domingo, 6 de novembro de 2011

Destinatário desconhecido - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

Universitários da USP não sabem a quem dirigir sonhos e revolta: o endereço é difuso e está em
toda parte, até no cenário bucólico do fumacê


A agitação estudantil na Cidade Universitária repõe na pauta das curiosidades da hora a questão cíclica da inquietação juvenil. Renova o interesse pelos rumos que nas novas gerações as minorias traçam para si mesmas e para a sociedade que as deu à luz e as amamentou até esses dias de impasse entre a condição de adolescentes e a condição de adultos. As tensões entre as gerações tornaram-se cíclicas e constituem uma das características desta pós-modernidade de rumos incertos e vacilantes.

Desde a clássica explicação que a essas crises deu Karl Mannheim, passando pelas análises de Marialice Foracchi e de Octavio Ianni, aqui no Brasil, sabemos que a rebelião dos jovens repousa primariamente na necessidade de dar sentido ao vazio que os separa da geração dos pais. Ianni demonstrou, em seu seminal estudo sobre O Jovem Radical, que as diferenças de inserção e de experiência social, às vezes numa mesma família, como em Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti, conduzem a ações que vão do político ao criminal, opostas entre si.

É sempre complicado peneirar nesses espasmos de rebeldia a historicidade propriamente dita de ações que pouco diferem de uma curiosa terapia coletiva à custa do dinheiro público e dependem do suporte explícito de sindicato de funcionários públicos que não têm habilitação como terapeutas. Coisas dos filhos de uma classe média próspera, liberados das ansiedades próprias da busca do primeiro emprego. Filhos magoados, porque retardatários da história, que lamentam não ter vivido quando se desenrolaram os episódios supostamente decisivos da nossa contemporaneidade. Jovens que imitam o suposto passado dos pais para ser o que não são nem poderão ser, pois os tempos são outros, são outras as necessidades radicais que movem a história. Imaginando propor a negação da negação, ignoram que negação é superação determinada por mediações, que é preciso ser e saber para transformar e superar. A história não se repete senão como caricatura, disse o pai da ideia. São personagens da incerteza própria da transição e da busca.

Os estudos sociológicos sobre a juventude, nos últimos 60 anos, acrescentaram um fundamental capítulo ao nosso conhecimento da sociedade contemporânea, a dos conflitos administrados e das rebeldias politicamente impotentes. Até o século 18, as sociedades foram marcadas pelas revoluções camponesas de cunho disfarçadamente político. A decisiva Revolução Francesa, que anunciou ao mundo os novos valores da civilidade, centrados nas concepções de cidadania e dos direitos do homem, pegou carona na revolta popular dos parisienses que, no bairro de Saint Antoine, protestavam contra o preço iníquo do pão. Não foi o brioche de Maria Antonieta que a motivou; foi a padaria da esquina.

Nesse cenário de mudanças, o século 19 europeu foi marcado pela ascensão política da classe operária, mas também pela consolidação das contraideologias repressivas e pelas instituições de segurança do Estado. Mesmo a Revolução Russa, de 1917, não foi propriamente uma revolução operária. Foi uma revolução doutrinariamente operária, mas de fato uma revolução popular difusa. Aqui, o proletariado se formou tarde e nunca se constituiu numa força política de classe suficientemente densa e organizada para se propor a disputa do poder em nome próprio.

Até porque desprovido de doutrina que o iluminasse emrelação às concretas e singulares condições históricas de um capitalismo de periferia. Aqui nos chegaram as doutrinas importadas, já eivadas de fragmentação e de dúvidas suscitadas por experiências históricas que eram bem diversas das nossas. O mais próximo que chegamos de uma revolução popular urbana, que remotamente lembra a Comuna de Paris, de 1871, foi a greve geral de 1917, em São Paulo. A greve mostrou que as elites não estavam preparadas para lidar com a conflitividade decorrente da industrialização. Um país em marcha para a industrialização, administrado por mentalidade de fazendeiro de café, educado nas premissas da escravidão.

Os anos 60 anunciaram, nos países ricos, que novos sujeitos políticos ocupavam o cenário até então ocupado pelas classes sociais e seus embates. Novos personagens pediam a palavra e passavam a protagonizar os conflitos próprios da nova era da pósmodernidade: as gerações, os gêneros. A revolução juvenil parisiense de 1968, que respingou aqui no Brasil sua mobilização intensa e romântica, anunciou o novo tempo das lutas fragmentárias dos recém-chegados à cena histórica e sua ação política inovadora. Com razão, queriam sonhar. Contrapunham- se à sociedade da coisificação, da confusão entre mercadoria e gente, entre coisa e pessoa. Mas, como agora aqui na USP, não sabiam o endereço do destinatário da revolta e do sonho pela simples razão de que o destinatário é difuso, está em todos os lugares, até mesmo e sobretudo no cenário bucólico e poluído do fumacê ao lado do prédio de História e Geografia, onde o sonho é cotidianamente comercializado por traficantes e mercenários.


JOSÉ DE SOUZA MARTINS, SOCIÓLOGO E PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É AUTOR DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO 2011)

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