sábado, 15 de outubro de 2011

Garota na chuva e Steve Jobs - SÉRGIO TELLES

Um dos prazeres fornecidos pelo humor é sua capacidade de expressar, de forma socialmente aceitável, fantasias sexuais e agressivas que estão habitualmente reprimidas.

A dimensão disruptiva do humor faz com que ele esteja sempre no fio da navalha, exigindo habilidade dos comediantes para não resvalarem para a franca agressão ou grosseira obscenidade.

Não é, pois, de surpreender que o humor se ressinta das limitações que o politicamente correto progressivamente lhe impõe, o que leva muitos a ver como cerceadora de liberdade tal atitude. O que ocorre é que a consciência politicamente correta denuncia a conotação agressiva e desrespeitosa implícita nas piadas e "brincadeiras" das quais as diversas minorias são alvos. Desta forma, a parcela de agressividade que até então tinha livre descarga através do humor, cai novamente sob repressão, engrossando o caldo do que Freud chamou de "mal-estar na cultura" - a necessidade da repressão das pulsões para que a convivência humana seja possível.

Se o politicamente correto se constitui numa pressão social, o mesmo ocorre em nível individual. Não é incomum os comediantes pagarem um preço alto por suas atuações, quando pessoas que se sentiram diretamente atingidas por suas invectivas exigem reparações. O caso mais recente é o do Rafinha Bastos, forçado a pedir demissão do CQC e da Band em função de uma piada considerada ofensiva demais para passar sem punição.

Dos atuais programas televisivos de humor, os mais interessantes são o CQC e o Pânico na TV. Enquanto o primeiro tem um formato aparatoso que procura passar uma impressão de força e atualidade tecnológica, o Pânico opta por uma forma mambembe, condizente com seu espírito irreverente e debochado, distante de qualquer pretensão pomposa.

É costume do Pânico pegar pessoas do lúmpen que se destacam por determinadas peculiaridades físicas ou mentais e transformá-las em personagens de seus quadros. Em sendo um programa de humor, fica implícito o objetivo de explorar a comicidade que eles involuntariamente podem provocar no público. Haveria aí uma questão ética? Estariam estas pessoas sendo exploradas em sua simplicidade? Seriam elas guindadas à condição de "celebridade" e depois devolvidas ao seu anonimato original sem qualquer preocupação com os efeitos dessa experiência em suas vidas? Isso as transforma em vítimas do programa, da maligna máquina de comunicação? Ou seria esta uma oportunidade inusitada que se abre para tais pessoas e que elas não veem porque não aceitá-la - quer seja por não terem alternativas melhores ou por ser uma possibilidade de escapar, mesmo que de forma incerta e temporária, de uma vida obscura e sem perspectivas maiores?

O que o Pânico faz com estas pessoas é uma versão mais modesta e barata dos realitys shows. Os participantes do reality show veem a radical banalidade de suas vidas transfigurada, na medida em que passam a ser mostrados como personagens shakespearianos, vivendo complicadas situações de amores, traições e intrigas palacianas, numa dimensão impossível em suas vidas reais.

É nesta galeria que se insere Ednéia Macedo. Ingênua compositora e cantora, ela produziu pequenos clipes com suas músicas e os postou no YouTube, onde foi notada pela equipe do Pânico. Nos últimos dois meses, seu desejo de ser uma pop star foi transformado numa atração do programa. Assim, o público tem seguido as atividades de Ednéia, seus contatos com pessoas famosas, seus encontros com profissionais do show business que poderiam ajudá-la em seu projeto. Sua presença no Pânico fez com que um de seus clipes, o Garota na Chuva, ao modo viral típico da internet, virasse um item de grande visibilidade, atualmente com 1,79 milhão de acessos.

Em que pese o caráter eminentemente amadorístico e singelo dos clipes, é notável que uma moça sem muitos meios, morando em Mutuípe, interior da Bahia, possa tê-los realizado com recursos locais, obtendo um resultado bastante apresentável, com uma correta montagem de imagem e som. É uma inequívoca demonstração de como a tecnologia ficou acessível a uma imensa maioria, algo impensável há pouquíssimo tempo.

A isso se acrescenta esta coisa extraordinária que é a internet, possibilitando o encontro das tribos mais remotas e estranhas, a articulação de grupos sociais, a divulgação de notícias e de produções individuais, rompendo com os canais convencionais dominados pelo poder político e econômico. Estamos no meio de uma imensa revolução branca, que com sua novidade e fluidez, desafia as estruturas constituídas, apontando para novas práticas democráticas que dispensam as envelhecidas engrenagens políticas, forçando sua renovação ou substituição. É o que mostram a Primavera Árabe e o atual Outono Norte-americano, com a "Ocupe Wall Street".

Ednéia surfa nesta onda. É um produto híbrido da tecnologia acessível às massas, da internet e da televisão. Se alguns ficam penalizados com ela, vendo-a como mais um objeto manipulado, e em breve descartado, pela indústria do entretenimento, alvo de um humor cruel e impiedoso que a mostra de forma desfavorável, não me encontro entre eles. Vejo-a como alguém que luta com os recursos que tem, apostando tudo no jogo que ela mesma desencadeou, disposta a arcar com os inevitáveis custos do processo. Afinal, ninguém melhor do que ela para saber que quem sai na chuva é pra se molhar...

Ao falar de Ednéia Macedo e de suas peripécias, que mostram de forma irrefutável a irreversível popularização da tecnologia, quero homenagear Steve Jobs, que tanto fez para tornar isso possível.

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