sábado, 26 de novembro de 2011

Jussara na berlinda - José Castello

A leitura dos poemas da pernambucana Jussara Salazar — que reencontro em “Carpideiras” (Editora 7Letras) — me arremessa de volta aos jogos de infância. Não sei de que parte da mente, entre um verso e outro, me ressurge a antiga brincadeira da berlinda No jogo infantil, uma das crianças é objeto de comentários que lhe chegam anonimamente. Às cegas, deve eleger um deles, o que transforma o emissor em seu substituto. Nesse entrecruzamento de posições, alguém sempre está na berlinda. Como, na vida, sempre estamos.

Estranho que um livro que fala das lágrimas e de morte me remeta, justamente, à infância. É mais prudente examinar melhor a palavra, “carpideira”, que o dicionário define como uma “mulher mercenária que acompanhava os funerais pranteando os mortos”. Há, em sua figura, uma “atuação” — como a do ator em cena. Uma encenação nesse choro que empresta dramaticidade a um corpo vazio.

Existe, talvez, uma relação imprevista entre as carpideiras e a berlinda. Nos dois casos, joga-se alguma coisa — uma parte do ser está em questão. Mas existe, também, uma diferença crucial: enquanto as crianças colocam-se na berlinda por prazer, as carpideiras choram para tirar vantagens de suas lágrimas. O desempenho na berlinda é gratuito, fútil e interminável. Já as carpideiras medem as horas e as intensidades de seu choro, à espera do justo pagamento. Nem isso importa: crianças e carpideiras tiram efeitos surpreendentes de seus desempenhos.

Essa tensão entre o inútil e o útil está no coração dos poemas de Jussara Salazar. As carpideiras fazem sua ópera Por isso talvez o livro, em que a poesia se metamorfoseia às vezes em prosa, abre com um cenário luxurioso. “No ano sagrado da colheita ao entrar na aldeia víamos a grande arvore luminosa plantada ao centro do bosque”. A árvore evoca os deuses e remete a sentimentos antigos. Prossegue a poeta: “Do chão em torno de seu corpulento lenho brotava o fogo-fátuo (...) por onde saltava misterioso o boitatá enquanto alguns macacos lançavam olhos de fogo ao vento”.

As imagens, contínuas e tensas, se derramam sobre as páginas, nelas gravando o tom agudo (choroso) do poema. Estamos em um teatro: o versos vêm entrecortados por breves descrições de cena. Costuram uma narrativa secreta. A ação parece incontrolável: “Aceso o clarão das velas do céu/ um macaco salta a umbra noturna/ rondando a manhã lunar”. Nas sombras, velhas — como versos rangentes — se movem e se lamuriam. A palavra, milenar, encarna-se nesses personagens vagos, para quem a poesia é, antes de tudo, um canto. Música remota, impregnada nas palavras. Encanto.

Jussara faz dos poemas um leito para o relato. O zumbido nordestino a envolve. Descreve: “Cantarolando entre as rãs/ sou humana rodopio/ no alpendre da casa”. A magia esconde-se nas miudezas. A construção equivale à destruição Escreve Jussara: “Sangro a terra arrancando pedaços/ até que nada reste e vou-me raposa/ ao vento desatinada e casta noiva”. As lágrimas imitam sangue que escorre. Ao fundo, um coro de anjos acolhe a aflição do leitor. “Quem quer ver a barcarola/ Que vai se deitar ao mar/ Nossa Senhora vai nela/ Vão os anjos a remar”.

No entrecruzamento de falas (comentários secretos, como na berlinda), as posições se deslocam. Personagens fluidos, eles se esquivam, se disfarçam, não se deixam pegar. A História, com seu ameaçador “H” maiúsculo, percorre as entrelinhas: “Passou um minuto e depois cem anos/ quando a barca das velhas aportou/ Trouxeram o breviário e umas fotos lá do cafundó”. Ato: teatro. No laço dos poemas, cada gesto, por menor, ganh grandeza.

Em uma escrita antiga, Jussara remenda versículos, cantos, orações, retábulos. Até que o livro, retorcendose, fala de si mesmo. Está escrito: “Abre-se o livro/ sinuoso rio/ voz muda/ palavra bela”. Diz mais: “Rio livro sinuoso/ cósmico/ a água arrasta/ a maré carrega/ rio sinuoso/ livros sãocasas”. Jussara escreve aos talhos; é uma escultora que, com a lâmina das palavras, corta nossa ilusão. O jorro de palavras conduz a um “canto geométrico”, discretamente cabralino, que a poeta define como um “teatro de luz”. Jogo bruto _ as metáforas como cartas sangrentas, as palavras como grilhões. A escrita de Jussara é espessa, cada palavra arrasta consigo algo de material. Quase podemos ouvir o choro que sublinha a palavra.

Volto à berlinda, jogo em que palavras anônimas se oferecem como cartas de um baralho. A criança (a poeta) faz sua escolha no escuro e depoi precisa aceitar o que a sorte lhe destinou. O coro das carpideiras instala o teatro da morte, mas também purifica a casa dos malefícios da dor. Ele a incorpora, transformando-a em energia. Ato de salvação em que a vida, mesmo diante da morte, resiste. No momento em que rematam a mortalha, as velhas carpideiras ainda dizem: “Com espinho/ costuro amarro/ prendo teu coração com o meu”. O canto (a palavra) é este cordão forte com o qual, choramingando, as carpideiras se amarram à morte. Não para engoli-la (não para morrer), mas para lhe destinar um lugar. O teatro do poema chega, enfim, a seu termo: “dá corpo” a algo que já não tem corpo algum. Eis a poesia.

É um jogo, é só um jogo, que tem seu lado interesseiro, mas que, para além disso, acolhe e emoldura o rombo que, impotentes, enquadramos com a palavra “morte”. Como diz a poeta, depois “a beleza adormece”, envolta, enfim, no silêncio. “Calar o escasso é cantar um reinado”. Envolto na mudez, “o relógio das horas/ ecoa sem fim”, sinal de que a vida — arrancada da morte, como em um parto — prevalece.

A poesia não tem solução. Nada resolve. Como o canto das carpideiras, não passa de encenação. De um substituto, um consolo. Poetas podem ser mentirosos, fraudulentos, falsários, nada importa: é a palavra que, fingindo-se de veste, lhes dá o próprio corpo. De um poeta, o que se tem, enfim, é só isso: uma ferida. Diz Jussara: “este cortejo é uma rua/ uma saída/ onde a ânsia mergulha/ no espesso da vida”. O que mais ouvir, senão esse rumor?

Email: josegcastello@gmail.com.

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