domingo, 30 de outubro de 2011

Caetano Veloso - Poulenc

Lembrei-me agora mesmo dessa peça de música como tentativa de me consolar da secura de meu espírito


A ladeira do cemitério de Santo Amaro era um lugar bom para conversar de tarde. Carlinhos de Edite sentia sempre muito calor, por isso liderava a ida de uma pequena turma para deitar no cimento da ladeira, em suas pedras, no meio da tarde. A gente não tinha medo. Quando, anos antes, eu morava ainda na Rua Direita, ir até o portão dos fundos à noite, sabendo que o cemitério estava logo ali atrás da casa de seu Iosinho Freitas, dava medo. Arrodear o quarteirão e passar pela frente do portão do cemitério de bicicleta foi uma aventura que não sei se vivi (na garupa de um adulto) ou se imaginei assustado. Talvez eu tenha vivido mesmo. Dei a volta cheio de medo, mas saí da experiência muito mais destemido. Depois, já morando na Rua do Amparo, uma antes da Estrada dos Carros, onde o cemitério fica, eu já não tinha quase medo. Nessas idas à tarde, medo nenhum. A brisa fazia tudo ficar agradável, embora para subir a ladeira a gente tivesse de transpor o portão de ferro batido.

Santo Amaro fica numa baixada. Faz muito calor fora do inverno. O cemitério era o único ponto urbano situado sobre uma colina. A Igreja da Purificação fica numa parte um tanto elevada da praça grande e, com os degraus do adro somando-se a isso, tem-se um pouco de vento — de “viração” — à tarde.
Mas nada se compara ao cemitério. O resto é muito quente. Eu sempre gostei de calor. Mas muita gente que nasceu em (e nunca viveu fora de) Santo Amaro percebe o calor como um defeito insuportável do mundo. Carlinhos era assim. Minha irmã Clara é assim. Muitos amigos meus europeus sofrem frio no Rio — para não falar em São Paulo ou Curitiba. No meio de julho alguns deles poderão sentir frio em Santo Amaro. Ontem eu senti tanto calor em Santo Amaro que cheguei a suar minha camisa branca. Nem no cemitério a brisa parecia amenizar a temperatura. É muito raro isso acontecer comigo. Saí de lá e fui direto para o aeroporto de Salvador, onde peguei um avião para Porto Alegre. Com escala em São Paulo. Estava um tanto frio nos aviões, não demais (em geral faz muito frio dentro deles, como nos cinemas e em alguns restaurantes). Em Porto Alegre só senti frio — pouco — depois que o show acabou e a noite já ia alta. Mas não foi muito.

Já conheci o ódio pelo frio, envolvido em terror, numa noite em Paris durante o exílio, a 12 graus abaixo de zero, tendo deixado o carro longe do restaurante aonde tínhamos ido (a temperatura desceu grandemente durante as cerca de duas horas que passamos ali). Voltamos andando até o carro e no meio do caminho eu tremi, gritei, me torci, doí de frio. O que me salvou foi poder extravasar a raiva cantando “Apesar de você”, de Chico — canção que adoro até hoje, estando certo de que, se Chico a cantasse no próximo show, eu a ia amar como coisa atual, nova e viva, diferentemente do que ele próprio sente em relação a ela. Porque não seria só pela lembrança desse momento parisiense: é a força intrínseca da canção que a fez tão eficaz naquele momento e que não está nem um pouco desgastada para mim. E não me faltam interlocutores púbicos ou íntimos a quem eu diria cheio de alma aquelas palavras.

Raramente odiei o calor. Na verdade, nunca. Algumas vezes em Guadalupe, em 1956, me senti oprimido por ele. Uma vez, em Madri, tive medo do calor seco, como se estivesse num filme de ficção científica passado num planeta distante e com uma atmosfera de composição química totalmente diferente da da Terra. Em geral o calor me deixa excitado e cheio de esperança. Os primeiros dias quentes de cada ano vêm cheios de promessas. Já não me importa tanto que quase nunca elas se cumpram. Já é bom à beça andar descalço em casa, sair sem meias, usar pouca roupa e leve.

O mundo é um lugar estranho para nós. Hoje vi do avião um desses céus que nem nos desenhos animados eles conseguem fazer tão deslumbrantes. Um ciclorama em degradê do azul ao laranja, sobre o qual uma unha de lua e uma estrela se dispunham em composição incrivelmente equilibrada em relação ao pedaço visível de céu, numa nitidez de brilho mais real do que o real, tudo parecendo fazer sentido e afirmar os fundamentos da beleza. No entanto, senti uma frieza interna que me deixou de cara com a evidência da gratuidade e indiferença desses arranjos. Percebi o vazio de valor estético nesses fenômenos que podem ser apenas detalhes de uma catástrofe inútil. Alguém muito próximo morreu. O acerto do coral londrino executando “A figura humana” de Poulenc resistirá a tal acontecimento? Se não isso, o quê? Na verdade, lembrei-me agora mesmo dessa peça de música como tentativa de me consolar da secura de meu espírito diante de um tão especial céu de fim de tarde. Sem ouvi-la, pensar nela fez renascer um pouco a capacidade de reencontrar o encanto.

Acho que é assim mesmo. Lutamos com o mundo. Nunca poderia apreender o mundo como desencantado: não lhe entendemos os sentidos últimos, nunca pararemos de nos surpreender com a mera existência do que quer que seja. O que foi mesmo que me aconteceu no avião? Que dissabor me mostrou o luto que desmente minha certeza de que não há mundo sem encanto? O fato é que terminei, sem pressentir, indo pensar na peça de Poulenc. Quando me sentei aqui para escrever, planejava comentar Chico sobre si mesmo e Flora Thomson-Deveaux sobre Almodóvar e a Ação de Graças, mas havia a ideia de alguém cantando no meu cerebelo e terminei indo dar na Figura Humana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário