sábado, 22 de outubro de 2011

CLÁUDIA LAITANO - A pornografia da morte

Há exatos 15 anos, quando a rede mundial de computadores ainda não era tão mundial assim, o Brasil assistiu à eclosão de um fenômeno que viria a crescer junto com a internet nos anos seguintes. Poucas horas depois do acidente que matou os integrantes da banda Mamonas Assassinas, em março de 1996, chegavam à rede imagens chocantes de corpos mutilados, espalhados pela mata onde caiu o avião.

Nunca se soube exatamente como as fotos vazaram, mas a rapidez com que elas se disseminaram era inédita até então e anunciava o início de uma nova era: a tecnologia de compartilhamento instantâneo de informações, associada à humana inclinação para a curiosidade mórbida, ampliava exponencialmente o alcance de uma das mais desprezíveis formas de invasão da privacidade – aquela em que as vítimas não têm qualquer chance de defesa. O fenômeno ganhou um nome, “death porn”, algo como “pornografia da morte”.

Na pornografia da morte, o corpo é banalizado e subtraído do seu conteúdo humano, como na pornografia do sexo. Quem vê uma foto de uma mulher nua em uma revista não está preocupado em saber se ela paga aluguel ou se é uma filha amorosa de pais velhinhos. O corpo é reduzido à função básica de satisfazer uma fantasia – e qualquer subjetividade só é admitida no jogo quando serve ao propósito dessa fantasia.

No caso da pornografia da morte, o corpo também deixa de ligar-se a uma pessoa para tornar-se o objeto de um voyeurismo mórbido. Se a pornografia convencional busca o prazer do sexo sem obstáculos e sem complicação, a pornografia da morte é o exercício de uma espécie de sadismo sem vítimas e sem punição.

A história é recheada de cadáveres célebres usados como propaganda política – tanto para honrar a memória da vítima quanto para sepultá-la simbolicamente. Durante a Revolução Francesa, o quadro A Morte de Marat, de Jacques-Louis David, foi usado para retratar o sanguinário líder revolucionário como um mártir heroico da causa do povo. Mais tarde, quando os ventos políticos mudaram, o quadro foi banido da França.

As clássicas imagens de Che Guevara morto nas selvas da Bolívia serviram tanto para provar que ele fora derrotado quanto para alimentar o mito quase religioso que cercaria sua memória nos anos seguintes. Mortos costumam ser muito obedientes ao uso que os mais vivos decidem fazer deles.

No caso de Kadafi, no entanto, o conteúdo pornográfico e aleatório das imagens de sua execução parece ter superado qualquer subtexto político. Os inimigos do ditador líbio podem argumentar que mostrá-lo morto era indispensável, mas a sensação é de que algum limite inédito foi transposto nessa exibição obscena do cadáver.

Houve um tempo em que esse tipo de imagens seria filtrado antes de chegar à grande imprensa. Não mais. Um observador de posse de um celular é o que basta para que o conteúdo extrapole qualquer tentativa de mediação ou pudor. A decisão de divulgar ou não uma imagem não está mais na mão de quem pode achar importante refletir sobre o que é ou não adequado divulgar ou mesmo de quem deseja fazer o uso político dela – mas na ponta dos dedos do voyeur tecnológico mais próximo.

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