovação de uma lei socialmente necessária.

Em si mesma, a Lei da Ficha Limpa representa o pleito da sociedade civil para que eleições não sejam interpretadas pelos políticos como renúncia ao direito cidadão de vigiar e regular o modo como a representam. Filtra moralmente a atribuição de mandatos. A Lei da Ficha Limpa cria condições e limitações morais à apresentação de candidaturas maculadas previamente por atos incompatíveis com a lisura de quem deva falar, votar e decidir em nome do povo. Essa lei instituiu a precedência cidadã da biografia limpa.

Desde então, no entanto, certa inquietação quanto ao exato critério da aplicação da lei tem posto o País diante da suposição de que antes da lei não era necessário ser honesto, só depois dela. Ainda assim, com prazo de carência de um ano para adoção da honestidade como medida de honradez política. Esse não é o espírito da lei proposta. Transfere-se, pois, para o Judiciário a tarefa de decidir a data de inauguração da honestidade política no País. Tarefa difícil, como se vê na Suprema Corte dividida, a ponto de ter sido necessário que seu presidente votasse como duas pessoas, exercendo o direito do voto de qualidade para desempatar a pendência.

Isso, porém, não resolve o problema dos mandatos decididos no finalmente da Justiça, interrompidos uns e inaugurados tardiamente outros. Se a questão da legalidade das decisões é meramente numérica, no sai um e entra outro a questão de sua legitimidade é bem diversa. Ver-se-á isso agora: sai a senadora classificada em quarto lugar na votação do eleitorado do Pará e entra o senador classificado em segundo lugar, que teve quase três vezes mais votos do que ela. Uma e outro pertencentes a partidos ideologicamente opostos. Ela, no seu mandato, agora considerado indevido, deu votos, certamente, contrários aos que teria dado o agora devidamente eleito. Nos casos em que esses votos possam ter sido decisivos, aquilo que foi aprovado não o teria sido. A maioria, portanto, é uma ficção, o que alimenta a dúvida sobre a seriedade das leis: alguém é obrigado a cumprir uma lei sobre a qual pese essa dúvida de origem e de legitimidade?

No âmbito do Judiciário, outro processo pendente e correlato é o do mensalão. Um dos ministros da Corte Suprema alertou há alguns dias para o risco da prescrição próxima de alguns dos crimes envolvidos na denúncia. O processo se arrasta há quatro anos e o ministro que o examina, afastado do tribunal por motivo de saúde, ainda não ofereceu a seus colegas seu voto, nem dispõem eles de cópia do volumoso processo para se adiantarem em sua leitura e prepararem sua decisão. Ao fim e ao cabo, há o risco de que a cegueira simbólica da Justiça venha a ser de outra natureza.

A demora, porém, não modificará o aspecto mais problemático desse caso. Segundo indicavam as pesquisas eleitorais de 2006, o presidente da República não seria reeleito justamente em decorrência do caso rumoroso. No entanto, o foi. O Bolsa Família, analisa o então porta-voz do governo, em estudo recente, assegurou que a opinião eleitoral a ser manifestada nas urnas fosse contrariada pelos benefícios dessa política. Que foi, de fato, de estatização do coronelismo conformista do voto de cabresto. Com o Bolsa Família, o governo Lula deu um golpe magistral na tradição iníqua e antidemocrática do voto de sujeição nos ermos e periferias do País. Literalmente, desapropriou dos régulos e mandões de província uma base eleitoral dócil e vulnerável de 40 milhões de eleitores. A gratidão e o medo de perder o benefício fácil atrela-os, agora, ao continuísmo oficial, tudo feito dentro das normas limpas e higiênicas da lei. Mas a medida tem seu preço, ao comprometer a rotação do poder entre os partidos e a possibilidade de que a gente diferenciada, como virou moda dizer, mantenha sua hegemonia política como autora do voto livre e supostamente esclarecido.

A Lei da Ficha Limpa não alcança essa iniquidade política e seus correlatos efeitos eleitorais, pois não se trata de desonestidade no sentido estrito do termo. A demora no julgamento do mensalão e a relutância em relação à Ficha Limpa apenas retardam a depuração da política brasileira de seus vícios e manias. Demora que estende o carnaval muito além dos três dias de farra que antecedem as penitências da nossa já longa quaresma política.

*José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da Faculdade de filosofia da USP, é autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (CONTEXTO, 2011)

Enquanto o Chaplin dos games não vem - GABRIELA LONGMAN

Entrevista

Enquanto o Chaplin dos games não vem


O teórico Josep Català diz por que o videogame será o novo cinema

GABRIELA LONGMAN


RESUMO

O especialista em estudos visuais Josep Català, professor da Universitat Autònoma de Barcelona, defende que a interação possível entre espectador e narrativa pode transformar os jogos de videogame no grande suporte expressivo das próximas décadas, assim como foi a sétima arte ao longo do século 20.

Quando o cinema surgiu, era coisa de mágico, artimanha do demônio, algo a se espiar com desconfiança. Atração de feiras e parques de diversões, dividia espaço com dançarinos anões, animais adestrados, espelhos deformadores de corpo e outras distrações que faziam a alegria das camadas populares em fins do século 19. Mulheres e homens ditos refinados não o frequentavam.

Apesar do sucesso imediato no grande "museu de novidades", o cinema carregava certa aura vulgar num mundo pautado pelas artes visuais e pela literatura. Àquela altura, ninguém poderia supor que a técnica se tornaria a principal plataforma artística narrativa do século 20.

O espanhol Josep Català, professor de direção cinematográfica e estética da imagem na Universitat Autònoma de Barcelona, sugere que fenômeno análogo esteja em curso em relação aos videogames. Vistos ainda pela maior parte das pessoas como brinquedos de adolescentes que buscam apenas dar tiros, pular de fase ou salvar princesas, a interface dos jogos permite uma interação entre o espectador e a narrativa que, segundo o teórico, pode transformar o formato no grande suporte expressivo das próximas décadas.

"'Anna Kariênina' foi escrita no século 19, virou filme no século 20 e poderia perfeitamente se tornar um jogo de videogame no século 21", disse o teórico à Folha, durante recente visita ao Brasil para ministrar palestras sobre estudos visuais, tema de seu livro "A Forma do Real" [Summus Editorial, 272 págs., R$ 65,90].

Os estudos visuais representam para Català uma ampliação da noção de história da arte. Estendem suas fronteiras para além dela e consideram manifestações visuais de naturezas mais amplas -campanhas publicitárias, produtos audiovisuais de toda espécie. Lugar de encontro entre "o real, o imaginário, o simbólico e o ideológico", as imagens e as plataformas de interface são uma forma, talvez a única forma, de adentrar a subjetividade contemporânea.

Folha - O processo de multiplicação de imagens na sociedade em que vivemos tende a deixar as pessoas menos imaginativas?
Josep Català - A princípio, quando comecei a estudar as questões da imagem, essa era a minha tese. Pensava que a imagem detinha a imaginação na comparação com a literatura, porque aquele que lê pode imaginar, enquanto a imagem já nos oferece essa passagem por feita. Agora já não vejo assim. A imagem não é um muro que bloqueia a imaginação, pelo contrário: está cheia de impulsos e estímulos que projetam a imaginação para mais além.
É possível ficar só com a superfície da imagem, contentar-se com ela, até porque a imaginação é um procedimento que requer esforço, não se produz automaticamente. Penso, então, que há vários tipos de imagem, algumas mais imaginativas e outras que de certa forma fecham as portas.

A literatura foi fonte para modos de comportamento no século 19, tal e qual o cinema inspirou comportamentos culturais do século 20. Podemos antever um pouco os suportes que pautam nosso comportamento na chamada nova era?
Há um fenômeno bem concreto. O século 19 produziu um largo processo de letramento. Com a alfabetização e introdução no mundo literário nas zonas urbanas mais desenvolvidas, o romance se converte no instrumento de socialização por excelência e o mesmo acontece com o cinema. Penso que, neste momento, os videogames estariam prestes a assumir esse posto. Existem a internet e todas as novas tecnologias, mas, de todas, a mais capaz de incorporar a condição emocional e socializante da narrativa é o videogame.
Ali há uma história que se vive, como se vivia no cinema ou na literatura, e poderíamos pensar inclusive em adaptações. "Anna Kariênina", de Tolstói, foi escrita no século 19, virou filme no século 20 e poderia perfeitamente virar um jogo para videogame.

Quais os indícios desse processo?
Ainda não vimos isso porque a indústria, por enquanto, atira para outro lado, mas dá perfeitamente para pensar. Por enquanto, um videogame dificilmente consegue igualar a complexidade de um livro ou de um filme, mas temos que pensar que, no início do cinema, este também não era capaz de nada muito elaborado. Uma grande parcela da população torceu o nariz para o cinema até os anos 40, 50, sem se dar conta de que ali havia algo muito importante.
Quando o cinema começou, as pessoas punham o olho no cinematógrafo e viam um casal que dava um beijo e nada mais. Na época, se alguém dissesse que ali havia um novo parâmetro artístico, seria acusado de louco. E, no entanto, o cinema chegou num ponto em que é capaz de expressar a mesma complexidade de um grande romance.
É preciso então parar, com calma, e ver o videogame como forma simbólica -a possibilidade de criação de mundos imaginários e interface do jogador com esses mundos. A tendência é a de uma maior participação no mundo narrativo, de tal forma que a identificação, que se estabelecia de forma passiva, passe à forma ativa. Essa é a mudança que poderia haver, mas que ainda não se deu.

Como se estivéssemos esperando por um Chaplin dos videogames...
Sim, exatamente. O exemplo de Chaplin é muito bom, porque Chaplin, de cara, move as massas, faz-se extremamente popular. Também temos que ver que esses novos meios não anulam os anteriores, mas vão se sobrepondo. Ler um livro, ver um filme e participar de um game são experiências distintas e até complementares.

Por enquanto, temos visto com cada vez mais frequência no Brasil a adaptações de grandes romances para os quadrinhos...
As histórias em quadrinhos são um meio poderoso que, por muito tempo, foi visto como infantil. Nos últimos anos surgiram as "graphic novels" com histórias pessoais, memórias, investigações. Há uma densidade dos personagens combinadas com potência visual.
Do ponto de vista estrutural, a HQ se adianta ao cinema. O cinema é um conjunto de imagens que se sobrepõem de modo que a arquitetura cinematográfica não fica visível, enquanto a HQ traz a montagem à tona. No momento em que os desenhistas se deram conta de que tinham uma página para brincar, começaram a inventar novas formas de articulação, muito mais ousadas do que as velhas tirinhas que imitam quadros cinematográficos. Há uma capacidade de interação tremenda, que o próprio cinema agora começa a descobrir, quando reparte a tela e brinca com esses formatos.

Estamos vivendo a transição entre uma geração que cresceu com a televisão -um meio passivo- para uma geração que cresceu com internet, que é interativa. A tendência é que seja uma geração mais criativa, mais ousada?
Eu diria que sim. A geração da televisão, estamos vendo na Europa, é bastante passiva. Há reações ao que está acontecendo, mas também há uma passividade geral diante da crise. As novas tecnologias estão incentivando uma maior participação, mas que ainda não está bem desenvolvida. O potencial da internet como fonte de conhecimento ainda é muito pouco aproveitado.

O sr. costuma falar de uma crise no modelo universitário corrente. De onde ela deriva?
Penso que existe na Europa, mas também em outras partes do mundo, uma espécie hegemonia da mentalidade científica. Campos mais imaginativos têm que se submeter a funcionamentos que não lhes são próprios, com resultados mensuráveis e quantificáveis. Produziu-se uma indústria de produção de conhecimento "útil", enquanto para uma pesquisa de caráter imaginativo, que ninguém sabe ao certo onde vai dar, não há verba. Formarmos alunos para o que as empresas querem nesse momento, mas deveríamos formar alunos capazes de dizer às empresas o que elas vão precisar daqui a cinco ou seis anos. A universidade deveria estar alimentando a sociedade de ideias, e não está.

O sr. opõe duas formas de representação do real, o simulacro de Baudrillard e o espetáculo de Guy Debord. Qual dos dois serve melhor para interpretar a sociedade contemporânea?
Os dois eram muito apocalípticos, mas Baudrillard foi um pouco mais longe. O conceito de simulacro vê sentido na criação de imagens novas, que agora não precisam mais de um referente "real". O pensamento de interface parte disso. A interface é o dispositivo em que, na medida em que atuamos, mudamos a plataforma de modo seja possível continuar. É por aí que estamos indo.

Arquivista de rebeldes - ANDRÉ BARCINSKI

Biografia

Arquivista de rebeldes


Tosches, o jornalista que abdicou da modernidade

ANDRÉ BARCINSKI


RESUMO
Aos 62, o jornalista e biógrafo Nick Tosches lança obra sobre cena musical nova-iorquina nos anos 50 e 60. Integrante de uma geração que brilhou na década de 70 e responsável pelo resgate de nomes obscuros do rock, o americano é assumidamente um personagem de outra era: "A cultura moderna me deprime".

Nick Tosches é uma instituição nova-iorquina. Há décadas almoça no mesmo restaurante, o Da Silvano's, no West Village, famoso pela cozinha toscana. Diz ter saudades do tempo em que a cidade não parecia uma filial da Disneylândia. Fuma sem parar. É mal-humorado e ácido. Não à toa chegou a trabalhar caçando cobras para um serpentário.

Tosches é, assumidamente, um personagem de outra era: "A cultura moderna me deprime", diz em entrevista à Folha, por e-mail, o escritor e jornalista, nascido em 1949, em New Jersey, numa família de origem albanesa e italiana.

Nos anos 70, Tosches fez parte de uma brilhante geração de críticos musicais -Lester Bangs, Richard Meltzer- que se destacava com textos livres e apaixonados em revistas norte-americanas como a "Creem" e a "Fusion". O estilo da turma, altamente influenciado pelo "new journalism" de Capote, Mailer e Hunter Thompson -Tosches cita ainda Henry Miller, Christopher Marlowe e Borges como grandes inspirações-, misturava o idioma das ruas com a aspereza de um Hubert Selby e a liberdade de um Faulkner.

Nos últimos 40 anos, Tosches colaborou com publicações como "Esquire", "Vanity Fair" e "Rolling Stone". Mas ficou conhecido mesmo por seus livros. No fim dos anos 70 e início dos 80, lançou dois volumes que ajudaram a resgatar inúmeros artistas esquecidos: "Country: The Twisted Roots of Rock and Roll" (Da Capo Press, 1977) e "Unsung Heroes of Rock'n'Roll: The Birth of Rock in the Wild Years Before Elvis" (Da Capo Press, 1984).

Os volumes contam a história do rock'n'roll pré-Elvis, período que Tosches considera a fase de verdadeira revolução do rock, antes de ser cooptado pela indústria cultural. "Naquela época não existia apenas o livre mercado, existia a total liberdade", disse o autor à "Salon". "Você podia mentir, roubar, enganar e usar trabalho escravo. Eles só não sabiam o que estavam vendendo ou para quem. Era incrível: muita música fantástica surgiu no processo."

PRIMITIVO
A tese central dos livros era a de que o rock verdadeiro e primitivo, aquele nascido dos conflitos raciais e sociais do pós-guerra e inicialmente escorraçado pela sociedade americana, já estava morto e enterrado quando Elvis gravou seu primeiro compacto.

Combinando uma pesquisa rigorosa com um texto direto e raivoso como a música em questão, Tosches descobriu mérito em artistas praticamente ignorados. Resgatou nomes como Big Joe Turner, Screamin' Jay Hawkins e Louis Jordan. Os livros se tornaram referência e ajudaram a reescrever a história do rock.
O autor sempre foi obcecado por música, conforme lembra, especialmente pelo lado mais obscuro e desconhecido do rock. Sua coleção, lendária, inclui compactos raríssimos dos anos 40 e 50.

"Quanto mais música descobria em minhas pesquisas, mais música desconhecida me sentia tentado a procurar", diz Tosches. "Naquele tempo, isso significava procurar em lugares obscuros por compactos raros de 45 e 78 rotações, assim como LPs a que ninguém no mundo parecia dar a menor importância. Era assim no tempo em que escrevi 'Unsung Heroes of Rock'n'Roll'. Claro que, nos anos seguintes, boa parte da música sobre a qual eu escrevi acabou relançada em CD."

Desde então, o autor se tornou uma espécie de arquivista das histórias de rebeldes e iconoclastas. "A cultura moderna é uma coisa morta e sufocante. Aqueles que se rebelam contra ela são as verdadeiras forças da vida e da liberdade. Penso neles mais como pessoas de verdade do que como rebeldes. Aqueles que tentam ser diferentes não me interessam. Me interessam os que são naturalmente diferentes."

INFERNO
Em 1982, Tosches lançou "Hellfire" (Grove Press), biografia do músico Jerry Lee Lewis. O livro é seu "Coração das Trevas", um mergulho ao inferno de um artista tão genial quanto atormentado. A revista "Rolling Stone" cravou: "É a melhor biografia de rock jamais escrita". E o cultuado jornalista Greil Marcus, autor de "Like a Rolling Stone - Bob Dylan na Encruzilhada" (Companhia das Letras, 2010), disse: "Cedo ou tarde, esse livro será reconhecido como um clássico americano".

Nos anos seguintes, Tosches continuou sua jornada pelos subterrâneos da cultura norte-americana, lançando biografias polêmicas sobre Dean Martin ("Dino", 1992), o mafioso Arnold Rothstein ("King of the Jews", 2005) e o boxeador Sonny Liston ("The Devil and Sonny Liston", 2000).

Neste último, defende a tese de que Liston era leão de chácara da máfia e que entregou duas lutas lendárias contra Cassius Clay/Muhammad Ali.

Sobre seu trabalho como biógrafo, o jornalista diz: "Os livros são chamados biografias, mas prefiro pensar neles como biografias de um mistério ou de um tempo. Todos os personagens que escolhi pesquisar são pessoas que, de uma maneira ou outra, me intrigaram. Sempre penso neles como personagens centrais na linha de frente de uma história maior".

No Brasil, apenas dois livros de Tosches foram lançados, ambos pela Conrad: "Criaturas Flamejantes", excerto de 136 páginas de "Country: The Twisted Roots of Rock and Roll" (que tem 304 páginas), e "A Última Casa de Ópio", em que narra sua saga em busca de... bem, uma casa de ópio.

Seja escrevendo sobre música, seja escrevendo sobre esportes, Tosches se diz, antes de tudo, um pesquisador. "Eu costumo me perder em minhas pesquisas. É uma forma de adiar o trabalho de escrever, mas é a única maneira de revelar o desconhecido."

O autor diz não confiar em pesquisas de internet. "Sempre começo em arquivos de verdade. A internet é uma coisa perigosa. Há muita informação boa ali. Mas há muita desinformação também. A internet como fonte de pesquisa só corrobora, a cada dia, o que Rimbaud disse: 'Tudo que nos ensinaram é uma mentira'."

CINEMA
Tosches também tem um trabalho significativo de não ficção. Lançou diversos romances e volumes de poesia. Seu livro mais conhecido, "In the Hand of Dante" (Little, Brown, 2002), um delírio profano que narra sua saga em busca de um manuscrito de "A Divina Comédia", será filmado por Julian Schnabel (de "O Escafandro e a Borboleta"), com Johnny Depp no papel principal.

Escolado por anos e anos de frustrações com adaptações de seus livros para Hollywood (Martin Scorsese chegou a anunciar que dirigiria "Dino", com Tom Hanks no papel de Dean Martin, mas desistiu), Tosches se diz otimista com o novo filme: "Conheço Johnny bem o suficiente para saber que ele não vai f... meu livro".

O mais recente livro de Tosches é "Save the Last Dance for Satan" [Kicks Books, 128 págs., US$ 12,95, cerca de R$ 22, à venda em nortonrecords.com], versão expandida de um artigo que fez para a "Vanity Fair" sobre a cena musical que gravitava no célebre Brill Building, em Nova York, no fim dos anos 50 e início dos 60.

O título saiu pelo selo editorial da gravadora Norton Books, dedicado a autores "malditos" e livros de temática musical, e traz histórias sobre personagens famosos e desconhecidos, como Frank Sinatra e Alan Freed.

"Os artistas são variados. A única coisa que têm em comum é o fato de terem vivido numa época em que a indústria da música estava muito ativa, quando o rock'n'roll estava numa fase inofensiva, mas o mercado por trás dele estava em sua fase mais selvagem e corrupta, um verdadeiro submundo."
E o presente? Não interessa a Nick Tosches?

Ele é categórico: "Não. A cultura atual não tem nada a me oferecer. Nós vivemos tempos escuros, tempos covardes. Eu abdiquei da modernidade".

O jornalismo musical, área em que transita há quatro décadas, está para ele mais morto que Elvis: "Não acompanho. Me parece ter se tornado tão medíocre e sem alma quanto a própria música. É apenas mais um aspecto vagabundo de uma cultura sem nenhum valor".

Nos últimos anos, Tosches tem se voltado, cada vez mais, para a não ficção. Está terminando um novo romance, um projeto ambicioso que, segundo ele, quase o enlouqueceu.

"Espero terminá-lo nos próximos meses, sem enlouquecer de novo", revela. "Esse é o único romance que escrevi e que assustou até a mim mesmo, tipo: 'Oh, Deus, não posso escrever isso para outros olhos verem!'. Parece que cada demônio escondido em minha alma apareceu no livro. Não quero revelar mais nada agora, nem mesmo o título. Vai sair ano que vem."

O velho Elvis - CADÃO VOLPATO

maginação
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O velho Elvis

CADÃO VOLPATO


Elvis envelheceu e mora numa grande cidade da América do Sul. Esta cidade não é Buenos Aires, como crê o senso comum.

A nova capital de Elvis tem mil colinas.
Ele estudou arquitetura, só não tem diploma.

Dos Beatles, gosta apenas das baladas, todas com piano. Acredita que tem muito açúcar no sangue.
Também ouve jazz, só aquele feito até 1969, ano em que, diz ele, Miles Davis passou a usar óculos de inseto e eletrificou-se. Nada disso tem importância, porque afinal Elvis nasceu enrolado nas raízes do rock, em 56, e aí permaneceu.

Manteve um par de costeletas e um topete num corpo de mais de 90 quilos. As bochechas são incrivelmente rosadas. Embora tenha se dopado bem menos do que o habitual, tudo nele já está embranquecido, incluindo os cabelos do peito, pois não usa tintura.

Trabalhou no desenho e na fabricação de piscinas. Não deu certo.

Trabalhou na prefeitura, onde também era chamado de Elvis. As pessoas sempre gostaram dele, e assim Elvis foi engordando, ainda que o amor emagreça, como dizem.

Olhos azuis são sempre bem vistos, embora recessivos.

Casou-se com uma amiga de infância de olhos castanhos, depois de muitas idas e vindas e um longo noivado. A lua de mel foi numa praia distante, da qual ela voltou com uma menina na barriga. Ele trouxe uma foto de calção de banho escuro. Nela, aparece branco feito um osso, e fanfarrão, nos últimos dias da sua juventude.

Uma menina chegou de olhos bem abertos e pretos. Elvis estava à espera, atrás de uma máscara cirúrgica. Ainda era bastante moço, e chorava. A menina veio de cabelo escuro.
Hoje ele tem 53 anos, ela, 27.

Elvis nunca usou roupa de couro preta nem macacão branco cheio de franjas; não serviu o Exército e nunca saiu do país, o que, portanto, o impediu de conhecer a Alemanha. Já usou sapatos furados como qualquer homem comum, por isso não é rei. Não se veste como um homem da sua idade, nem como o rapaz que já foi. Abandonou-se ao que ficou com o tempo.

Nunca na vida dirigiu um caminhão, porque teria sido um pai ausente caso sumisse na estrada.

Enquanto funcionário público, teve tempo de sobra para se aperfeiçoar como pai e acompanhar tudo o que dizia respeito à menina -do primeiro grito de alegria, causado pelos móbiles de corujinha sobre o berço, ao casamento desastrado em 2005. Quatro anos depois, é como tudo está agora: uma bagunça.
Separada, ela é uma sombra mendicante do ex-marido.

Às vezes deita a cabeça no colo macio do pai, que inventa histórias da pré-história do rock, da mesma forma que costumava fazer quando ela era criança.

A diferença é que antes ela dormia, não chorava. Agora só chora e ri. Tem certa graça no almoço de domingo, caso o domingo não fosse imenso e se arrastasse na direção escura da segunda-feira, em geral ensolarada até a exaustão. Ela tem que ir para o trabalho. É encarregada de comprar livros estrangeiros numa grande livraria da cidade. Não dorme na casa do pai há muitos anos. Ou não dormia. Ao acordar agora, mal consegue abrir os olhos na triste claridade.

"Numa Santa Ceia do rock, Elvis seria Jesus Cristo", ele começa. "Buddy Holly estaria sentado à sua direita, usando óculos, do contrário não enxergaria a comida e o drama que está por se desenrolar. Chuck Berry sentaria à esquerda de Jesus, que usa costeletas. Não é estranho como eles comem todos no mesmo lado da mesa?"

"Chuck era um ladrão de músicas. Era o bom ladrão que ficava na cruz ao lado de Elvis Cristo. Ele era bom de conversa e gostava da timidez do companheiro branco, porque assim podia aparecer sozinho lá em cima. E copiar até os seus assobios."

"O primeiro filme que vi foi uma Paixão de Cristo", ele continua. "Os soldados romanos tinham capacetes azuis. Mas o filme era em preto e branco. Meu pai me levou, e disse que os romanos eram da mesma cor cinzenta de todo mundo."

"Já minha mãe me levou pela mão até o banco onde arrumaria meu primeiro emprego, aos 15 anos. Fui contínuo arquivista num prédio em forma de caixa. Trabalhava de gravata. Minhas gravatas eram berrantes e os sapatos tinham saltos de plataforma, no último grito da moda. Não havia metrô ainda. Meu cabelo era comprido, foi preciso cortar; então deixei, a muito custo, que crescessem as costeletas. E elas vieram ruivas."

"Dedilhando todas aquelas fichas verdes de nomes sujos na praça, cheguei à conclusão de que não gostava de dinheiro. Nove meses depois, dei à luz a liberdade."

Elvis está mais para Las Vegas, onde até se picava nos calcanhares. Estava tão gordo que poderia ter morrido de tanto comer; desde então, vem tentando parar. Vê com interesse os pratos vegetarianos, porque seu colesterol ruim é muito alto também.

As pessoas não perdoam. Elas olham para o suor que brota do seu corpo, que nem é tão pesado, só não tem estatura para o que cresce dos lados.

Ainda assim, brilhante, rosado, ele olha de volta para elas com uma certa ternura e uma insatisfação que herdou da juventude.

Olhos azuis, mesmo tristonhos, são sempre bem vistos.

A lei do mais caro

Rouanet inflaciona mercado; sem incentivo, preços vão às alturas
Mônica Bergamo
colunista da folha
MARCUS PRETO
de São Paulo

O fracasso da turnê de 80 anos de João Gilberto reforça a tese: nem um dos maiores artistas brasileiros sobrevive hoje sem recursos públicos das leis de incentivo à cultura.
Anunciada há seis meses e cancelada na semana passada, a série de shows não fazia uso da Lei Rouanet para captar recursos (ela permite que patrocinadores abatam do imposto parte do dinheiro investido em cultura).
Os produtores afirmaram que tentaram convencer mais de cem empresas a investir na turnê. Em vão. Decidiram retirar da bilheteria todo o dinheiro para cobrir os custos. E também seus lucros.
O preço dos ingressos foi às alturas -de R$ 500 a R$ 1.400. Resultado: boa parte encalhou. Shows foram adiados -a assessoria afirmou que o cantor estava gripado.
Na última hora, os Correios toparam investir R$ 300 mil nas apresentações do Rio e de SP. Pouco. E tarde demais.
Segundo artistas e produtores, hoje não é mais possível sobreviver sem incentivo.
"Se não uso a Rouanet, não consigo patrocínio. De cada dez empresas, sete perguntam de cara: tem lei de incentivo?", fala Flora Gil, empresária e mulher de Gilberto Gil. "Posso fazer show sem patrocínio? Posso. Mas o preço dos ingressos vai subir."


Sem patrocínio é inviável, diz Flora Gil


Chico Buarque é um dos poucos artistas que não usam incentivo; empresas 'editam' arte, diz a atriz Fernanda Torres

Com prestadores de serviço cobrando mais por causa da Rouanet, eventos não se pagam mais pela bilheteria

COLUNISTA DA FOLHA
DE SÃO PAULO


Flora Gil diz que, para o artista, seria mais confortável se o mercado funcionasse sem o dinheiro das empresas.

"O artista teria que se alinhar apenas com ele mesmo -não com uma marca. Não precisaria ir a reuniões e mais reuniões, nem citar o patrocinador em entrevistas. Mas, sem esse dinheiro, hoje, os projetos são inviáveis."

Chico Buarque é um dos poucos que resistem: ele não usa o dinheiro público da renúncia fiscal. Até há pouco, era até mais radical: não buscava nem mesmo patrocínio de empresas para os shows.
Em 2006, cedeu em parte: sua turnê foi bancada pela TIM -mas sem incentivo. Neste ano, seguradoras financiam suas apresentações.

"Até o fim dos anos 90, com o mercado fonográfico ainda vivendo a exuberância de seus anos dourados, nos contratos dos principais artistas com suas respectivas gravadoras havia uma cláusula denominada 'tour support'", verba que financiava parte da turnê de lançamento dos discos, diz Vinicius França, empresário de Chico.

"Colocava-se uma produção de pé e os shows estreavam com suas contas praticamente zeradas." Com o declínio do mercado fonográfico, a verba deixou de existir.

MAIS CARO
Os custos de produção, por outro lado, subiram, "incluindo profissionais e equipamentos cada vez mais sofisticados", diz França. "Hoje é virtualmente impossível para quem pretende fazer longa turnê de qualidade assumir sozinho esses custos."

Marisa Monte, outro caso raro, também conseguiu "dinheiro bom", do marketing das empresas, sem renúncia, para uma turnê. Em 2006, foi bancada pela Natura, uma das poucas empresas que investem ao menos parte em cultura sem renúncia fiscal.

Neste ano, representantes de Marisa procuraram a empresa. Mas, em 2012, a companhia só investirá em projetos do Natura Musical, mais baratos e incentivados. São R$ 1,5 milhão em seis projetos. A turnê anterior dela foi estimada em R$ 5 milhões.

ESTRATOSFERA
No passado, espetáculos se bancavam com a receita da bilheteria -e o público não tinha que dar as calças em troca da entrada de um show ou teatro, como ocorreu agora no caso de João Gilberto.
Mas as leis de incentivo inundaram o mercado de dinheiro e inflaram os preços da produção cultural.
"Quando sabem que você tem Rouanet, o preço das coisas vai para a estratosfera", diz o ator Juca de Oliveira.

"Os custos sobem pela pressuposição de que seu espetáculo tem apoio, e, portanto, dinheiro. Então [os prestadores de serviço] sobem o preço. Os financiamentos elevaram todos os custos, sobretudo de divulgação."

Juca estava tentando montar, "a sangue frio", ou seja, sem leis de incentivo, um espetáculo baseado num livro de Lya Luft. "Eu ia mendigar a divulgação por aí."

"E, como se não bastasse, o Brasil é imenso. Sem avião não se chega a lugar nenhum. Calcule o custo de uma peça com apenas dois atores, equipe de luz, som e produção, junte a alimentação, transporte e o hotel; a bilheteria não cobre de jeito nenhum", diz a atriz e colunista da Folha Fernanda Torres.

SHAKESPEARE

"Antigamente, os artistas faziam uma cooperativa e ganhavam um percentual da bilheteria. E aí se fazia permuta de madeira, de roupa, a produção era extremamente barata. Ou pelo menos palatável", diz Juca de Oliveira.
"Vamos ter que voltar a discutir o tema. Não faz sentido que apenas pessoas que têm patrocínio possam fazer teatro. Fica tudo desesperadamente pobre."

Ele diz que hoje os produtores captam recursos pela Lei Rouanet -e tiram o espetáculo de cartaz quando esse dinheiro acaba, mesmo que esteja fazendo sucesso.

"Antigamente, se a peça lotava, ficava anos no teatro", diz o ator, que ficou seis anos em cartaz com o espetáculo "Meno Male", quatro com "Caixa Dois" e cinco com "Hotel Paradiso."
"Gosto de viver da bilheteria, como Shakespeare, com os dois olhos na máquina registradora. E hoje as pessoas vivem do dinheiro da lei."

Fernanda lembra que empresas acabam "editando" a arte conforme a conveniência do marketing. Cita mostra da americana Nan Goldin, censurada no Oi Futuro (Rio).

"O mundo corporativo não comporta a vida mundana, apaixonada, torta e nada exemplar de Goldin", diz.
"Entregar a cultura nas mãos do marketing ou no retorno da bilheteria não funciona inteiramente, o governo e a sociedade têm de se envolver. A arte, na maior parte do tempo, é uma atividade que opera no vermelho."

(MÔNICA BERGAMO E MARCUS PRETO)

Na internet, site ensina a investir por meio de incentivos fiscais


Cultivo.cc pretende atrair dinheiro para pequenos projetos

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
de são paulo


Conseguir aprovar seu primeiro projeto na Lei Rouanet não é o que tira o sono da produtora Camila Boer, 34.
Dureza mesmo, ela aposta, será a etapa seguinte: encontrar um patrocinador que banque os R$ 3 milhões estimados para "Que Samba É Esse?", projeto que inclui série de shows e documentário sobre o samba-rock do cantor Jorge Ben e companhia.

Muito produtor já gastou sola de sapato na mesma via-crúcis pela qual Boer passa.

Para contornar esse caminho, uma nova plataforma na internet quer fazer o meio de campo entre projetos com dificuldades para captar recursos e potenciais investidores.
O diferencial do Cultivo.cc (www.cultivo.cc) é aliar a lógica do "crowdfunding" a leis de incentivo fiscal do Brasil.

"Crowdfunding" quer dizer financiamento da multidão -uma espécie de "vaquinha" do século 21. Com a ajuda de redes sociais, como Twitter e Facebook, levanta-se pequenas quantias até que se chegue à bolada necessária para realizar um projeto.

A prática funcionou até catapultar a campanha de Barack Obama.

ENTRAVES DA ROUANET

O portal trabalhará com três leis federais de isenção fiscal: Rouanet, Audiovisual e Esporte. Será uma vitrine de projetos para possíveis mecenas, investindo em processo ativo de captação de recursos.

Há várias formas de financiar uma proposta e debitar esse valor no Imposto de Renda. Via Rouanet, apoiar shows de MPB, por exemplo, rende descontos parciais no imposto. Outros setores, como artes plásticas, dão 100% de isenção ao investidor.

Isso tudo dentro de um limite do quanto se pode aplicar do IR: 4% para pessoas jurídicas e 6% para as físicas.

O problema é que, hoje, burocracia, "juridiquês" e desconhecimento sobre a lei funcionam como espantalhos para o investidor, diz o designer Gustavo Junqueira, 27, um dos quatro sócios do Cultivo.
Em outras palavras: fora grandes empresas, há muito "peixe pequeno" por fora da lei. Vai pelo ralo a chance de que "as pessoas possam ver o que está sendo feito com o dinheiro do imposto".

Em 2010, o Ministério da Cultura deu sinal verde para que projetos captassem cerca de R$ 5 bilhões pela Rouanet, mas só se angariou 30% desse valor, segundo os dados mais recentes da pasta.

Para o colunista da Folha Ronaldo Lemos, o problema é "conjugar a boa ideia com a realidade burocrática da Rouanet". Ele lembra propostas similares que não avançaram, como perguntar no formulário de declaração do IR: "Quer contribuir para projetos culturais? Marque um X aqui".

A vantagem do Cultivo.cc "seria aproveitar a internet para isso, sem necessidade da cooperação da Receita", diz Lemos.

Apurar até depois do fim - Renato Janine Ribeiro

Depois da queda de sete ministros em 11 meses, agora estão sob ataque os titulares das Cidades e do Desenvolvimento. Isso permite duas suposições fortes, embora conflitantes. A primeira é que haja um plano para derrubar um a um os ministros, acusando-os de corrupção. Basta ver que, a cada vez, o fogo se concentra num ministro, sem se dispersar; mas, tão logo ele cai, outro é visado. Tática de artilharia. Mas, ao dizer isso, não desculpo o governo - e este é meu segundo ponto. Os ministros não teriam caído se convencessem a opinião pública de sua inocência. Eu poderia enfatizar um lado ou outro da questão, puxando para o lado tucano ou petista, mas os dois me parecem importantes.

As acusações ao ministro Fernando Pimentel mostram que o ataque muda de patamar. Até agora foram expostos ministros pouco importantes ou, no caso de Palocci, mais próximos de Lula que de Dilma. Já Pimentel talvez seja o ministro mais chegado a ela. O roteiro Dilma - exigir do auxiliar que se explique, demitindo-o se não se defender bem - fica difícil agora. Se ele sair, a presidente terá entregue um auxiliar próximo. E, a continuarmos nesse ritmo, na hora das eleições já terão caído, se usarmos uma elementar regra de rês, 15 ministros ou mais: quase metade do gabinete. O custo será devastador para Dilma.

Daí que o lógico, mesmo que surjam provas contra Pimentel (por ora, são apenas suspeitas), será o governo defendê-lo. Essa parece ser a batalha decisiva. O ministro lembra que, quando prestou consultoria à Fiemg, não exercia cargo público. Mas na política não vale o princípio de que todos somos inocentes até prova em contrário. Quando uma acusação emplaca, o suspeito é culpado até provar sua inocência. Isso porque a política - e a mídia - seguem regras distintas das da lei penal. Imprensa e política lidam com aparências. FHC e Lula foram chamados de "teflon" porque nenhuma acusação grudava neles. A imagem que construíram era tão boa que vencia qualquer suspeita. Não é o caso dos ministros.

Acreditamos que a ética seja mais exigente que a política. Não é certo. Os ministros demitidos podem ser inocentes não só na lei penal, que exige provas robustas, mas também no plano ético. Podem ser gente direita. Só que a política é implacável. Uma imagem negativa é difícil de limpar.

Uma grande pergunta: qual o tamanho da corrupção? Nos últimos oito anos a Advocacia Geral da União, órgão do Poder Executivo, ajuizou ações para reaver R$ 67 bilhões, que estima desviados pela corrupção. Os processos se referem a atos do governo Lula, mas também dos anteriores - inclusive o de FHC. A soma é alta. Se juntarmos tudo o de que são acusados os ministros demitidos, talvez não chegue a um milésimo desses R$ 67 bilhões. Há muito mais a apurar. É possível que a grande corrupção vá por outros dutos, não pelos que foram denunciados.

Apurar, eu disse. Jamais afirmaria que este governo, o anterior ou qualquer um é o mais corrupto de nossa história. Simplesmente porque não há estudos medindo a corrupção. Só posso acreditar, com muita convicção, que na ditadura, que tinha dinheiro para investimentos e se valia da falta de transparência dos negócios públicos, a corrupção deve ter sido alta. Receio que, no governo tucano, as privatizações possam ter levado a desvios. Mas, se tenho esta convicção e este receio, é porque quase nada foi apurado. As denúncias que surgiram não chegaram a termo. Não se teve condenação nem absolvição, o que deixa forte odor de suspeita. Isso vale ainda para os governos petistas. A Controladoria Geral da União, também do Poder Executivo, demitiu milhares de funcionários desonestos - mas nenhum ministro.

O que fazer? Sentimos o descaso dos poderes constituídos por investigar, mas também a irresponsabilidade da mídia que denuncia. O mínimo a fazer, quando o ministro cai, é continuar a apuração. Se o Ministério Público e a polícia não o fazem, a mídia deveria manter a chama acesa. Mas não. Sai o ministro e ele some do noticiário. É pena. Se for culpado, o país tem de vê-lo punido. Mas, se for inocente, isso tem de ser reconhecido. Não devemos esquecer dois nomes que a política e a imprensa escondem, os grandes injustiçados dos anos 90: Alceni Guerra, ministro de Collor, execrado por um ato de corrupção que, depois se soube, ele não cometeu; Ibsen Pinheiro, que presidiu a votação do impeachment de Collor, cassado por um malfeito que, mais tarde se soube, ele não praticou. Guerra poderia ter sido governador do Paraná; Ibsen, presidente do Brasil. Suas carreiras foram truncadas. Ninguém pagou por isso.

Está na hora de cobrar. Se um ministro não tem mais o respeito da sociedade para continuar no cargo, a mídia que o derrubou deve exigir a apuração completa dos fatos e se empenhar nisso. Ele deve terminar condenado - ou ser reabilitado com todas as honras. Não cabe meio termo. Na Polônia do século XVIII, os negócios públicos estavam paralisados devido ao "liberum veto" - o direito de qualquer membro do Parlamento a vetar, mesmo sozinho, uma deliberação da Casa inteira. Para resolver esses impasses (que acabaram destruindo a Polônia, retalhada por seus poderosos vizinhos), Rousseau sugeriu que quem usasse o veto fosse julgado seis meses depois. Se provasse que tinha razão, seria exaltado; se não, executado. É claro que não defendo a pena de morte. Mas cada um dos ministros deveria ter seu caso apurado até o fim. Então seria proclamada sua inocência ou culpa. Igual rigor deve se aplicar a quem denuncia. Está na hora de parar de brincar com o sentimento de honestidade de nosso povo.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Affonso Romano de Sant'Anna - Os que colam e copiam

Se alguém disser que uma pedra da rua vale tanto quando um diamante, você vai pensar que ele ou está brincando, ou está louco, ou metendo você numa trapaça. Você sabe que há várias diferenças entre um diamante e uma pedra comum. Sendo raríssimo, o diamante é tão difícil de ser encontrado quanto de ser trabalhado. E tem uma luminosa beleza arduamente burilada.
Na arte, há algum tempo, no entanto, convencionou-se o contrário: que todas as coisas se equivalem: qualquer pedra é um diamante. E acabo de ler reportagem sobre um americano que publicou um livro em que afirma que toda cópia é obra de arte. Assim ele copia páginas do New York Times e diz que a arte do futuro será apenas “mudar as coisas de lugar”.

Se fosse piada, não seria engraçado. Sendo uma proposta teórica, não resiste à análise. Se assim fosse, qualquer motorista ou funcionário das firmas de mudança seria artista. Qualquer pessoa que mudasse uma cadeira de lugar ou mudasse de casa, um grande artista. Dizem que Dorival Caymmi, certa vez, chamou Jorge Amado em sua casa dizendo: “venha, venha ver o que fiz”. Havia mudado a cadeira de balanço de lugar. Era uma lenda sobre a preguiça baiana. Bem, Dorival era artista, não por mudar a cadeira de lugar, mas por causa de suas canções.

No entanto, o tal americano conseguiu espaço na imprensa, vai ter seu livro traduzido em várias línguas, vai ganhar dinheiro, ficar famoso e deixar muita gente confusa. Ele está explorando a ideologia de que qualquer coisa equivale a qualquer coisa. Penso nos milhares de alunos que, nos Estados Unidos, fazem cursos de criação literária (creative writing). Os que tentavam copiar modelos clássicos e não tinham sucesso agora estão autorizados a copiar abertamente. Mas, infelizmente, devo alertar que não terão sucesso. Porque uma das perversões da arte atual é que o “pioneiro”, o “diferente” , o “inventor” é o que conta. É igual ao golpe da “pirâmide”, aquelas correntes que enriquecem os que a iniciam e deixam os outros na mão. Só que, no caso da arte, os que ficaram na mão ficam com a pedra no lugar do diamante e se gabam disso.

Alguém pode dizer: mas os tempos são esses. Olha o cover, o sampling, a paródia, a paráfrase, a apropriação, o luta para acabar com o direito autoral. Estão aí o Google e a cultura da colagem cultural. Tudo isso é verdade. Também é verdade que os porcos comem lavagem, mas nem por isso devo comer essa verdade.

Como era previsível, o americano expertinho (não expert) cita Marcel Duchamp como seu patrono. Esse álibi, como num crime, em vez de o absolver, o incrimina. Primeiro está fazendo algo com 100 anos de atraso. Poderia citar também Borges e o personagem Pierre Menard, que queria escrever Don Quixote outra vez. Borges estava se autoironizando.

Um dos mal-entendidos desse americano, cujo nome me permito não propagandear, é dizer que essa vai ser a “arte do futuro”. As pessoas não estão entendendo o presente, mas ele já loteou o futuro para si. Mais um futurólogo.

Esse mal-entendido tem algo a mais que me fascina. Revela “artistas” que têm um problema edipiano mal resolvido. Diante dos mestres, sentem-se castrados. Daí essa arte de eunucos, de emasculados que nos cerca. Arte dos que fazem do parasitismo consciente um motivo de júbilo.

Marcelo Gleiser - Acreditar é humano

A religião nasceu da união de reverência e necessidade. E, assim, continua definindo como a maioria vê o mundo

O ser humano é um animal acreditador. Talvez esse seja um bom modo de definir nossa espécie. "Humanos são primatas com autoconsciência e a habilidade de acreditar." Já que " acreditar" sempre pede um "em quê?", refiro-me aqui a acreditar em poderes que transcendem a percepção do real, algo além da dimensão da vida ordinária, além do que podemos perceber apenas com nossos sentidos.

Eu me pergunto se a necessidade de acreditar em algo (não uso a palavra "fé", pois essa tem toda uma conotação religiosa) é consequência da consciência. Será que outras inteligências cósmicas também acreditam?

Parece que somos incapazes de viver nossas vidas sem acreditar na existência de algo maior do que nós, algo além do "meramente" humano. Bem, nem todos nós, mas a maioria. Isso desde muito tempo. Para os babilônios e egípcios, os céus eram mágicos, a morada dos deuses, ponte entre o humano e o divino. Interpretar os céus era interpretar mensagens dos deuses, muitas vezes dirigidas a nós mortais.

Essa divinização da natureza é muito mais antiga do que a civilização. Pinturas rupestres, os símbolos mais antigos da expressão humana, já demonstram a atração que nossos ancestrais nas cavernas tinham pelo desconhecido, sua reverência por poderes além de seu controle. As pinturas de animais representavam encantamentos, uma mágica gráfica criada com o objetivo de auxiliar os caçadores em sua empreitada, cujo sucesso garantia a sobrevivência do grupo.

Fico imaginando o poder que essas imagens -que dançavam à luz do fogo- exerciam sobre o grupo reunido na caverna, uma tentativa de recriar a realidade para ter algum controle sobre ela. A religião nasceu da combinação de reverência e necessidade. E assim continua, definindo como a maioria dos humanos vê o mundo.

Mesmo após termos desenvolvido meios para explorar fontes de energia da natureza, estamos ainda à mercê dos elementos. Muitos chamam enchentes, tornados, erupções vulcânicas ou terremotos de atos divinos, representando forças além do nosso controle.

A ciência, claro, atribui esses desastres a causas naturais, o que acarreta abandonar a crença de que a fé pode nos ajudar de alguma forma a controlá-los. Fica difícil, hoje em dia, rezar para o deus do vulcão ou para o deus da chuva.

Esse é um desafio para a ciência e para os seus educadores: a ciência pode explicar, às vezes prever e, até certo ponto, proteger-nos de desastres naturais. Porém, não pode competir com o poder da crença na imaginação humana, mesmo na completa ausência de evidência de que possa nos proteger contra desastres naturais.

O mundo estava cheio de deuses no início da história da nossa espécie e, para muitas pessoas, assim continua. A resposta, parece, não é tentar transformar a ciência numa espécie de deus, substituindo uma crença por outra, mas, ao contrário, mostrar que vidas podem ser vividas sem a crença em poderes divinos cuja intenção é nos manipular, seja para o bem ou para o mal.

Talvez a maior invenção da vida na Terra tenha sido essa espécie de primatas com a capacidade de imaginar realidades que a transcendem.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: http://goo.gl/93dHI

Abaixo Chapeuzinho - JOÃO UBALDO RIBEIRO

Como temos visto, parece estar na moda o Estado se meter cada vez mais na vida privada dos cidadãos. Na convicção de que existem, universalmente, comportamentos "certos" ou "corretos", tecnocratas fazem tudo para impingir-nos essa correção. É comum que sejam alegadas bases "científicas" para definições do normal e do desejável, com frequência misturando-se asininamente a neutralidade da ciência com valores que não têm, nem pretendem ter, fundamento científico, mas cultural, filosófico ou religioso. Acaba-se gerando - e suspeito que isso se vem intensificando - a expectativa de que todos assumam diante da vida a mesma atitude "normal" ou "sadia" e ajam sempre de acordo com ela. Se alguém não se encaixa nessa fôrma, não só padecerá de culpa e estresse, convencido de que, de alguma maneira, é um réprobo anormal ou doente, como, em atos cada vez mais numerosos, o Estado força o cidadão a proteger-se do que é oficialmente considerado danoso ou inapropriado, cerceando-lhe, "no seu próprio interesse", a liberdade. O Estado sabe o que é bom para nós e não temos o direito de contestá-lo.

Um exemplo dessa mentalidade e das práticas que engendra é a leitura. Parece agora implantada a convicção de que existe uma leitura correta para cada livro. Poemas e romances, devem ser "contextualizados" e depois interpretados segundo a ótica recomendável. Remove-se assim toda a aventura de ler um poema ou romance, a atitude diante deles é a de um patologista diante de um cadáver. Não duvido nada de que, acostumado a essa leitura tutelada, o sujeito saia da escola, torne-se adulto e fique incapaz de ler, a não ser que alguém "contextualize" o texto para ele. Não é preciso contextualizar Dom Quixote, Hamlet ou qualquer outro personagem clássico, assim como não é necessário contextualizar Tarzan ou Sherlock Holmes. Deve-se mergulhar nos clássicos sem intermediários, as descobertas e sustos são pessoais e íntimos. A tutela só é legítima se fruto da decisão do leitor. Se ele pede, que se faça a tutela. Mas, se ele não pede, que sua liberdade, seus horizontes e sua sensibilidade se expandam sozinhos através de leitura, em experiências individuais que não se pode, em rigor, repartir com ninguém.

E a tutela não para por aí, como sabemos. As próprias histórias são alvo dos tutores, que já reescreveram as letras de canções folclóricas infantis, como Atirei o Pau no Gato e O Cravo e a Rosa. Não se atira mais o pau no gato, nem o cravo sai ferido ou a rosa despedaçada. Tudo isso é nocivo, corrompe e perverte e teremos uma sociedade bem menos violenta, quando as gerações assim educadas chegarem ao poder. Imagino que alguém já possa ter tido a ideia, ora sob análise no Ministério da Educação, de ensinar somente as "partes boas" da História, deixando de lado crueldades, desumanidades, atrocidades e tudo mais que possa dar mau exemplo à juventude. Os assírios, por exemplo, não esfolavam ninguém vivo, faziam peeling. Assim como o Santo Ofício não torturava ninguém, aqueles aparelhos todos eram de ginástica.

Estive pensando nessas coisas com algum vagar e a conclusão é que muitas novidades nos esperam. Não creio, por exemplo, que a história de Chapeuzinho Vermelho venha a ser conhecida no futuro. Talvez agora mesmo uma comissão lá no ministério esteja examinando o assunto, para depois baixar normas estritas, que redundarão na proibição dela e de semelhantes. Um mero exame superficial e preliminar é suficiente para demonstrar como é nociva a história de Chapeuzinho e como somos irresponsáveis ao transmiti-la a nossas crianças.

Em primeiro lugar, tão à vista que passa despercebida a quase todos, vem a cor do chapéu. Por que vermelho? Durante a Guerra Fria, era uma óbvia tentativa de instilar subliminarmente, no inconsciente da juventude, o apego a um dos símbolos do comunismo, a cor vermelha de sua praça, sua bandeira e seu Exército. Passada essa era, o vermelho é atualmente a cor do PT. Não fica bem para o partido uma menina como Chapeuzinho, hoje desmascarada como uma pequeno-burguesinha preconceituosa e reacionária, usar um chapéu com a cor dele. Nesse caso, que outra cor, amarelo? Não, também fica chato. Além de ser uma das cores do Brasil, o amarelo pode ofender as minorias de raça amarela. O mesmo se diz do preto, acrescida a circunstância de que, neste caso, os mais radicais poderiam exigir que fosse Chapeuzinho Afro-brasileiro. E por aí marcha uma discussão infindável, terminando-se afinal por abolir a cor e deixar somente Chapeuzinho.

Também grave, embora da mesma forma poucos reparem, é o presente que Chapeuzinho leva para a vovó. Doces? A esta altura da evolução da medicina, levar doces para uma senhora já velhinha? Doces nessa idade deveriam ser evitados. Eles engordam e a maior parte dos ingredientes das gulodices é nociva para os idosos. Para não falar que o consumo de açúcar pode deflagrar um caso de diabete. Não, não, não se pode permitir que o exemplo de Chapeuzinho transforme gerações de jovens em envenenadores de vozozinhas.

O caçador é outro exemplo gritante de incorreção. A caça e o porte de armas no Brasil são proibidos e, portanto, esse pseudo-herói um criminoso. Numa clamorosa falta de consciência ecológica, esse fora da lei mata um lobo. O lobo é uma espécie ameaçada em toda parte e tem seu lugar na Natureza. E, para piorar, é também caluniado, porque o caçador abre a barriga dele e encontra a vovozinha viva, quando se sabe que não há lobo capaz de engolir uma pessoa inteira. Enfim, a história de Chapeuzinho tem tudo para ser banida de escolas e bibliotecas. Quando chegará o dia em que precisaremos de autorização oficial para dar um livro de presente a um filho?

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Humor

Democracias fazem guerra a democracias? - Renato Janine Ribeiro

Em fevereiro de 1979, a China, comunista, invadiu o Vietnã, também comunista. Quatro anos antes, o Vietnã tinha vencido os Estados Unidos após um conflito de duas décadas - a única derrota deste último país em sua história. O mundo se surpreendeu com o fato de dois Estados marxistas entrarem em guerra. Muitos disseram: em compensação, democracias não fazem guerra a democracias. Essa seria uma de suas grandes qualidades.

Mas será verdade? Na Grécia, onde começou o governo pela maioria do povo, Atenas guerreou várias outras cidades que eram igualmente democráticas. É possível que sua derrota na longa guerra do Peloponeso (431-404 antes de Cristo) - que coincidentemente é seguida pela execução de Sócrates, o modelo dos filósofos, e pela decadência da cidade-Estado - se deva em larga parte ao que hoje chamamos de "dupla moral": para os nossos tudo, para os outros, nada. O caso de Roma é ainda mais flagrante. Foi durante séculos uma república poderosa, em que o povo tinha voz, ainda que limitada, perante os aristocratas. Mas jamais soube - ou quis - reconhecer aos povos que conquistou fora da Itália os mesmos direitos que tinham os cidadãos romanos. Daí que fosse, como explicou Hobbes, uma democracia para uso interno, e uma monarquia (diríamos hoje: uma ditadura) na relação com os países colonizados.

Modernamente, é verdade que nenhum país democrático invadiu outro que também o fosse. Mas a questão ateniense e romana continua presente: várias democracias adotam um padrão para uso interno e outro, bem diferente, para uso externo. Todo o colonialismo e, por que não dizer, imperialismo modernos assim se explicam. No século XIX, a Grã Bretanha, a França e os Estados Unidos já eram Estados democráticos - menos do que hoje, mas bastante. No entanto, negavam a outros países os direitos de seus cidadãos. Há coisa pior, porém.

Refiro-me às intervenções de alguns desses países para eliminar movimentos democráticos em nações subdesenvolvidas. O caso talvez mais grave, até porque o feitiço se virou contra o feiticeiro, é o do Irã. Em 1953, o primeiro-ministro Mossadegh, favorável a uma democracia em estilo ocidental, é deposto por um golpe promovido pela CIA. O episódio é bem estudado por Stephen Kinzer, em seu excelente "All the Shah"s Men". O xá volta ao poder, reprime ferozmente os rebeldes, prende Mossadegh (não ousa executá-lo) e - um quarto de século depois - é deposto por uma oposição religiosa que sequer existiria, caso a oposição leiga dos anos 50 tivesse podido se expressar. O que se segue - a teocracia islâmica - é pura culpa dessa agressão de um país democrático a um que tentava tornar-se democrático.

Ou pensemos no apoio dos Estados Unidos ao golpe contra João Goulart, presidente do Brasil, ou Salvador Allende, do Chile. Nos dois casos, tratava-se de países democráticos, com governos escolhidos segundo a Constituição em eleições limpas. Ora, subverter um regime, apoiar a deposição de um governo não são formas de fazer guerra? Então um regime democrático, o americano, guerreou outros, o brasileiro e o chileno, para não falar em muitos mais. Portanto, democracias fazem sim, na Antiguidade ou na era moderna, guerras umas a outras.

Que consequências podemos tirar desse fato? Primeira, se isto é um consolo, que entre si as democracias não fazem guerras explícitas, declaradas, como invasões. Se é verdade que "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude", porque o desonesto se envergonha de sua desonestidade, então - pelo menos - os governantes democraticamente eleitos sabem que é feio atacar um regime democrático ou que se está democratizando. Faz alguma diferença, mas talvez seja pouca, porque a hipocrisia não impede o delito.

A segunda consequência é mais complicada. Digamos que a democracia é contagiosa, no melhor sentido do termo. Ela atrai. Então, quando uma democracia se fecha sobre si e nega direitos - seja a negros, a árabes, a mulheres, a quem for - ela se torna vulnerável e, pior, começa a sabotar a si mesma. Parece que uma democracia tende a ser aberta, integral, em expansão: não só amplia os direitos de quem a integra como, também, alarga o número dos que reconhece como pessoas, titulares de direitos. Aqui entra em cena o cosmopolitismo: a ideia, que vem do filósofo grego Diógenes, o Cínico, de que existe algo como um "cidadão do mundo", um "kosmopolites". Uma polis confinada em si mesma não faz sentido. Indo mais longe: é ou deveria ser da natureza das polis, dos Estados democráticos, serem amigos.

Não vivemos num mundo de conto de fadas, onde todas as democracias são gentis entre si. Mas a história mostra que os regimes populares do mundo antigo - a democracia ateniense e a república romana - sucumbiram por não saber integrar o dentro e o fora, os direitos reconhecidos a seus membros e o desprezo e exploração votados ao estrangeiro. Se a democracia é atraente e por isso tende a se hiperpovoar, isso não se resolve fechando-se suas portas ou, pior, reprimindo-se outros povos para que não a ameacem. Até porque novas democracias podem ser diferentes das que já existem. A democracia brasileira, sustento há tempos, coloca a necessidade de um afeto político democrático que rompa com uma tradição nossa do afeto autoritário, que até poucos anos prevalecia em nosso país. As democracias árabes, que poderão existir ou não, formulam novas perguntas. Não temos ainda as respostas mas - com toda a certeza - ela não virá negando-se o que conseguiram de democracia, porém somente o aumentando. Mesmo que isso implique riscos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

Favas contadas - DORA KRAMER

Decisivo para desempatar o julgamento sobre a posse ou não de Jader Barbalho na cadeira de senador, o voto da nova ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, não fará diferença no placar da decisão sobre a validade constitucional da Lei da Ficha Limpa.

É que o ministro Marco Aurélio Mello já está decidido, e tem dado sinais públicos disso, a votar em favor da constitucionalidade da lei. Isso quer dizer que se o assunto voltasse a ser examinado antes da posse da ministra que ocupará a 11.ª vaga, ainda assim o resultado seria, no mínimo, de seis a quatro em prol da exigência de ficha limpa para candidatos a cargos eletivos.

Até agora Marco Aurélio vinha sendo visto entre os colegas como partidário da tese de que a lei que torna inelegíveis políticos condenados por um tribunal em primeira instância fere o princípio da presunção da inocência.

Os dois votos já declarados nas duas sessões anteriores em que o julgamento foi interrompido por pedido de vista do processo, foram a favor da constitucionalidade: o do relator Luiz Fux e do ministro Joaquim Barbosa.

Como Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski já haviam se manifestado da mesma forma em outras ocasiões, seriam cinco votos. Com mais o de Marco Aurélio Mello, seis.

Gilmar Mendes é defensor da aplicação do princípio da presunção de inocência. Ainda que José Antonio Dias Toffolli, Celso de Melo e Cezar Peluso o acompanhem nessa interpretação, a questão estaria decidida independentemente da posição de Rosa Weber.

Mas, pelo sim pelo não, o assunto só voltará à pauta depois da posse dela, quando então o colegiado estará completo. E por que não logo após a votação da indicação da ministra no plenário do Senado? Porque o STF entra em recesso no próximo dia 20 e em janeiro estará em férias. O julgamento será a partir de fevereiro de 2012.

Isso não afeta a vigência da legislação para a eleição municipal, porque a exigência de aprovação de uma lei no mínimo um ano antes do pleito já está atendida. O projeto foi aprovado pelo Congresso em maio de 2010 e, por isso, o STF julgou que não poderia entrar em vigor na eleição do mesmo ano.

Inclusive com o voto de Marco Aurélio Mello, que já naquele julgamento manifestou-se contrário à possibilidade de a lei ser "fulminada" ou "flexibilizada".

Na opinião dele, o que está em jogo na Lei da Ficha Limpa é a boa conduta como atributo para o exercício da vida pública, o que não tem, segundo o ministro, nada a ver com a questão da culpabilidade criminal e suas consequências penais.

O ministro vê a norma como um avanço cultural e compara a Ficha Limpa a outras leis que considera intocáveis pelo benefício inequívoco à sociedade. Cita os exemplos do Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Na visão de Marco Aurélio, o STF deve estabelecer o norte, deixando os detalhes para serem tratados pela Justiça Eleitoral no julgamento de casos concretos.

O processo. O ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares andou dizendo que não se arrepende de nada do que fez. Pois deveria se ouvisse companheiros de partido que ajudou a arrastar para a lama e que se envergonham do episódio.

Para o ex-tesoureiro não houve crime, mas um "processo político" em meio ao qual foram arrecadados R$ 55 milhões sem intuito de enriquecer ninguém, mas para dar ao PT e aos partidos aliados uma fonte de recursos para campanhas.

Baseado nesse argumento, Delúbio sustenta que o "mensalão não existiu". Mas confirma que houve partilha entre partidos. O destino do dinheiro é irrelevante. O que importa é a origem: desvio e tráfico de influência.

De vez em quando é bom repor a história nos devidos termos, tão insistentes são as versões adaptadas do roteiro original escrito na denúncia da Procuradoria-Geral da República apontando a existência de uma quadrilha organizada para desviar dinheiro público maquiado em empréstimos fraudulentos e distribuí-lo entre os partidos que formariam a mais ampla base de apoio governamental desde a Arena.

O exemplo - LUIS FERNANDO VERISSIMO

Da série Ironias da História. A Alemanha comanda a reação europeia à crise monetária porque é a economia mais estável da região e a que melhor conserva esta estabilidade, e assim tem a autoridade moral para exigir austeridade dos outros. Vários analistas econômicos já estão começando a duvidar que austeridade, cortes em investimentos dos governos e desmonte dos sistemas de bem estar social sejam a saída da crise, com medo de que o remédio é que acabe matando o paciente. Mas todas as dúvidas esbarram na resolução da frau Merkel e na sua certeza de que nesta hora todos devem ser um pouco alemães, custe o que custar.

Não é a primeira vez que a Alemanha dita, ou tenta ditar, os destinos da Europa, nem a primeira vez que se apresenta como um modelo a ser imitado, ou seguido, por todo o mundo. Pode-se mesmo dizer que a história da Europa nos últimos dois séculos foi a história da sua acomodação em torno da Alemanha e suas pretensões políticas, econômicas e geográficas – uma acomodação nem sempre possível e que em duas ocasiões acabou em guerras mundiais. Depois da sua aventura nazista o modelo alemão passou a ser não o da arregimentação totalitária, da suposta superioridade racial e da inconformidade com suas fronteiras, mas de eficiência e de recuperação industrial, e da frugalidade dos seus cidadãos, que agora seria exemplo para todos.

As multidões que enchem as ruas da Grécia, da Espanha e etc, protestando contra uma austeridade que castiga quem tem menos culpa pela crise, talvez tenham levado alguns analistas a reverem sua ortodoxia, mas não comoverão os alemães, que têm tido a última palavra nas medidas para evitar a degringolada final.

Ironicamente, depois de invadir meia Europa durante as duas grandes guerras e ser rechaçada, a Alemanha finalmente consegue transformar os europeus em súditos, pelo menos do seu reich econômico. E sem disparar um tiro.