domingo, 30 de outubro de 2011

Ecce-homo - Alberto Dines

Eis o homem, teria dito Pôncio Pilatos ao indicar à turba o nazareno Jesus Cristo antes da sentença final. A mesma expressão foi usada pelo ateu Friedrich Nietzsche ao apresentar a sua autobiografia literária. Entre a última terça-feira (quando o STF aceitou a denúncia contra o ex-ministro Orlando Silva) e a quinta-feira (quando a presidente Dilma Roussef indicou o seu substituto), o país do futebol pôs-se à caça do homem (ou mulher) capaz de resgatar a sua credibilidade perante a plateia esportiva planetária.

O homem é Aldo Rabelo. Seus dados pessoais, políticos, psicológicos, patrimoniais, suas manias e devoções foram instantaneamente divulgadas. Faltaram nuances: nosso convívio com a arte biográfica é recente, nos contentamos com pouco, preferimos o anedótico. A pandemia da corrupção nos empurra para o estreito curso do pêndulo ficha-limpa/ficha-suja, o resto perde-se no mar das irrelevâncias.

Enquanto foi ministro das Relações Institucionais, Aldo Rabelo infernizou a vida do então chefe da Casa Civil, José Dirceu. Eleito para a presidência da Câmara, manobrou intensamente para evitar que o mensalão respingasse no presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas não despendeu a menor dose de energia para salvar o mandato do adversário Dirceu. Em compensação salvou da degola todos os parlamentares envolvidos no escândalo, inclusive os acusados de flagrantes quebras de decoro. Exceto Roberto Jefferson, o denunciador.

O que menos conta é o sujeito, o que está sub-judice neste momento é o nosso sistema republicano feudalista, não apenas antidemocrático mas grosseiramente ineficaz e degradador. Entregar aos partidos aliados ministérios inteiros, de porteira-fechada, como acontece há nove anos com o PCdoB e a pasta do desporto é uma acintosa aberração funcional. Aldo Rabelo pode jurar que punirá todos os responsáveis pelos desvios de recursos, nepotismo, prevaricação e favorecimentos, porém por mais frio, implacável e pragmático que seja jamais irá além das mudanças cosméticas.

A administração do Estado moderno é técnica, um ministério relativamente novo, com um acervo de vivências restrito, rodeado e infiltrado por insaciáveis interesses econômicos e eleitorais, se deseja alcançar um mínimo de competência não pode ficar prisioneiro de um monólito doutrinário. Mesmo porque nem o PCdoB nem qualquer outra agremiação política brasileira – excetuado o PSOL – podem ostentar uma homogeneidade ideológica. Em nosso horizonte político só existem projetos de poder. E estes são a ruína de nossas instituições.

Aldo Rabelo pretende acabar com a ligação direta entre as ONG e o governo federal transferindo o relacionamento para a esfera estadual e municipal. Isso não impedirá que Estados e municípios da base aliada se beneficiem abusivamente. Mais distantes dos grandes centros ficarão imunes à fiscalização e livres para continuar operando no mesmo paradigma da Era Orlando Silva.

O sistema de ministérios-bunkers, autárquicos, sequestra poderes do Estado equitativo e isonômico, impede-o de pensar federativamente e barra a imperiosa e inadiável reestruturação administrativa. Os ministérios-currais jamais admitirão uma diminuição no seu número mesmo com o aumento das sinergias e das áreas de atuação.

O saneamento empreendido pela presidente Dilma corre o risco de tornar-se ilusório se não for devidamente amparado por avanços estruturais consistentes.

Retirado do seu nicho espiritual, messiânico, Ecce-Homo é uma busca de nomes e pessoas. Neste momento o mundo está sedento de ideias.
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À beira da wikifalência - Sérgio Augusto

Goste-se ou não de Assange, o bloqueio dos banqueiros ao WikiLeaks restringe a livre circulação da informação e abala a democracia

Satanizados e hostilizados nas várias manifestações populares que se globalizaram a partir do movimento Ocupem Wall Street, a banca e os tubarões do sistema financeiro não saíram às ruas a empunhar cartazes com dizeres do tipo "Desocupem Wall Street!", "Deixem os ricos em paz!", "O meu ninguém leva!", "Eu sou do bem!", "Deixem tudo como está!", como imaginou o desenhista Barry Blitt para a capa da revista The New Yorker da semana passada. Não é esse o modus esperniandis dos financistas. Os donos da grana, ora absortos na crise do euro e no calote da Grécia, trabalham na surdina e já ocuparam as praças que queriam ocupar.


E tudo continuou como estava. Menos para Rajat Gupta, ex-diretor do Goldman Sachs preso na quarta-feira pelo FBI, acusado de contrabandear informações sigilosas e lesar investidores e acionistas. Mas sua expiação em nada arrefeceu a cólera dos acampados no Parque Zuccotti e seus epígonos nacionais e estrangeiros. A luta prossegue. Ainda há muitos guptas à solta.

Com a suspensão temporária das atividades do WikiLeaks, anunciada na segunda-feira por Julian Assange, os indignados perderam um valioso aliado na guerra contra a ganância corporativa e suas impunes e até estimuladas malfeitorias. Na surdina, a plutocracia conseguiu inviabilizar o website subversivo, especializado em coletar e vazar documentos comprometedores de entidades públicas e privadas. Bloqueou-lhe as fontes de pagamento, secou-lhe as finanças, impedindo-o de contabilizar as doações que sempre o sustentaram e em sua conta entravam através de duas empresas de cartões de crédito e intermediários como o Bank of America, a Western Union e a Pay Pal, dos mais populares sistemas de pagamento pela internet.

Um ano atrás, entusiasmado com os primeiros estragos causados pela ciberguerrilha de Assange em nome da transparência e convicto de que ele era um traficante internacional de informações que governos e instituições tentam esconder, não raro por razões escusas, escrevi aqui ser um consolo saber que a estrutura montada por ele, com a ajuda de centenas de voluntários, ativistas, nerds, criptógrafos e doadores sem parti pris ideológico, permitia ao WikiLeaks sobreviver sem lideranças, hierarquias, e até ao boicote orquestrado de antigos parceiros como a Amazon.com e os cartões de crédito Visa e MasterCard, que pararam de processar as doações ao site em dezembro. O boicote, como se viu, foi mais forte.

Visa e MasterCard, que praticamente duopolizam o mercado de cartões, cancelaram seu acerto com o WikiLeaks oito dias depois da enxurrada de telegramas diplomáticos do Departamento de Estado americano vazada pelo site, em 28 de novembro de 2010. A Pay Pal fizera a mesma coisa quatro dias antes. Somem-se a isso as pressões do governo americano e de diversos senadores, inclusive do independente Joe Lieberman, visando a tirar o site do ar. Conseguiram. Provisoriamente. WikiLeaks perdeu 95% de sua renda e precisa, segundo Assange, de US$ 3,5 milhões nos próximos 12 meses só para manter os atuais níveis de operações.

Com os 7 mil que, em média, passou a arrecadar mensalmente, contra os 100 mil que em sua conta pingavam todo mês no ano passado, Assange não paga nem a conta de luz. No site desativado, um pedido de socorro: "WikiLeaks needs you" (WikiLeaks precisa de você), animado por um vídeo que parodia o comercial da Visa para as Olimpíadas de Londres e acompanhado de várias dicas sobre como ajudá-lo a manter-se vivo e atuante. Aceitam-se cheques, via MoneyGram, que ao contrário da Western Union, permaneceu fiel ao grupo.

Assange se mexe como (e enquanto) pode. A qualquer momento a Justiça britânica pode deportá-lo para a Suécia. Enrolou-se todo com uma autobiografia, cuja venda ajudaria a cobrir parte do prejuízo, mas encalhou nas livrarias, sobretudo porque inacabada e com um título engraçado, mas de pouco apelo popular: Julian Assange: Uma Autobiografia não Autorizada. Deu outros tiros no pé, como anunciar, há dois meses, a liberação de todos os documentos em seu poder sem submetê-los ao crivo dos parceiros (Guardian, El País, New York Times, Le Monde, Der Spiegel) que, desde o início das operações, lhe asseguraram visibilidade e credibilidade, e tentar convencer um doador, a Wau Holland Foundation, a pagar as custas do advogado que o defende das acusações de má conduta sexual na Suécia.

Outro vacilo: a revelação, em agosto, de que o repórter etíope Argaw Ashine conversara com um alto funcionário da Embaixada dos Estados Unidos em Adis-Abeba sobre os planos do governo para intimidar a imprensa independente. Por sentir-se ameaçado, o repórter fugiu da Etiópia na semana passada. Para que pôr em perigo a vida de um jornalista, com base numa informação unilateral e, a rigor, irrelevante?

Vacilos à parte, goste-se ou não de Assange, temos de repudiar o bloqueio dos banqueiros ao WikiLeaks por considerá-lo uma agressão à democracia e à livre circulação da informação. Reproduzo quase literalmente o que o insuspeito James Ball escreveu há dias em seu blog no Guardian. Ball é um défroqué do site. Aderiu, como todo mundo, por idealismo, "por acreditar que podia mudar o mundo via internet"; desiludido, saiu. Não suportou ver Assange escolher um sujeito chamado Israel Shamir para representar o WikiLeaks na Rússia e no leste da Europa.

Shamir, que se dizia chamar Adam, parecia até um agente infiltrado, com a missão de desmoralizar a organização. Tão logo chegou pediu para ler tudo o que "o Departamento de Estado americano tinha sobre os judeus", era um tremendo antissemita, ligado a grupos racistas e tiranias de direita e esquerda, com bons serviços prestados à ditadura na Bielo-Rússia. Baseado num documento que Shamir vazou no final do ano passado, o regime autoritário de Alexander Lukashenko pôde identificar todos os "organizadores, instigadores e arruaceiros" que haviam protestado contra eleições fraudulentas no país, e trancafiá-los sabe-se lá por quanto tempo.

O WikiLeaks precisa da gente até ou sobretudo para evitar desvios dessa natureza

Caetano Veloso - Poulenc

Lembrei-me agora mesmo dessa peça de música como tentativa de me consolar da secura de meu espírito


A ladeira do cemitério de Santo Amaro era um lugar bom para conversar de tarde. Carlinhos de Edite sentia sempre muito calor, por isso liderava a ida de uma pequena turma para deitar no cimento da ladeira, em suas pedras, no meio da tarde. A gente não tinha medo. Quando, anos antes, eu morava ainda na Rua Direita, ir até o portão dos fundos à noite, sabendo que o cemitério estava logo ali atrás da casa de seu Iosinho Freitas, dava medo. Arrodear o quarteirão e passar pela frente do portão do cemitério de bicicleta foi uma aventura que não sei se vivi (na garupa de um adulto) ou se imaginei assustado. Talvez eu tenha vivido mesmo. Dei a volta cheio de medo, mas saí da experiência muito mais destemido. Depois, já morando na Rua do Amparo, uma antes da Estrada dos Carros, onde o cemitério fica, eu já não tinha quase medo. Nessas idas à tarde, medo nenhum. A brisa fazia tudo ficar agradável, embora para subir a ladeira a gente tivesse de transpor o portão de ferro batido.

Santo Amaro fica numa baixada. Faz muito calor fora do inverno. O cemitério era o único ponto urbano situado sobre uma colina. A Igreja da Purificação fica numa parte um tanto elevada da praça grande e, com os degraus do adro somando-se a isso, tem-se um pouco de vento — de “viração” — à tarde.
Mas nada se compara ao cemitério. O resto é muito quente. Eu sempre gostei de calor. Mas muita gente que nasceu em (e nunca viveu fora de) Santo Amaro percebe o calor como um defeito insuportável do mundo. Carlinhos era assim. Minha irmã Clara é assim. Muitos amigos meus europeus sofrem frio no Rio — para não falar em São Paulo ou Curitiba. No meio de julho alguns deles poderão sentir frio em Santo Amaro. Ontem eu senti tanto calor em Santo Amaro que cheguei a suar minha camisa branca. Nem no cemitério a brisa parecia amenizar a temperatura. É muito raro isso acontecer comigo. Saí de lá e fui direto para o aeroporto de Salvador, onde peguei um avião para Porto Alegre. Com escala em São Paulo. Estava um tanto frio nos aviões, não demais (em geral faz muito frio dentro deles, como nos cinemas e em alguns restaurantes). Em Porto Alegre só senti frio — pouco — depois que o show acabou e a noite já ia alta. Mas não foi muito.

Já conheci o ódio pelo frio, envolvido em terror, numa noite em Paris durante o exílio, a 12 graus abaixo de zero, tendo deixado o carro longe do restaurante aonde tínhamos ido (a temperatura desceu grandemente durante as cerca de duas horas que passamos ali). Voltamos andando até o carro e no meio do caminho eu tremi, gritei, me torci, doí de frio. O que me salvou foi poder extravasar a raiva cantando “Apesar de você”, de Chico — canção que adoro até hoje, estando certo de que, se Chico a cantasse no próximo show, eu a ia amar como coisa atual, nova e viva, diferentemente do que ele próprio sente em relação a ela. Porque não seria só pela lembrança desse momento parisiense: é a força intrínseca da canção que a fez tão eficaz naquele momento e que não está nem um pouco desgastada para mim. E não me faltam interlocutores púbicos ou íntimos a quem eu diria cheio de alma aquelas palavras.

Raramente odiei o calor. Na verdade, nunca. Algumas vezes em Guadalupe, em 1956, me senti oprimido por ele. Uma vez, em Madri, tive medo do calor seco, como se estivesse num filme de ficção científica passado num planeta distante e com uma atmosfera de composição química totalmente diferente da da Terra. Em geral o calor me deixa excitado e cheio de esperança. Os primeiros dias quentes de cada ano vêm cheios de promessas. Já não me importa tanto que quase nunca elas se cumpram. Já é bom à beça andar descalço em casa, sair sem meias, usar pouca roupa e leve.

O mundo é um lugar estranho para nós. Hoje vi do avião um desses céus que nem nos desenhos animados eles conseguem fazer tão deslumbrantes. Um ciclorama em degradê do azul ao laranja, sobre o qual uma unha de lua e uma estrela se dispunham em composição incrivelmente equilibrada em relação ao pedaço visível de céu, numa nitidez de brilho mais real do que o real, tudo parecendo fazer sentido e afirmar os fundamentos da beleza. No entanto, senti uma frieza interna que me deixou de cara com a evidência da gratuidade e indiferença desses arranjos. Percebi o vazio de valor estético nesses fenômenos que podem ser apenas detalhes de uma catástrofe inútil. Alguém muito próximo morreu. O acerto do coral londrino executando “A figura humana” de Poulenc resistirá a tal acontecimento? Se não isso, o quê? Na verdade, lembrei-me agora mesmo dessa peça de música como tentativa de me consolar da secura de meu espírito diante de um tão especial céu de fim de tarde. Sem ouvi-la, pensar nela fez renascer um pouco a capacidade de reencontrar o encanto.

Acho que é assim mesmo. Lutamos com o mundo. Nunca poderia apreender o mundo como desencantado: não lhe entendemos os sentidos últimos, nunca pararemos de nos surpreender com a mera existência do que quer que seja. O que foi mesmo que me aconteceu no avião? Que dissabor me mostrou o luto que desmente minha certeza de que não há mundo sem encanto? O fato é que terminei, sem pressentir, indo pensar na peça de Poulenc. Quando me sentei aqui para escrever, planejava comentar Chico sobre si mesmo e Flora Thomson-Deveaux sobre Almodóvar e a Ação de Graças, mas havia a ideia de alguém cantando no meu cerebelo e terminei indo dar na Figura Humana.

ENTREVISTA - O modernismo visto do avesso

ENTREVISTA

O modernismo visto do avesso

Fischer e os pontos cegos na obra de Antonio Candido

RESUMO Para crítico gaúcho, ler a "Formação da Literatura Brasileira" à luz da bibliografia recente evidencia seus "pontos cegos": a ancoragem em São Paulo, Minas e Rio; a redução de Machado de Assis ao "instinto de nacionalidade"; e a omissão de significativas realidades econômicas e culturais do interior do país.

RAFAEL CARIELLO

A história da literatura brasileira, tal como é ensinada nos manuais e reproduzida na universidade, arma-se sobre uma lógica "centralista, centrípeta e excludente", traços que partilha com a organização política e econômica do país, afirma Luís Augusto Fischer, 53. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele é um dos principais nomes da nova geração de críticos literários no Brasil.
É preciso, portanto, reescrevê-la, conclui o autor de "Literatura Brasileira: Modos de Usar" (L&PM) e "Machado e Borges" (Arquipélago). O modelo (e ao mesmo tempo grande adversário) de sua empreitada é a obra canônica sobre a constituição de um sistema literário no Brasil desde o século 18, a "Formação da Literatura Brasileira", do crítico Antonio Candido, 93.
Fischer, que se diz um "candidiano", enxerga "pontos cegos" na análise do mestre, "centrípeta e centralista", por ler a constituição da tradição literária no país do ponto de vista de São Paulo e, mais exatamente, do modernismo de Mário e Oswald de Andrade. Para superá-la, o gaúcho se vale da historiografia recente, que mostra um país, na colônia e no império, mais complexo e plural do que aquele que emerge das análises de uma economia monoliticamente escravista e agroexportadora, até o século 19. Nesse panorama social distinto, usa os instrumentos analíticos de Candido e busca sistemas "regionais" e nacionais que articulem obras, público e autores, para além do descrito na "Formação".

Em artigo recente, você afirma que a concepção de formação da literatura brasileira de Candido tem pontos cegos. Quais são alguns deles?
Primeiro, lembro que a "Formação da Literatura Brasileira" tem como subtítulo "Momentos Decisivos", em alusão ao arcadismo e ao romantismo. Então, o primeiro ponto cego ?presente, mas invisível no enunciado e inalcançável pela lente em ação- é outro momento decisivo, o modernismo: Candido só consegue armar sua equação crítica e seu ponto de vista por estar estabelecido no ângulo modernista de leitura do mundo.
Na introdução, está dito que o autor se identificou com o ponto de vista dos primeiros românticos e a partir disso releu aqueles momentos decisivos. Creio que a identificação só subsiste porque a visão do nacional por parte daqueles românticos tem muito a ver com a dos modernistas paulistas, ambos relendo o país, sua literatura, a representação da vida nacional, a fim de constituir uma interpretação nova do Brasil.

E quanto a Machado de Assis?
Machado é outro ponto cego, não porque Candido não soubesse de sua importância formativa e excelência estética, mas porque não dispunha do instrumental teórico capaz de descrevê-las (esta teoria será construída por seu discípulo Roberto Schwarz, na esteira do mestre e com lente adorniana).
Talvez se deva dizer que Machado é um ponto cego por ser o ponto de fuga da armação conceitual, no sentido geométrico. Ao conceber a "Formação", Candido estava identificado com o Machado do "Instinto de Nacionalidade", que estabeleceu uma perspectiva evolucionista ao declarar que uma literatura não tem "grito do Ipiranga": se faz aos poucos. Em sentido estrito, os dois pontos cegos mais relevantes, a meu juízo, são os que dizem respeito a totalidades que Candido naturaliza: Brasil e Europa. Onde se lê Europa, no livro, quase sempre se deve ler França. Embora fosse o farol da cultura letrada brasileira, não era a única fonte do pensamento. Basta ver Machado, que deu o salto decisivo de sua carreira pela emulação do romance inglês.
Onde se lê Brasil, estamos lendo de fato Rio e Minas, a partir de São Paulo, porque as variedades de fora deste circuito são apagadas.

Por quê?
Em atitudes de vanguarda, há pouco espaço para sutilezas, e os dois pontos de apoio histórico de Candido (o romantismo, de modo deliberado, e o modernismo paulista, implícito) são de feição vanguardista, ao menos em um ponto: são processos com empenho ideológico, literatura a serviço de causas. No primeiro caso, definindo a nacionalidade autônoma no Rio; no segundo, a nacionalidade moderna em São Paulo.

Como se dá esse processo?
Veja o caso da naturalização do Brasil. Se tomarmos uma figura de referência por momento, Alencar e Mário de Andrade, os dois por sinal com grandes afinidades ideológicas, veremos que ambos julgam incorporar a variedade regional em sua obra -Alencar extensivamente, em vários romances, Mário intensivamente, em "Macunaíma". Nesses exemplos se vê que a ideia de Brasil estava encarnada na visão de seus talvez principais agentes, que se dispensavam, por assim dizer, de atentar para a difusa diversidade do país.
Pode-se armar uma equação representativa: o Machado crítico está para o romantismo, para Alencar, como o Candido da "Formação" está para o modernismo, para Mário de Andrade; e os dois conjuntos compartilham uma visão centralista, centrípeta, excludente, que está no DNA da organização do Brasil desde Portugal.

Há pontos cegos também no que se refere à historiografia ou à visão da história da Colônia e do Império em que se baseia Candido?
Vejo com interesse as interpretações de Jorge Caldeira. Sua "História do Brasil com Empreendedores" (2009) aprofunda a crítica a uma tradicional explicação do passado nacional, aquela posta de pé por Caio Prado Jr. Caldeira mostra que Prado Jr. generalizou uma visão da Colônia e do Império em que traços como escravismo e latifúndio, centrais na produção de açúcar e café em regime de "plantation", foram tomados como verdadeiros para o todo do país.
Ocorre que, nos diz esse autor, no vasto "hinterland" que se estendia de São Paulo para norte, oeste e sul, que por certo contava com escravidão e latifúndio, imperava uma organização muito diversa, baseada no que Caldeira, liberal sem temor ao nome, chama de empreendedorismo.
Não é só a velha dualidade entre sertão e litoral, ou sociedade de mercado e "plantation": este livro e o anterior "A Nação Mercantilista" mostram várias articulações entre as duas formações históricas e afirmam que 86% do PIB brasileiro às vésperas da Independência era mercado interno, contra 14% externo, e que a larga maioria da população era de homens livres.
É uma senhora alteração de perspectiva. Onde entra Candido nessa conta? O caso é que seu livro mais claramente voltado a uma descrição histórica, a "Formação", depende, mesmo indiretamente, daquela visão de Prado Jr. Em que medida? É preciso avaliar em detalhe. Mas me parece instigante pensar que a "Formação" é concebida a partir de São Paulo, mas versa sobre o passado literário ligado ao universo de Minas Gerais no período do ouro e ao mundo da "plantation" fluminense.
Nos termos de Caldeira, o ponto de vista histórico da "Formação" é aquele formulado na cidade-síntese do mundo empreendedor e com base na ideologia que melhor exprime esse mundo, o modernismo de combate, o modernismo de "Macunaíma"; mas o livro de Candido se ocupa do mundo cuja síntese é o Rio, a cidade que, como descreve Caldeira, é o oposto do mundo empreendedor, dominado pela mentalidade de gente que "se julga identificada com a modernidade, desde que haja garantias que ela seja um privilégio", em suas palavras, o mundo que Machado reprocessa criticamente em sua ficção e que Roberto Schwarz descreveu com precisão.

Que perspectivas se tornam possíveis ao considerarmos essa historiografia mais recente?
O modernismo paulista, tanto na produção literária quanto na crítica e na historiografia, homogeneizou descritivamente a cultura letrada brasileira ao custo de apagar diferenças relevantes. Creio que seja possível diagnosticar processos interessantíssimos de formação do sistema literário e cultural no país, que agora são invisíveis em função do monopólio modernistocêntrico. Muitas perguntas serão formuláveis, muitas descrições novas serão possíveis. Qual o tamanho dos sistemas não hegemônicos, que na pressa modernista ficaram reduzidos ao rótulo de "regionais"? Qual sua função? Qual sua capacidade de gerar leitores? Como funcionam os casos de formações não hegemônicas que partilham materialidade histórica e formas culturais com outras línguas e culturas?

Como responde a essas perguntas?
Pensemos no caso do Sul, com tanta identificação social e estética com os países do Cone Sul, ou na grande comarca da Amazônia. Qual o lugar de Monteiro Lobato no processo real de criação de leitores? Que peso teria a resposta a essa questão na avaliação do cânone escolar de hoje?
Qual o sentido de sua oposição ao projeto modernista, que ele viu nascer e crescer, mas não chegou a ver hegemônico? Qual o nexo entre a poesia moderna e a poesia simbolista, que é forte mas se tornou invisível pela militância exclusivamente antiparnasiana de Mário de Andrade?
Mais genericamente, o que poderemos dizer da criação letrada oriunda do mundo do "sertão"? Ele é igual ao do mundo da "plantation"? Ele fala a mesma língua, ao longo do tempo? Quer dizer: me parece que temos muito para pensar e descrever, em favor de deixar aparecer mais nitidamente a produção literária feita em língua portuguesa no Brasil: mais estilos, mais vozes, mais textos, mais práticas de leitura terão direito à existência no plano da crítica e da historiografia.

Como reavaliar a obra de Candido no contexto em que as ideias de "nação" e "nacional" parecem perder força?
Há um novo momento no que se refere à noção de nacional. No campo literário, a entrada em cena da internet tem consequências fortes. Muda a relação da produção literária e intelectual com as antigas demandas do nacional. O que não significa que tenha desaparecido. Para além de seus méritos como história e crítica, a "Formação" manterá sua vigência enquanto o projeto modernista tiver força. E ele a mantém. Basta ver a homenagem a Oswald na Flip deste ano, em que, com algum excesso, foi tido até como precursor dos tuítes. A flamante escritora argentina Pola Oloixarac declarou, tomada por aquela inveja que São Paulo dá nos portenhos descolados de hoje, que Oswald de Andrade foi "muito mais original" que Jorge Luis Borges, comparação que diz mais sobre a percepção da força de São Paulo até na sofisticada Buenos Aires do que sobre os autores implicados.

O primeiro ponto cego é o modernismo: Candido só consegue armar sua equação crítica e seu ponto de vista por estar estabelecido no ângulo modernista de leitura do mundo

Os dois pontos cegos mais relevantes são os que dizem respeito a totalidades que Candido naturaliza: Brasil e Europa. Onde se lê Europa, quase sempre se deve ler França

Vejo com interesse as interpretações de Jorge Caldeira. Sua "História do Brasil com Empreendedores" aprofunda a crítica a uma tradicional explicação do passado

A pátria sob os refletores - SERGE KAGANSKI

CINEMA

A pátria sob os refletores

Os "beurs" ganham a TV e o cinema na França

RESUMO Entre o polêmico debate governamental sobre a pureza da identidade nacional e uma esquerda que não reconhece os conflitos inerentes à questão, uma geração de artistas de origem árabe faz do cinema e da TV o trampolim para a integração e a consolidação de uma França multicultural.

SERGE KAGANSKI
TRADUÇÃO PAULO WERNECK

Nos últimos meses, a França parecia sofrer de uma forte coceira. Esse prurido antigo, recorrente, ganhava desta vez um novo nome: a identidade nacional.
Estimulada pela criação do Ministério da Identidade Nacional e da Imigração, pela política de cotas de expulsão de imigrantes clandestinos, pela instauração oficial de um debate sobre a identidade nacional, pelas declarações incendiárias dos ministros do Interior, Brice Hortefeux (condenado por declarações racistas), depois Claude Guéant, inflamada pela política de Nicolas Sarkozy no delicado contexto pós-11 de Setembro, a identidade nacional se tornou uma picada de mosquito, depois um ataque de urticária que a França coçou até sair sangue.
Seria o tema da identidade nacional problemática e até ameaçada uma realidade ou uma distorção cinicamente exagerada pelo poder político a fim de fazer com que outras questões, como o desemprego ou o poder de compra em baixa, sejam esquecidas?
Faz tempo que a França é uma terra de imigrantes e uma nação cada vez mais mestiça. Nos anos 1920, conheceu uma forte imigração polonesa e judaica, depois italiana, nos anos 40 e 50, e por fim magrebina e africana, com a descolonização nos anos 50 e 60.

FUTEBOL Não por acaso, os jogadores de futebol franceses mais emblemáticos foram Raymond Copa (de origem polonesa), Michel Platini (de origem italiana) e Zinedine Zidane (de origem argelina), e a seleção francesa nos últimos dez anos é majoritariamente composta por jogadores negros, o que foi objeto de zombaria não só de Jean-Marie Le Pen, líder do partido nacionalista Front National, mas também do socialista Georges Frêche e do intelectual Alain Finkielkraut, que da extrema esquerda passou para um certo conservadorismo cultural.
Simplificando, a posição clássica da direita mais dura é ver a imigração como uma invasão, um corpo estrangeiro, incompatível como os valores franceses e que periga dissolver a França e o seu povo. No campo oposto, a posição de esquerda mais radical considera a imigração uma sorte e uma riqueza que não trazem problema nenhum. A realidade certamente está em algum meio-termo entre essas visões extremas.
A menos que se acredite que todos os franceses são de origem gaulesa, a França pura e original é uma fantasia: o país se construiu na fermentação de populações, e seu próprio nome vem de um povo germânico, os francos, que invadiram a Gália entre os séculos 3º e 5º.

CULTURA Fora do esporte, a área em que essa mestiçagem é mais visível, mais acabada, é a cultura, principalmente o cinema. Nos últimos anos, surgiram grandes cineastas (Abdellatif Kechiche), diretores de sucesso (Rachid Bouchareb, Djamel Bensallah...), atores de primeira (Roschdy Zem, Sami Bouajila, Leila Bekhti, Hafsia Herzi, Tahar Rahim...), bem como uma nova onda de humoristas populares, que navegam entre a TV e o cinema (Jamel Debbouze, Eric e Ramzy, Omar e Fred...).
São os "beurs" e as "beurettes" -na gíria, os homens e as mulheres de origem árabe- que arabizaram a cultura, a língua e o humor franceses, filhos da França e da imigração que contradizem em atos as teorias mais pessimistas e as ações governamentais mais cínicas.
Mas, se o mundo da cultura hoje está mais avançado que uma fatia do mundo político (e da sociedade?), as coisas nem sempre foram fáceis, como diz o ator Sami Bouajila: "O crime das aparências tornou as coisas mais lentas". A expressão "crime das aparências" é uma forma irônica que os franceses usam para se referir ao preconceito automático enfrentado pelos descendentes de árabes.
"Foi aí que a minha formação, meu trabalho de ator, minha educação, me foram úteis, porque eu aspirava a alguma coisa. Eu pensava: este é o meu caminho, talvez mais lento do que o de outros, mas é preciso reivindicá-lo. O lado bom do crime das aparências para atores como eu e Roschdy Zem é que a gente ganha tempo de construir um alicerce, uma base para um trabalho verdadeiro e profundo." Já o humorista Ramzy Bedia aponta a especificidade da imigração magrebina: "A mesma coisa aconteceu com os poloneses ou com os italianos. Com a gente é mais difícil, porque temos outra religião, e a Guerra da Argélia também aconteceu aqui, de certo modo". A observação é pertinente. A Guerra da Argélia (1954-62) deixou traços profundos nos dois países, feridas e não ditos prestes a ressurgir ao menor aumento de tensão.
A relação entre França e Argélia é urdida por uma mistura muito complexa e paradoxal de proximidade, passado comum e preconceitos entre dominados e dominadores. O atentado contra o World Trade Center e a desconfiança geral com o islã acrescentaram uma nova camada de complexidade.
No entanto, se o racismo e a islamofobia existem na França, não podemos falar numa grande onda antimuçulmana. Há 50 anos, os franceses se acostumaram a viver com seu componente árabe; as estatísticas indicam que os casamentos mistos são mais numerosos; e o islã se inscreve progressivamente na paisagem francesa.

ISLÃ MODERADO Sami Bouajila tem uma explicação: "O islã dos magrebinos da França sempre foi moderado. Nossos pais são de uma tolerância que vocês não calculam, e têm uma capacidade de adaptação que é desprezada. São pessoas generosas, ambiciosas, curiosas, aventureiras, modernas. O modo como o sistema estigmatizou tudo isso, atrás de um véu, das periferias, é simplista. Quando nossos pais olham as notícias na TV e veem que os islamistas disseram isso ou fizeram aquilo, não se sentem incluídos. É um erro abordar a questão da diversidade pelo viés da religião".
Na verdade, a integração é um processo de fôlego e talvez seja preciso paciência, recuar no tempo lento da história, para que a questão "beure" não seja um problema, nem mesmo uma questão.
O cineasta Malik Chibane resume sua experiência: "Um diretor de TV me telefonou, dizendo que gostava dos meus filmes, mas que não podia transmiti-los porque tinham árabes demais. Isso foi há 15 anos. Nesse meio tempo, houve uma evolução inegável. Com perseverança e trabalho, os descendentes da imigração podem chegar lá. Precisamos disso, da cultura como força motriz". Sami Bouajila compartilha esse sentimento: o caminho é longo, ainda não chegamos ao nosso objetivo, mas, graças à cultura, entre outras coisas, nos aproximamos cada vez mais dele.
"Nossos êxitos mostram que as coisas vão na direção certa. Mas eu diria que, em primeiro lugar, não poderia ser de outro jeito e, em segundo lugar, ainda estamos bem longe do ajuste de contas", diz Bouajila. "O choque de culturas existe. Para ir contra ele, é preciso educar. Para isso, o sistema precisa proporcionar os meios, o que ainda não aconteceu. A partir do momento em que aceitarmos nossa história e quem somos, isto é, um país mestiço, já que a França foi um império colonial, nossa mestiçagem será vivida como um trunfo. Seremos então uma sociedade orgulhosa e forte, como na época da Copa de 98."

OTIMISMO O mais otimista, ou o mais lúcido, é o ator Ramzy Bedia, que acredita que a mestiçagem é um processo irreversível, o que nos obriga a dar um jeito de que tudo esteja bem.
"Só pode terminar bem. Não sou otimista dizendo isso, sou realista. Em 20 anos, tudo vai dar certo. Não há outra escolha, é a evolução natural das coisas. No entanto, vemos uma retomada do islã, o Front National crescendo, ambos os lados se crispam, mas esses fatos só podem se anular. Nunca vamos voltar para casa, pois a nossa casa é aqui. E temos filhos com vocês. O que é 100% certo é que esta história vai acabar bem. Não vamos fazer barricadas e dividir a França em duas, isso é impossível."
O governo Sarkozy bem que tentou dividir os franceses, mas não conseguiu. O debate sobre a identidade nacional fracassou e se voltou contra seus instigadores. Com a atual crise econômica e financeira, os franceses têm outras preocupações na cabeça e entendem majoritariamente que o especulador de Wall Street é mais perigoso que o migrante expulso de casa pela miséria.
No cinema, os artistas árabes são cada vez mais numerosos e populares e, de Abdel Kechiche a Tahar Rahim (o ator principal de "O Profeta"), colecionam Césares, a maior láurea do cinema francês. Essa onda "beur" começa a ser reconhecida no exterior: Rachid Bouchareb acaba de começar um ciclo de três filmes americanos.
Seu produtor em Hollywood, Charles Cohen, declarou: "Aprecio muito a sensibilidade e o profissionalismo de Rachid Bouchareb, cujo talento não vai demorar a ser verdadeiramente reconhecido nos EUA." De seu lado, o diretor de "Indigènes", que foi injustamente atacado pela extrema direita francesa durante a apresentação em Cannes de seu último filme, "Fora da Lei", resumiu ao "Le Monde" a situação: "Venho da África do Norte, moro em Paris, faço filmes norte-africanos, argelinos e franceses, e agora filmes na América. Mas as histórias são universais. Continuo interessado nas relações entre o mundo árabe e o Ocidente e faço essas perguntas: quem somos? Para onde vamos? Por que é preciso ter esperança nessa relação?"
Ao problematizar ou desdramatizar as relações entre a França e os descendentes de suas ex-colônias, ou simplesmente ao contar esta história complicada, o cinema franco-árabe encarna a França de hoje na ficção e em ações, diante das câmeras e atrás delas, esboçando a promessa de uma França de amanhã que não vai sofrer de ataques de coceira.

A menos que se creia que todos os franceses têm origem gaulesa, a França pura é fantasia: o país se construiu na fermentação de povos, seu nome vem de um povo germânico

Fora do esporte, a área em que a mestiçagem é mais visível é a cultura, especialmente o cinema. Nos últimos anos, surgiram grandes cineastas e atores de primeira

"Nunca vamos voltar para casa, pois a nossa casa é aqui. E temos filhos com vocês. Esta história vai acabar bem. Não vamos fazer barricadas e dividir a França em duas"

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Barthes amordaçado - José Castello

A morte anula todos os medos, porque os ultrapassa. O luto nunca é o que se pensa que seja

Só um tema amordaça um grande escritor como o francês Roland Barthes (1915-1980): a morte. Em particular, a morte da mãe, que é, também, a morte da origem. Em “Diário de luto” (Martins Fontes, tradução de Leyla Perrone- Moisés), conjunto de 330 notas que o filósofo começou a escrever em 26 de outubro de 1977, dia seguinte ao da morte de sua mãe, e encerrou em 15 de setembro de 1979, as palavras estão sempre a lhe escapar. Elas o desprezam. Elas lhe fogem.

Barthes balbucia. Escreve seu diário apesar da sensação crescente de que a escrita sôfrega não dá conta de seu tema. Trata-se de luta destinada ao fracasso. Mas é justamente da escrita do fracasso que se trata. É dessa derrota anterior que ele, o escritor, precisa partir. Que nome dar à morte? Palavra vazia, que fala de uma ausência, não permite sínteses, tampouco suporta pensamentos. Ao contrário, ela os massacra. Ela os amordaça.

A primeira anotação traz só duas frases e uma dúvida: “Primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?” As núpcias falam de um encontro, mas a morte é um desencontro. Noite, portanto, aniquilada, a partir da qual Barthes se impõe — como um menino agarrado à saia inexistente — a tarefa de escrever. Não para pegar, ou para “chegar a”; mas para consolar e, talvez mais ainda, aceitar a inexistência de um consolo. A isso, aliás, chamamos luto. Não algo que se pega, mas que se atravessa.

Afirma Barthes: “Todos calculam — eu o sinto — o grau de intensidade do luto. Mas é impossível (sinais irrisórios, contraditórios) medir quando alguém está atingido”. Certo: a morte aponta para o impossível, coloca- o em cena. Mas uma pergunta ainda pode ser feita: o que é possível fazer do impossível? Que papel atuar? Em qual script confiar? Que máscaras vestir?

A mãe morta: ainda ousamos falar dela. Mas será dela mesma que falamos? Reflete Barthes: “Na frase ‘Ela não sofre mais’, a que, a quem remete o ela?” A escrita esbarra em seu limite quando, na morte, tem como objeto o que já não existe. Não há objeto algum. Só palavras, e mais palavras, que Barthes espreme em fichas metódicas. Isso é um livro? Responde Barthes: “Tomando estas notas, confiome à banalidade que há em mim”.

Sim, porque a morte conduz ao banal. Mortos, nos tornamos todos iguais: não passamos de restos. Dizem, solenemente: “restos mortais”. O que fomos — as diferenças, as “personalidades”, os estilos, os vícios, as manias — nada mais está ali. Não é da mãe que se trata, mas de um resto da mãe, atrás do qual Roland Barthes, outra vez como um menino em desespero, insiste em procurá-la.

A morte coloca a literatura sob suspeita. Aponta sua fragilidade, sua incapacidade. Diante da morte, a literatura é impotente. “Não quero falar disso por medo de fazer literatura”, ele admite. Mas acrescenta: “embora, de fato, a literatura se origine dessas verdades”. De fato, a literatura surge de uma falta, caso contrário ninguém teria paciência de escrever. Ficções, poemas, para que servem? Diz Barthes: “O espantoso destas notas é o sujeito devastado submetido à presença de espírito”. Não o espírito religioso que sobrevive à carne, mas o espírito humano — sensibilidade, inteligência, altivez — que só existe nos vivos.

Da mãe, restam as últimas palavras. “Meu R, meu R”, ela murmura. “Estou aqui”. E ainda, a um passo de abandonar a vida, mas sem largar o papel de mãe: “Você está mal, está mal sentado”. As palavras como últimos sinais (fronteira) de uma presença. Sem as palavras, a dolorosa verdade: nada há. Ao lembrar do corpo que sustentou estas palavras de despedida, ele anota: “Cada vez menos coisas a escrever, a dizer, exceto isto (mas não posso dizê-lo a ninguém)”. Não pode e, no entanto, diz. Admite Barthes a falência de uma língua separada de seu corpo. O silêncio, a repugnância.

Há, porém, uma vantagem no luto: a perda terrível já aconteceu. Assinala Barthes — “luto: região atroz onde não tenho mais medo”. A morte anula todos os medos, porque os ultrapassa. O luto nunca é o que se pensa que seja. Diz: “Assusta-me absolutamente o caráter descontínuo do luto”. Também o teatro da morte (o preto, o choro, o desespero) fracassa. Tudo, na morte, é fracasso. O pior: na vida, quase tudo também. Que se observem as palavras com seu gaguejar. Barthes luta (luto) para escapar de qualquer tipo de teatro — para ter “a morte em si”. Repreende- se: “Não dizer Luto. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste”.

Luto: “mal-estar, situação sem chantagem possível”. Trata-se do irremediável. Não existe anestésico. Nada. Os bons sentimentos tornamse inúteis. “Todos são ‘muito gentis’ — e, no entanto, sinto-me só”. As próprias palavras se tornam traiçoeiras. Por exemplo, a palavra desespero, quase sempre associada à morte. Escreve: “Desespero: a palavra é demasiadamente teatral, faz parte da linguagem. Uma pedra”. Isso porque as palavras, ditas em referência ao inexistente, nada sustentam, limitam-se a pesar.

A morte embaralha o Tempo. Mais ainda: ela o destrói. Onde está o presente? “Sofro com o medo do que aconteceu”, Barthes anota. Dá-se conta, então, que repete um pensamento de Donald Winnicott: “medo de um desmoronamento que já aconteceu”. Mas se o que está para vir “já aconteceu”, onde está o futuro? Eis o que a morte faz: impede a visão do futuro. Veda-o. Lembra Barthes que Marcel Proust falava de “chagrin” (“desgosto”) e não de “deuil” (“luto”). A morte ensina: é preciso ter cuidado com as palavras.

Tenta pensar, enfim, no desgosto que atravessa e nas coisas do mundo que se afastam. Encontra algo: “O que me parece mais afastado de meu desgosto, de mais antipático a ele: a leitura do jornal ‘Le Monde’ e suas maneiras ácidas e informadas”. A morte não é ácida — ela não é. Não carrega qualquer informação, ao contrário, é a ausência absoluta de informação. O que se sabe de um morto? Nada. Mesmo os necrológicos dos jornais, o que fazem, senão embalsamar os que partiram? Sugere Barthes: talvez a morte não passe de uma “espécie de epopeia sem atitude heroica”. Eis o buraco (cova): devemos prestar atenção no “sem”.

Email: josegcastello@gmail.com. Leia mais textos do
colunista em www.oglobo.com.br/blogs/literatura

KENNETH MAXWELL - Shakespeare?

Os moradores de Stratford-upon-Avon estão em pé de guerra. Cobriram a estátua de William Shakespeare (1564-1616), o mais famoso filho da cidade, com lençóis.

Objetam vigorosamente ao novo filme produzido pela Sony em Hollywood, segundo o qual Shakespeare, na verdade, era uma fraude e não escreveu as famosas peças, sonetos e versos cuja autoria lhe é atribuída. O verdadeiro autor, alega o filme, foi Edward de Vere, conde de Oxford, um homem viajado e poliglota.
Nessa interpretação, Shakespeare é um beberrão analfabeto e sem educação formal, incapaz do conhecimento detalhado necessário à composição dessas obras.

Edward de Vere, por outro lado, era um aristocrata, amante da rainha Elizabeth 1ª. Não pôde assumir a autoria dos textos porque escrever para o teatro, no século 16, não era profissão para um aristocrata, o que explica sua necessidade de permanecer anônimo -como no título do filme: "Anonymous".

A teoria é velha. Circula pelo menos desde a era vitoriana. Os vitorianos, como os norte-americanos modernos, adoravam teorias da conspiração e não conseguiam acreditar que um homem de origens humildes como Shakespeare pudesse ter escrito as grandes peças que portam seu nome.

Vanessa Redgrave interpreta a rainha Elizabeth 1ª (na velhice), enquanto sua filha, Joely Richardson, interpreta a rainha jovem. Joely Richardson nasceu em 1965, quando Vanessa Redgrave era casada com Tony Richardson. O casamento, que durou de 1962 a 1967, terminou em divórcio depois que Richardson traiu a mulher com a atriz francesa Jeanne Moreau.

Richardson foi um famoso diretor da "new wave" do cinema britânico. "Tom Jones", filme que ele dirigiu em 1963, baseia-se no romance de Henry Fielding (que está sepultado no cemitério inglês de Lisboa), e o roteiro foi escrito pelo dramaturgo John Osborne.

É a exuberante história do filho adotivo de um membro da pequena nobreza rural inglesa, saltando de cama em cama através da Inglaterra, estrelado por Albert Finney, Susannah York e Edith Evans. O filme foi parcialmente rodado em Crowcombe Court, uma casa de campo do começo do século 18 em West Somerset, perto de onde passei a infância.

Vanessa é filha de sir Michael Redgrave. Os Redgrave, apesar de seu radicalismo político, são a aristocracia do teatro britânico. Contudo a Sony parece ter hesitado, no momento do lançamento, e por isso o filme será exibido em apenas 250 salas.

A produtora espera que a reação dos espectadores e, sem dúvida, também a dos moradores de Stratford-upon-Avon sirva como publicidade para o filme.

RICARDO MELO - Seis por meia dúzia?

SÃO PAULO - A crise no Ministério do Esporte deve traçar os limites nos quais a presidente Dilma pretende se mover em seu governo. A vingar o nome de outro membro do PC do B para o cargo, teremos mais um exemplo da vigência do lema: mudar para deixar tudo como está.

Desde a gestão de Agnelo Queiroz, antes no PC do B e agora no PT, a pasta serviu de posto avançado para o aparelhamento de uma parte da Esplanada. É puro cinismo afirmar que tudo não passa de um raio em céu azul. As denúncias de instrumentalização de convênios são antigas e de conhecimento geral.

A liberdade administrativa conferida a esses supostos comunistas sempre foi a contrapartida ao apoio político-eleitoral assegurado pela legenda. Em público, chamam a isso de acordos de governabilidade, negociação política e coisas do gênero.

Na realpolitik, trata-se do bom, velho e tosco toma lá, dá cá, celebrizado pela saia justa entre a presidente e uma apresentadora de TV num programa dominical. Semelhante, de resto, ao que ocorre em todo governo assentado numa coalizão ampla e disforme, como a das sucessivas administrações do PT no plano federal.

Mas certas diferenças pesam na balança. Por circunstâncias próprias a uma organização como o PC do B, a identificação do ministério com a estrutura partidária chegou a um ponto de quase simbiose.

Há sempre o risco de queimar a língua, concordo. Dificilmente, porém, a roubalheira atual propiciará a descoberta de espertalhões que, individualmente, tenham enriquecido na mesma proporção e visibilidade verificadas em escândalos como o da privatização da telefonia ou do mensalão. No caso dos pretensos comunistas, cabe sobretudo ao aparelho a fatia mais gorda do butim.

Se quiser pôr ordem na casa, Dilma terá que abandonar o princípio de reserva de mercado e profissionalizar a gestão do Esporte. Certo, seria uma ruptura e tanto -por isso mesmo, com pouca chance de acontecer.

Serial crise - DORA KRAMER

A quantidade recorde de seis ministros afastados em menos de dez meses de governo quer dizer o quê? Depende. O governo certamente gostaria que a interpretação lhe fosse a mais favorável possível. Adoraria que as pessoas concluíssem que a presidente Dilma Rousseff não aceita "malfeitos".

A cena, porém, pode ser vista por outros ângulos. Um deles indica que a presidente não sabe escolher auxiliares.

Outro mostra que ela falha visivelmente no quesito imposição de critérios para nomeações, com a evidência de que o governo não faz nenhuma triagem nos nomes que lhe são submetidos como política e partidariamente mais convenientes.

Há ainda a infeliz coincidência de todos os demitidos até agora terem sido indicações sustentadas pelo ex-presidente Lula, o que não alivia a responsabilidade de quem deve, de fato e de direito, responder pelo bom andamento dos trabalhos governamentais.

A hipótese mais plausível, no entanto, é a mais simples: o governo nasceu velho, carcomido de vícios herdados e que foram aprofundados ao longo dos oito anos de gestão Lula e mantidos inalterados.

À força da inércia juntou-se a convicção de que a vitória eleitoral acrescida da aprovação popular ao desempenho dos governos Lula e Dilma indicavam que nada precisava ser mudado. Ou, por outra: era necessário que nada fosse mudado.

A realidade está mostrando o quanto de autoengano há nessa conclusão.

Apoio popular expresso em pesquisas de opinião não quer dizer que tudo vá bem.

Significa que as pessoas se sentem satisfeitas quando olham a situação como um todo, mas não pode ser interpretado como um aval para que a administração seja tocada de qualquer maneira, sem a observância de parâmetros mínimos de legalidade.

Até porque o público não dispõe de todas as informações. Já o governo, melhor do que ninguém, sabe como as coisas funcionam (ou não funcionam).

Governos sabem que se rouba e quando não tomam providências para desmontar as "igrejinhas" cujos dízimos são as verbas públicas, francamente, não há outra conclusão possível: é porque deixam roubar.

Muito já se falou sobre isso, mas é bom repetir: demitir Orlando, João ou José não resolve o problema, que não está só nas pessoas físicas. O diabo mora mesmo é nas jurídicas que, pela lógica da troca de seis por meia dúzia, seguem sem ser importunadas.

Motivação. É possível que a presidente Dilma tenha saudade do tempo (não faz muito) em que demitia gente por crime de opinião.

Como ocorreu no início do governo com Pedro Abramovay, demitido da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas por defender penas alternativas para criminosos de pequeno porte.

Hoje, com tanta gente caindo por denúncias de corrupção, algo parecido soaria risível.

Documento. Tancredo, a Travessia - dirigido por Silvio Tendle reproduzido por Roberto D"Ávila - remete a uma época em que política era coisa de profissional, no bom sentido.

Havia líderes, engajamento, articulação, propósitos, causas e, sobretudo, partidos interessados em algo além de dinheiro público: seja na forma de emendas ao Orçamento, de verbas para financiar fundos e programas de televisão ou na modalidade "heavy metal" da tomada de assalto a ministérios.

Não fosse por outros, o documentário, que entra no circuito amanhã, já teria o mérito de mostrar à juventude que outra forma de fazer política é possível.

Gato comeu. A nota Inglês ver saiu ontem sema parte final. Desprovida, portanto, de conclusão e de sentido.

Eis a íntegra: "Veja o leitor como o Congresso dança conforme a música que toca o Palácio do Planalto: há pouco mais de dois meses senadores lançaram a Frente Suprapartidária contra a Corrupção e a Impunidade, em apoio à dita "faxina" ética da presidente.

O governo tomou outro rumo e a Frente emudeceu. É a desmoralização das boas intenções".

PAULO SANT’ANA - A farra da cerveja

O Rio de Janeiro parece ser mesmo um outro país dentro do Brasil, o que é comprovado pela notícia de apreensão dentro de um estabelecimento prisional para policiais militares de 2,6 mil latas cheias de cerveja.

Não pode entrar num presídio nem cerveja, nem celular. Só que a entrada em um presídio de um aparelho celular ou de uma dúzia de cervejas seria um fato sob certo aspecto aceitável, uma falha da vigilância. Mas 2,6 mil latas de cerveja é um carregamento em massa. O mesmo seria que uma empresa distribuidora de telefones celulares mandasse entregar num presídio 300 celulares, um para cada preso.

No caso, como há realmente naquele presídio 300 detentos, 2,6 mil latas de cerveja dariam a média de quase 10 cervejas para cada preso, seria uma festa invejável.

Mas eu pergunto: se teoricamente deva se tornar impossível passar pelo portão de um presídio uma lata de cerveja, como é que conseguem fazer passar pelo portão central 2,6 mil latas de cerveja?

Ou seja, não foi um só carcereiro que se deixou subornar ou prevaricou. Foram muitos. Foi, afinal, tudo indica, toda a direção desse presídio que se deixou subornar ou prevaricou.

A rigor, para passarem pelo portão de um presídio 2,6 mil latas de cerveja, até o governador do Estado deve ter prevaricado.

Esta notícia é impressionante. Ela só seria mais impactante se fosse dito que houve concorrência pública para licitar a despesa de 2,6 mil latas de cerveja.

Vejo na foto da apreensão das latas de cerveja no presídio que a marca é Skol. Mas a Brahma não teria o direito de pleitear para si, como a Antarctica, o fornecimento dessa carga etílica?

E a Skol, que foi a escolhida ou a privilegiada, terá o direito de fazer comerciais para a televisão em que aparecem até os presos comemorando qualquer ocasião com latas de cervejas nas mãos e ingeridas com sofreguidão?

O locutor diria a plenos pulmões: “Troque sua liberdade somente pela Skol, faça como os presos do Batalhão Especial Prisional da Polícia Militar, em Benfica, Fique preso somente à Skol”.

Mandaram abrir inquérito para apurar quem autorizou a compra de 2,6 mil cervejas para os presos.

Mas para que abrir inquérito? Se entrou tal quantidade de cerveja no presídio, a autoria desse descaminho já é conhecida. Começa pelo comandante do batalhão ou diretor do presídio e vem vindo para baixo, até o último escalão. Embora o pessoal debaixo apenas obedeça ordens e talvez também tome da cerveja.

Esse fato é um monumento à falta de vergonha nacional.

O que se tem de apurar nesse caso da cerveja é um só detalhe: quem pagou o carregamento da bebida? Foram os presos que se cotizaram, o que de per si já terá de causar espanto, como podem ter dinheiro para tal? Ou foi a direção da cadeia que usou verba pública para pagar a cerveja? Só isso que se tem de saber, mas como a vergonheira anda espalhada, é quase certo que foi verba pública que custeou a bandalheira.

Tem tudo que é crime nesse escândalo, corrupção ativa e passiva, peculato etc., fora os deslizes administrativos, como substituir a água pela cerveja, embebedar detentos, promover festa etílica no interior da casa de detenção, promiscuidade na festa contratada entre carcereiros e detentos, uma bagunça institucionalizada.

Esta notícia é digna de ampla repercussão internacional.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Charge - Amorim

ANTONIO PRATA - Alforria

Jamais havia dedicado um único pensamento a este obscuro rincão do vestuário: o forro de bolso



Sei que no escândalo do lixo hospitalar americano eu deveria me surpreender é com os lençóis sujos de sangue, que por caminhos escusos vieram dar aqui nestes costados. Acontece que nós, os cronistas, somos uns sujeitos meio zarolhos, como essas crianças que tiram o carrinho da caixa e passam a brincar, entusiasmadas, com a caixa. Pois me chamou menos atenção a origem criminosa dos lençóis do que o seu particularíssimo destino: virar forro de bolso, no "Império do Forro de Bolso".

Confesso que, em meus 34 anos sobre a Terra, jamais havia dedicado um único pensamento a este obscuro rincão do vestuário. Até duas semanas atrás, quando toda a história foi divulgada, achava que a parte mais ínfima de nossas roupas fossem as meias: condenadas a suportar pisões e joanetes, frieiras e chulés, escondidas dentro de sapatos. Mas eis que surge o forro de bolso, espremido entre as coxas e o anonimato, escravo das galés, e perto dele as meias parecem-me pequenas celebridades; exibem listras e losangos sob a barra das calças, a cada cruzada de pernas, saracoteiam entre tatames e sushis, nos restaurantes japoneses, gozam o êxtase sagrado das mesquitas, ganham o Oscar de melhor coadjuvante ao participarem do sublime espetáculo de uma mulher nua, a não ser pelos pés envoltos em algodão, lã, cashmere... Já o forro de bolso: ouviríamos falar dele, não fosse a tragédia sanitária? Ah, lumpenvestuariat!

Se a Pixar fizesse uma animação em que as roupas ganhassem vida, os forros de bolso poderiam ser dublados por Steve Buscemi, Woody Allen ou Jason Alexander (o George Constanza, de "Seinfeld"). Tristes e sarcásticos, com vozes hesitantes e anasaladas (longe da luz do sol, pouco ventilados, sem dúvida sofrem de rinite, bronquite e outros problemas alérgicos), reclamariam de suas sinas: nunca um elogio, nunca uma palavra amiga, lembrados apenas se, puídos pelo mau uso de seus donos, deixam cair uma moeda, perdem a chave de casa.

A existência desses pobres-diabos só não é uma penúria completa pois dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, há um refúgio feliz: o "Império dos Forros de Bolso". Quanta beleza e melancolia, nessas três palavras! Chego a ouvir ecos do Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles será o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados". Bem-aventurados os que se humilham sob a soberba das calças, porque a eles será destinado um Império.
Imagino que mamãe e papai forro digam coisas parecidas para o forrinho, quando, diante de malhas coloridas e cachecóis esvoaçantes, de botas de couro e blusas de seda, as primeiras luzes da consciência iluminam no rebento as trevas de sua condição. Esperançosos, os progenitores falam do fim do longo cativeiro, do dia em que os últimos serão os primeiros, o avesso será o correto e o correto será o avesso, as calças pagarão pela vaidade e todos os forros de bolso sentirão em suas faces os raios do sol, e receberão de graça a água da vida. Eis o que lhes dá forças para seguir em frente -ou melhor, embaixo, até o momento da prometida alforria.

antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata

Blog 'Crônicas e Outras Milongas'

MARK WEISBROT - Obama prepara guerra com Irã

É possível a hipótese de que o presidente dos EUA busque confronto militar para ajudar a sua reeleição


A ADMINISTRAÇÃO Obama anunciou duas semanas atrás que um desastrado vendedor de carros usados iraniano-americano conspirou com um agente do governo americano que se fazia passar por representante de cartéis de drogas mexicanos para assassinar o embaixador saudita em Washington.

O anúncio suscitou reações altamente céticas de especialistas de todo o espectro político aqui.
Mas, mesmo que parte dessa história se revele verdadeira, o tratamento dado a acusações desse tipo é inerentemente político. Por exemplo, a comissão sobre o 11 de Setembro do governo investigou as ligações entre os atacantes e a família reinante saudita, mas se negou a trazer a público os resultados.
A razão disso é óbvia: existe sujeira ali, e Washington não quer criar atritos com um aliado-chave. E não esqueça que se trata de cumplicidade com um ataque em solo americano que matou 3.000 pessoas.
Contrastando com isso, a administração Obama deu grande destaque à especulação um tanto quanto dúbia de que "os mais altos escalões do governo iraniano" teriam tido envolvimento com a alegada conspiração. O presidente Obama então anunciou que "todas as opções estão sobre a mesa", o que é um conhecido código indicativo de possível ação militar. Trata-se de um discurso extremista e perigoso.

O professor da Universidade de Michigan Juan Cole, respeitado estudioso do Oriente Médio, aventou a hipótese de Obama estar procurando um confronto militar para ajudá-lo a se reeleger, diante de uma economia estagnada e do alto índice de desemprego. É possível, com certeza. Lembre que George W. Bush usou o período que antecedeu e preparou a Guerra do Iraque para conquistar as duas Casas do Congresso na eleição de 2002.

Ele nem precisou partir para a guerra. O período de preparação dos espíritos para a guerra funcionou perfeitamente para ele alcançar sua meta principal: todos os problemas mais importantes para os eleitores -a recuperação sem empregos, a seguridade social, os escândalos corporativos - sumiram do noticiário durante a temporada eleitoral. Os assessores do presidente Obama com certeza entendem essas coisas.
É claro que essa especulação mais recente, dando a entender que pode levar a uma ação militar, pode ser apenas parte da preparação de longo prazo para a guerra contra o Irã. Uma vez que isso é feito, é difícil impedir a guerra de acontecer; e, uma vez lançadas essas guerras, elas são ainda mais difíceis de concluir, como demonstram dez anos de guerra inútil no Afeganistão.

É por isso que iniciativas internacionais para fazer recuar a marcha em direção à guerra, como a proposta de troca de combustível nuclear feita por Brasil e Turquia em 2010, são tão importantes.
Recentemente o governo iraniano se propôs a parar de enriquecer urânio se os EUA fornecerem urânio para seu reator de pesquisas médicas, de que precisa para tratar pacientes com câncer. Esse urânio não poderia ser usado para armas.

O Brasil é um dos poucos países que têm a estatura internacional e o respeito necessários para ajudar a desativar esse confronto. Só podemos esperar que ele faça mais tentativas de poupar o mundo de mais uma guerra horrível.

Charge - Duke

Na perspectiva do PCdoB - ROSÂGELA BITTAR

As marchas e recuos do calvário de Orlando Silva (PCdoB) no governo do PT provaram como um partido pequeno mas orgânico, com poucos recursos políticos mas densidade ideológica, pode se impor. São poucos, se não apenas dois, os que têm tais características no Brasil de hoje, e os comunistas estão reunidos em torno de uma dessas legendas.

Orlando Silva já estava ferido de morte desde o primeiro instante da denúncia atirada contra ele. Fragilizou-se irremediavelmente com a autorização do Supremo Tribunal Federal para abertura de inquérito destinado a investigá-lo, num momento, como ontem, em que o Palácio do Planalto dava-lhe oxigênio e ainda tentava levar o público a se acostumar com a ideia de deixá-lo no cargo.

Houve justificativas para todo o agravamento de sua situação, principalmente para o despacho da ministra Cármem Lúcia, que desferiu o tiro de misericórdia. Até ela própria achou necessário esclarecer, depois da repercussão de sua decisão, que "abrir" (o inquérito) não significa "prosseguir" com ele, e que tudo dependeria do que o procurador-geral da República irá encontrar nas investigações. Não havia, porém, mais volta, a crise recrudesceu de repente.

No Palácio do Planalto, mencionava-se a diferença entre o caso Orlando e o caso Antonio Palocci, também sustentado por seu partido, o PT, que ficou quase um mês tentando equilibrar-se na cadeira de ministro da Casa Civil. Houve um momento de grande distensão da crise Palocci quando o procurador-geral deu despacho recusando a denúncia, e, sendo assim, sequer pediu autorização ao Supremo para abrir inquérito. Mesmo com isso não foi possível segurá-lo no cargo. No caso Orlando deu-se o inverso, o procurador aceitou a denúncia, pediu ao STF para abrir o inquérito e o Supremo, como foi pedido, o autorizou, levando mais tensão à crise. Se no caso anterior o ministro teve que sair apesar de libertado pelo procurador-geral, no caso Orlando, não dispensado, razão maior haveria para se ver defenestrado.

Nada disso, porém, absolutamente nenhuma argumentação, sensibilizou o PCdoB que se manteve firme na estratégia política traçada de ficar unido em torno de seu representante no governo. E houve boa dose de racionalidade nessa decisão do partido.

O PCdoB manteve-se coeso no aguardo de iniciativas de que quem levou Mateus ao mundo. Ou seja, deixou o caso, seu desfecho e as soluções futuras integralmente nas mãos da presidente Dilma Rousseff, e nada fez para facilitar a arrumação política.

Os princípios dos comunistas têm nitidez. Em sucessivas reuniões nos últimos dias, o PCdoB avaliou minuciosamente a questão. O primeiro ponto do arrazoado é que Orlando Silva, alvo do PM João Dias, dono de ONG brasiliense que denunciou esquema de desvio de verbas no Ministério do Esporte, não viu nada ser provado contra ele. Toda a artilharia, então, foi redirecionada para o partido.

Sem as provas, a presidente Dilma Rousseff manteve seu apoio a Orlando Silva, como fez durante algum tempo com Palocci, Wagner Rossi, Alfredo Nascimento e Pedro Novais, os ministros do seu governo que depois caíram por denúncias de corrupção.

O PCdoB recusou-se, durante todo o período no pelourinho, a abandonar Orlando, a especular sobre substituição por outros nomes do próprio partido, ou a avançar em soluções que não considerou se sua alçada. Ontem, no momento de mais intensa pressão pela demissão do ministro do Esporte, agora politicamente inviabilizado pela decisão do Supremo, integrantes da cúpula partidária ainda desfaziam uma a uma as especulações sobre substituições. Manuela D"Ávila (RS) será candidata a prefeita em Porto Alegre; Aldo Arantes (GO) é um quadro importante mas não foi sondado; Aldo Rebelo (SP) não foi sondado; Flávio Dino (MA) não foi sondado. Luciana Santos e Jandira Feghalli, também citadas, não foram sondadas. E assim todo o PCdoB tinha ouvidos moucos.

"No PCdoB não tratamos de nomes, estamos apoiando o Orlando", foi o slogan partidário nos últimos dias de especulação. A estratégia estava fundamentada no fato de que, se o ministro saísse sem provas, ficaria carimbado como corrupto. E não houve voz dissonante ou divisão interna, como nas demais agremiações da base de apoio a Dilma..

As razões em torno de novas escolhas de substitutos davam menos consistência ainda às especulações e fortaleciam a estratégia do PCdoB. Por exemplo, dizia-se que Dilma escolheria Dino para resolver um problema do seu desafeto José Sarney nas eleições municipais de São Luis (MA), afastando-o de uma vitória certa no ano que vem; ou que escolheria Aldo Rebelo para afastá-lo da disputa da presidência da Câmara, não levando risco ao acordo de revezamento PT-PMDB. Se os partidos e esses políticos estivessem livres de perder seus lotes no governo como estão de a presidente Dilma levar em conta essas questões e estar pensando, no momento, em presidência da Câmara e prefeitura no Maranhão...

O PCdoB avaliou, em seus debates, que para a presidente a preocupação certa, e era a que ela estava manifestando, tinha relação com a Copa do Mundo e a Olimpíada, dois problemas de tamanho amazônico dos quais o governo tem que dar conta, e não está dando.

E, por último, talvez o mais importante a incentivar o partido a manter-se na rota, o PCdoB avaliou que a responsabilidade das irregularidades denunciadas estava muito definida, e longe do partido e de Orlando Silva. Este era apenas o Secretário Executivo, vindo de São Paulo para um Ministério dirigido, à época, por Agnelo Queiroz, atual governador de Brasília, que depois migrou do PCdoB para o PT. Foi ele quem levou o PM João Dias para o partido e que mantinha relações com as causas brasilienses do atual arrastão de denúncias.

Agnelo, no momento de fogo mais alto, estava em vilegiatura internacional atrás de exibições em estádio que constrói em Brasília. Não acusou ainda o golpe da abertura de inquérito no Supremo Tribunal Federal, como o PCdoB e Orlando Silva já acusaram, e que ocorreu exatamente no dia em que se declarava mais animado com as perspectivas futebolísticas da capital federal.

Mau conselho - DORA KRAMER

A presidente da República perdeu o timing da demissão de Orlando Silva. Deixou passar a oportunidade na sexta-feira e ficou a reboque da decisão da ministra Carmen Lúcia, que abriu inquérito no Supremo Tribunal Federal para investigar a participação do ministro nos desvios de dinheiro do programa Segundo Tempo.

Na semana passada Dilma Rousseff ainda estava em condições de preservar um pouco da iniciativa de resolver uma questão de evidente quebra de confiança, mas preferiu não fazê-lo a fim de atender circunstâncias outras.

Ao que se sabe fiou-se nos (maus) conselheiros que a orientaram a resistir ao"clima de histeria"para evitar que PT e PC do B se engalfinhassem numa troca de denúncias sobre quem deixou correr mais solto o descontrole com as verbas do Ministério do Esporte: Orlando Silva ou o antecessor e hoje governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz.

Resultado, mais uma vez tornou-se refém dos fatos consumados: novas denúncias a cada dia, pedido de investigação feito pelo procurador- geral da República, solicitação aceita pela ministra Cármen Lúcia, inquérito aberto no STF e Orlando Silva fora do jogo. Esteja ele nesta altura demitido ou não.

Subtraído de autoridade-moral,política e administrativa - pelas circunstâncias que os conselheiros não levaram em conta e a presidente não soube ou não quis avaliar corretamente.

Se a intenção era resguardar a prerrogativa da presidente de decidir, deu-se o oposto: os acontecimentos decidirão por ela.

Outra má ideia foi aquela de determinar a Orlando Silva que se encarregasse de tirar de cena os fatos negativos substituindo- os por uma agenda positiva.

Isso no meio da confusão.O ministro foi à Câmara ontem para tentar mudar de assunto e discutir a Lei Geral da Copa como se ainda houvesse amanhã, mas de novo o tema foi o escândalo.

Não tinha alternativa: apanhou calado, recusando-se a responder a perguntas sobre as denúncias, "em respeito à comissão".

Embaraçoso, mas inevitável. Naquele momento o ministro falava na condição de investigado pelo Supremo. Nem ele tinha mais o que dizer nem a Câmara poderia desconhecer o fato do dia.

O governo pode até tentar estender a agonia, mas não poderá ignorar por muito tempo que a pasta do Esporte está vaga.

Adaptação. Assessores presidenciais vão aos poucos alterando a narrativa sobre as impressões de Dilma e Lula a respeito de Orlando Silva.

Na sexta-feira, segundo os relatos, ambos estariam seguros de que era preciso resistir ao "denuncismo sem provas".

Na segunda,já teriam trocado impressões preocupadas com o volume de denúncias, durante uma inauguração em Manaus.

Vai-se, assim, construindo a saída desonrosa de sempre.

É óbvio que duas pessoas experientes - uma, foi presidente por oito anos, outra seu braço direito e agora na Presidência - sabem bem reconhecer quando estão diante de uma situação de improbidades em série.

Se nunca viram o que está sendo mostrado, ou não olharam e foram desleixados, ou não quiseram ver e foram cúmplices.

Coisa em si. Consta que na reforma de janeiro a presidente Dilma pretende acabar com o conceito de "feudo" pelo qual um ministério é entregue a um partido para fazer dele o que bem entender.

Isso é dito com naturalidade, como se a existência do tal critério não fosse em si um escândalo e também uma distorção da delegação que a população dá ao governante para conduzir a elaboração e execução de políticas públicas por meio dos ministérios.

Inglês ver. Veja o leitor como o Congresso dança conforme a música que toca o Palácio do Planalto: há pouco mais de dois meses senadores lançaram a Frente Supra partidária contra a Corrupção e a Impunidade, em apoio à dita "faxina" ética da presidente.

sábado, 22 de outubro de 2011

JOSÉ ROBERTO TORERO - Carta para Tito

Onde o povo prefere pousar seu clunis: numa privada, num banco de escola ou num estádio?



Futebol também é cultura. Hoje, para júbilo e gáudio dos amantes das letras clássicas, publicarei uma carta do imperador Vespasiano a seu filho Tito. Vamos a ela:
"22 de junho de 79 d.C.

"Tito, meu filho, estou morrendo. Logo eu serei pó e tu, imperador. Espero que os deuses te ajudem nesta árdua tarefa, afastando as tempestades e os inimigos, acalmando os vulcões e os jornalistas. De minha parte, só o que posso fazer é dar-te um conselho: não pare a construção do Colosseum. Em menos de um ano ele ficará pronto, dando-te muitas alegrias e infinita memória.

"Alguns senadores o criticam, dizendo que deveríamos investir em esgotos e escolas. Não dê ouvidos a esses poucos. Pensa: onde o povo prefere pousar seu clunis: numa privada, num banco de escola ou num estádio? Num estádio, é claro.

"Será uma imensa propaganda para ti. Ele ficará no coração de Roma por omnia saecula saeculorum, e sempre que o olharem dirão: 'Estás vendo este colosso? Foi Vespasiano quem o começou e Tito quem o inaugurou'.

"Outra vantagem do Colosseum: ao erguê-lo, teremos repassado dinheiro público aos nossos amigos construtores, que tanto nos ajudam nos momentos de precisão.

"Moralistas e loucos dirão que mais certo seria reformar as velhas arenas. Mas todos sabem que é melhor usar roupas novas que remendadas. Vel caeco appareat (Até um cego vê isso).

"Portanto deves construir esse estádio em Roma, assim como a gente de Brasília construirá monumentais estádios em Natal, Cuiabá e Manaus, mesmo que nem haja ludopédio por esses lugares.

"Só para você ter uma ideia, o campeonato de Mato Grosso teve média inferior a mil pessoas por partida, e a Arena Pantanal, em Cuiabá, terá capacidade para 43.600 espectadores. Em Recife haverá um novo estádio, mas todos os grandes clubes já têm o seu. Pior será a arena de Manaus: terá 47 mil lugares e, no campeonato estadual, juntando os 80 jogos, o público total foi de 37.971.

"As gentes da Terra Papagalli não ligaram nem mesmo para o exemplo dos sul-africanos, que construíram cinco novos estádios e quatro são deficitários.

"Enfim, meu filho, desejo-te sorte e deixo-te uma frase: Ad captandum vulgus, panem et circenses (Para seduzir o povo, pão e circo).

"Esperarei por ti ao lado de Júpiter."

PS: Vespasiano morreu no dia seguinte à carta. Tito não inaugurou o Coliseu com um jogo de Copa, mas com cem dias de festa. Tanto o pai quanto o filho foram deificados pelo senado romano.

CLÁUDIA LAITANO - A pornografia da morte

Há exatos 15 anos, quando a rede mundial de computadores ainda não era tão mundial assim, o Brasil assistiu à eclosão de um fenômeno que viria a crescer junto com a internet nos anos seguintes. Poucas horas depois do acidente que matou os integrantes da banda Mamonas Assassinas, em março de 1996, chegavam à rede imagens chocantes de corpos mutilados, espalhados pela mata onde caiu o avião.

Nunca se soube exatamente como as fotos vazaram, mas a rapidez com que elas se disseminaram era inédita até então e anunciava o início de uma nova era: a tecnologia de compartilhamento instantâneo de informações, associada à humana inclinação para a curiosidade mórbida, ampliava exponencialmente o alcance de uma das mais desprezíveis formas de invasão da privacidade – aquela em que as vítimas não têm qualquer chance de defesa. O fenômeno ganhou um nome, “death porn”, algo como “pornografia da morte”.

Na pornografia da morte, o corpo é banalizado e subtraído do seu conteúdo humano, como na pornografia do sexo. Quem vê uma foto de uma mulher nua em uma revista não está preocupado em saber se ela paga aluguel ou se é uma filha amorosa de pais velhinhos. O corpo é reduzido à função básica de satisfazer uma fantasia – e qualquer subjetividade só é admitida no jogo quando serve ao propósito dessa fantasia.

No caso da pornografia da morte, o corpo também deixa de ligar-se a uma pessoa para tornar-se o objeto de um voyeurismo mórbido. Se a pornografia convencional busca o prazer do sexo sem obstáculos e sem complicação, a pornografia da morte é o exercício de uma espécie de sadismo sem vítimas e sem punição.

A história é recheada de cadáveres célebres usados como propaganda política – tanto para honrar a memória da vítima quanto para sepultá-la simbolicamente. Durante a Revolução Francesa, o quadro A Morte de Marat, de Jacques-Louis David, foi usado para retratar o sanguinário líder revolucionário como um mártir heroico da causa do povo. Mais tarde, quando os ventos políticos mudaram, o quadro foi banido da França.

As clássicas imagens de Che Guevara morto nas selvas da Bolívia serviram tanto para provar que ele fora derrotado quanto para alimentar o mito quase religioso que cercaria sua memória nos anos seguintes. Mortos costumam ser muito obedientes ao uso que os mais vivos decidem fazer deles.

No caso de Kadafi, no entanto, o conteúdo pornográfico e aleatório das imagens de sua execução parece ter superado qualquer subtexto político. Os inimigos do ditador líbio podem argumentar que mostrá-lo morto era indispensável, mas a sensação é de que algum limite inédito foi transposto nessa exibição obscena do cadáver.

Houve um tempo em que esse tipo de imagens seria filtrado antes de chegar à grande imprensa. Não mais. Um observador de posse de um celular é o que basta para que o conteúdo extrapole qualquer tentativa de mediação ou pudor. A decisão de divulgar ou não uma imagem não está mais na mão de quem pode achar importante refletir sobre o que é ou não adequado divulgar ou mesmo de quem deseja fazer o uso político dela – mas na ponta dos dedos do voyeur tecnológico mais próximo.

sábado, 15 de outubro de 2011

Romance explora o medo da morte aos 27

Estreia do músico Kim Frank na literatura trata da idade maldita na carreira de astros do rock

MARCIO AQUILES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A morte de Amy Winehouse, em julho deste ano, voltou a chamar a atenção do mundo para a idade maldita na carreira de vários ídolos da história do rock: 27 anos.
Antes disso, em 2007, o músico alemão Kim Frank, líder da extinta banda Echt, iniciou a escrita de seu romance de estreia, "27", publicado agora no Brasil pela editora Tordesilhas.
Assombrado pela macabra coincidência que levou os músicos Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison e Kurt Cobain, entre outros, a morrerem com essa idade, o protagonista Mika desenvolve uma obsessão de que ele seria o próximo a entrar no "clube dos 27".
Sua compulsão faz com que ele enxergue o número -ou qualquer combinação matemática dele- em momentos importantes de sua vida.
A narrativa segue o caminho oposto ao do tradicional "Bildungsroman" (romance de formação) alemão, já que, em vez trilhar o processo de aprendizado de um jovem, a obra mostra sua paranoica espera pela morte.
Aos 18 anos, o personagem torna-se o compositor e vocalista de uma banda com o sugestivo nome "Fears" (medos, em inglês).
A partir daí, Mika vivencia uma série de clichês comuns à vida do autor e das estrelas do rock: primeiro show arrasador, capa da revista "Rolling Stone", consumo de drogas, escândalos sexuais, brigas com a banda etc.
"Algumas passagens foram inspiradas em minha experiência pessoal com a indústria fonográfica. Mas Mika reage ao seu modo às situações, de acordo com suas características peculiares e excêntricas", afirma Frank.
A maior qualidade do livro é conseguir deslindar os meandros de uma mente psicótica por meio de uma narrativa em primeira pessoa sem preciosismos de linguagem ou metáforas desnecessárias.
"A velocidade e as mudanças de ritmo da narrativa refletem as transformações na vida de Mika à medida que ele desenvolve seu medo e fica mais famoso", diz Frank.
Apesar de abusar do lugar-comum em diversos trechos, o livro consegue prender o leitor com os devaneios e as peripécias do narrador.

27
AUTOR Kim Frank
EDITORA Tordesilhas
TRADUÇÃO Eduardo Simões
QUANTO R$ 34,90 (215 págs.)

Van Sant faz morte virar conto de fadas

"Fiz o que não esperam de mim", explica o diretor de "Inquietos", que o Festival do Rio exibe a partir de hoje

Filme juvenil, lançado em Cannes, tem casal apaixonante vivido por Mia Wasikowska e filho de Dennis Hopper

ANA PAULA SOUSA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O tema da morte sempre rondou o cinema de Gus van Sant. Basta lembrar "Gerry" (2002), "Elefante" (2003) ou "Paranoid Park" (2007).
A diferença, desta vez, é que ele resolveu transformar a morte em conto de fadas. "Inquietos" pode ser definido como "love story" juvenil.
"Não acho que tenha feito uma 'love story' tradicional. Acho apenas que fiz algo novo na minha carreira", disse o diretor, em entrevista concedida durante o Festival de Cannes, em maio passado.
"As reações ruins, neste caso, podem ser boas, porque fiz o que não esperam de mim. Pela primeira vez, tentei estar a serviço do roteiro, tentei, simplesmente, contar uma história", completou.
O roteiro assinado pelo estreante Jason Lew conta a história de dois jovens que, por diferentes motivos, são obrigados a lidar com a morte.
"Jason escreveu uma fantasia que é, ao mesmo tempo, pura realidade. O roteiro, de cara, me remeteu à velha tradição dos contos russos", afirmou o cineasta.
"Ele colocou sua nostalgia da infância e da juventude nesses personagens."
O que os dois protagonistas do filme têm em comum, além do tema da morte a rondá-los e das roupas que parecem saídas de um filme de época, é o mundo que inventaram para poder sobreviver.
Como outros personagens de Van Sant, Annabel (Mia Wasikowska) e Enoch (Henry Hopper) se sentem apartados do mundo "normal".
"O Velho Oeste era o lugar a partir do qual John Ford via o mundo e contava histórias. A juventude é o meu terreno", disse Gus van Sant, para explicar o que, às vezes, é tomado por obsessão.
"É a partir dos jovens que eu consigo investigar os temas que me interessam."
Em "Inquietos", o cineasta, que já transformou vários "garotos lindos" em atores de respeito -basta lembrar River Phoenix (1970-2003), Keanu Reeves, Ben Affleck e Matt Damon-, nos revela um outro rosto marcante: o de Henry Hopper, filho de Dennis Hopper (1936-2010).
"Gosto de trabalhar com atores não conhecidos para que o espectador olhe para o personagem sem ter nenhuma outra referência."
Hopper, também artista plástico, encarou seu primeiro papel de protagonista no cinema com esse trabalho.
Forma um par perfeito -e absolutamente apaixonante- com Wasikowska, a nova queridinha de Hollywood.

Van Sant faz morte virar conto de fadas

"Fiz o que não esperam de mim", explica o diretor de "Inquietos", que o Festival do Rio exibe a partir de hoje

Filme juvenil, lançado em Cannes, tem casal apaixonante vivido por Mia Wasikowska e filho de Dennis Hopper

ANA PAULA SOUSA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O tema da morte sempre rondou o cinema de Gus van Sant. Basta lembrar "Gerry" (2002), "Elefante" (2003) ou "Paranoid Park" (2007).
A diferença, desta vez, é que ele resolveu transformar a morte em conto de fadas. "Inquietos" pode ser definido como "love story" juvenil.
"Não acho que tenha feito uma 'love story' tradicional. Acho apenas que fiz algo novo na minha carreira", disse o diretor, em entrevista concedida durante o Festival de Cannes, em maio passado.
"As reações ruins, neste caso, podem ser boas, porque fiz o que não esperam de mim. Pela primeira vez, tentei estar a serviço do roteiro, tentei, simplesmente, contar uma história", completou.
O roteiro assinado pelo estreante Jason Lew conta a história de dois jovens que, por diferentes motivos, são obrigados a lidar com a morte.
"Jason escreveu uma fantasia que é, ao mesmo tempo, pura realidade. O roteiro, de cara, me remeteu à velha tradição dos contos russos", afirmou o cineasta.
"Ele colocou sua nostalgia da infância e da juventude nesses personagens."
O que os dois protagonistas do filme têm em comum, além do tema da morte a rondá-los e das roupas que parecem saídas de um filme de época, é o mundo que inventaram para poder sobreviver.
Como outros personagens de Van Sant, Annabel (Mia Wasikowska) e Enoch (Henry Hopper) se sentem apartados do mundo "normal".
"O Velho Oeste era o lugar a partir do qual John Ford via o mundo e contava histórias. A juventude é o meu terreno", disse Gus van Sant, para explicar o que, às vezes, é tomado por obsessão.
"É a partir dos jovens que eu consigo investigar os temas que me interessam."
Em "Inquietos", o cineasta, que já transformou vários "garotos lindos" em atores de respeito -basta lembrar River Phoenix (1970-2003), Keanu Reeves, Ben Affleck e Matt Damon-, nos revela um outro rosto marcante: o de Henry Hopper, filho de Dennis Hopper (1936-2010).
"Gosto de trabalhar com atores não conhecidos para que o espectador olhe para o personagem sem ter nenhuma outra referência."
Hopper, também artista plástico, encarou seu primeiro papel de protagonista no cinema com esse trabalho.
Forma um par perfeito -e absolutamente apaixonante- com Wasikowska, a nova queridinha de Hollywood.

Garota na chuva e Steve Jobs - SÉRGIO TELLES

Um dos prazeres fornecidos pelo humor é sua capacidade de expressar, de forma socialmente aceitável, fantasias sexuais e agressivas que estão habitualmente reprimidas.

A dimensão disruptiva do humor faz com que ele esteja sempre no fio da navalha, exigindo habilidade dos comediantes para não resvalarem para a franca agressão ou grosseira obscenidade.

Não é, pois, de surpreender que o humor se ressinta das limitações que o politicamente correto progressivamente lhe impõe, o que leva muitos a ver como cerceadora de liberdade tal atitude. O que ocorre é que a consciência politicamente correta denuncia a conotação agressiva e desrespeitosa implícita nas piadas e "brincadeiras" das quais as diversas minorias são alvos. Desta forma, a parcela de agressividade que até então tinha livre descarga através do humor, cai novamente sob repressão, engrossando o caldo do que Freud chamou de "mal-estar na cultura" - a necessidade da repressão das pulsões para que a convivência humana seja possível.

Se o politicamente correto se constitui numa pressão social, o mesmo ocorre em nível individual. Não é incomum os comediantes pagarem um preço alto por suas atuações, quando pessoas que se sentiram diretamente atingidas por suas invectivas exigem reparações. O caso mais recente é o do Rafinha Bastos, forçado a pedir demissão do CQC e da Band em função de uma piada considerada ofensiva demais para passar sem punição.

Dos atuais programas televisivos de humor, os mais interessantes são o CQC e o Pânico na TV. Enquanto o primeiro tem um formato aparatoso que procura passar uma impressão de força e atualidade tecnológica, o Pânico opta por uma forma mambembe, condizente com seu espírito irreverente e debochado, distante de qualquer pretensão pomposa.

É costume do Pânico pegar pessoas do lúmpen que se destacam por determinadas peculiaridades físicas ou mentais e transformá-las em personagens de seus quadros. Em sendo um programa de humor, fica implícito o objetivo de explorar a comicidade que eles involuntariamente podem provocar no público. Haveria aí uma questão ética? Estariam estas pessoas sendo exploradas em sua simplicidade? Seriam elas guindadas à condição de "celebridade" e depois devolvidas ao seu anonimato original sem qualquer preocupação com os efeitos dessa experiência em suas vidas? Isso as transforma em vítimas do programa, da maligna máquina de comunicação? Ou seria esta uma oportunidade inusitada que se abre para tais pessoas e que elas não veem porque não aceitá-la - quer seja por não terem alternativas melhores ou por ser uma possibilidade de escapar, mesmo que de forma incerta e temporária, de uma vida obscura e sem perspectivas maiores?

O que o Pânico faz com estas pessoas é uma versão mais modesta e barata dos realitys shows. Os participantes do reality show veem a radical banalidade de suas vidas transfigurada, na medida em que passam a ser mostrados como personagens shakespearianos, vivendo complicadas situações de amores, traições e intrigas palacianas, numa dimensão impossível em suas vidas reais.

É nesta galeria que se insere Ednéia Macedo. Ingênua compositora e cantora, ela produziu pequenos clipes com suas músicas e os postou no YouTube, onde foi notada pela equipe do Pânico. Nos últimos dois meses, seu desejo de ser uma pop star foi transformado numa atração do programa. Assim, o público tem seguido as atividades de Ednéia, seus contatos com pessoas famosas, seus encontros com profissionais do show business que poderiam ajudá-la em seu projeto. Sua presença no Pânico fez com que um de seus clipes, o Garota na Chuva, ao modo viral típico da internet, virasse um item de grande visibilidade, atualmente com 1,79 milhão de acessos.

Em que pese o caráter eminentemente amadorístico e singelo dos clipes, é notável que uma moça sem muitos meios, morando em Mutuípe, interior da Bahia, possa tê-los realizado com recursos locais, obtendo um resultado bastante apresentável, com uma correta montagem de imagem e som. É uma inequívoca demonstração de como a tecnologia ficou acessível a uma imensa maioria, algo impensável há pouquíssimo tempo.

A isso se acrescenta esta coisa extraordinária que é a internet, possibilitando o encontro das tribos mais remotas e estranhas, a articulação de grupos sociais, a divulgação de notícias e de produções individuais, rompendo com os canais convencionais dominados pelo poder político e econômico. Estamos no meio de uma imensa revolução branca, que com sua novidade e fluidez, desafia as estruturas constituídas, apontando para novas práticas democráticas que dispensam as envelhecidas engrenagens políticas, forçando sua renovação ou substituição. É o que mostram a Primavera Árabe e o atual Outono Norte-americano, com a "Ocupe Wall Street".

Ednéia surfa nesta onda. É um produto híbrido da tecnologia acessível às massas, da internet e da televisão. Se alguns ficam penalizados com ela, vendo-a como mais um objeto manipulado, e em breve descartado, pela indústria do entretenimento, alvo de um humor cruel e impiedoso que a mostra de forma desfavorável, não me encontro entre eles. Vejo-a como alguém que luta com os recursos que tem, apostando tudo no jogo que ela mesma desencadeou, disposta a arcar com os inevitáveis custos do processo. Afinal, ninguém melhor do que ela para saber que quem sai na chuva é pra se molhar...

Ao falar de Ednéia Macedo e de suas peripécias, que mostram de forma irrefutável a irreversível popularização da tecnologia, quero homenagear Steve Jobs, que tanto fez para tornar isso possível.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sociedade sem graça - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

A falta de liberdade deu lugar à falsa concepção de que ela só pode existir quando for sem freios

A variedade e a frequência da violência que nos assombra constitui indício de profundas e alarmantes mudanças sociais fora de controle: pais que matam filhos, filhos que matam pais, netos que matam avós, bebês que são jogados no lixo, bêbados que dirigem carros em alta velocidade e matam. E mesmo humoristas que querem fazer rir à custa do desrespeito e do menosprezo pelo outro. A sociedade está ficando sem graça. Só há graça na reciprocidade de valores sociais em contraposição à tentação de conveniências pessoais. Nossa tradição de humor é de raiz conservadora e se baseia, sobretudo, em fazer rir das contradições próprias das insuficiências da nossa modernidade, do imitar sem ser ou do ser sem saber. Daí que o caipira seja o nosso sujeito crítico por excelência e nosso insuperável personagem de humor.

A sociedade dos incalculáveis ganhos econômicos tornou-se a sociedade das incalculáveis perdas morais. Falta uma bolsa de valores sociais, que meça diariamente quanto perdemos de nós mesmos, de nossa dignidade, de nossa autoestima, da estima e do respeito pelo outro. A sociedade do pendão da esperança está se transformando na sociedade da desesperança e do ceticismo.

Já há uma rotina de notícias sobre pessoas embriagadas que, dirigindo carro, atropelam, machucam e matam. Vamos nos acostumando, que é o pior sinal da complacência e da rendição incondicional à banalização da vida. Assassinos do volante foram soltos até antes que suas vítimas fossem enterradas. Edson Roberto Domingues, 55 anos, trabalhador, negro, chefe de família, teve 90% do corpo queimado quando seu caminhãozinho foi batido, e pegou fogo, pelo carro Camaro, importado, de R$ 165 mil, dirigido por um jovem embriagado, em disparada, que feriu quatro outras pessoas. Naquela rua a velocidade máxima é de 60 km por hora, que Edson Roberto respeitava. Foi vitimado por um bêbado irresponsável que corria a 116 km por hora. Mediante fiança de R$ 245 mil, o autor da violência foi solto 24 horas antes da morte de sua vítima e dois dias antes que a família a enterrasse no Cemitério da Lapa.
O respeitador da lei foi irremediavelmente punido, como se fosse o culpado; o violador da lei passou umas horas na cadeia e está livre, como se fosse vítima. O assassino vai ser julgado por homicídio doloso, mas o STF já tem decisão sobre outro caso do mesmo gênero, de 2002, em que o dolo é questionado. Como observou um especialista, uma pena que deveria ser de 20 anos de prisão acaba sendo, no máximo, de 4 anos e até trocada por cestas básicas para os pobres. Quando o dinheiro pode pagar por aquilo que não tem preço, quando vida e moeda se equivalem, já significa que nessa equivalência a condição humana se perdeu. O abrandamento do Código de Processo Penal, para casos assim, vai na mesma direção.

História igual ao do dono do Porsche de R$ 600 mil que abalroou e destruiu o carro dirigido por uma moça, matando-a. Salvo por um bombeiro, ele saiu dos escombros de seu carro preocupado unicamente com os danos ao seu veículo. Nossa alma foi mercantilizada no egoísmo da equivalência mercantil do que não é equivalente ou não deveria ser.

Os longos anos de ditadura, de falta de liberdade e de direitos, deram lugar a uma sociedade que se embriaga na falsa concepção de que a liberdade só existe no abuso da liberdade sem freios, sem regras, sem respeito pela liberdade do outro. De que o direito só o é no abuso do direito sem a contrapartida de um código de deveres, os do respeito pelo direito do outro. A democratização corre o risco de se tornar uma farsa na anomia que desagrega, na falta de normas decorrentes de valores sociais de referência. Esses casos sugerem que os valores estão invertidos, pervertidos.

O eixo do nosso senso de justiça vem se deslocando do que por longo tempo definiu os valores sociais e regulou o comportamento das pessoas, a sociedade valorizada como todo. A sociedade tinha a primazia na definição do certo e do errado, do bem e do mal. É verdade que a vara de marmelo teve uma função histórica na formação do caráter do brasileiro, até a geração de nossos pais e avós. O Brasil venceu essa fase repressiva e descabida e começou a formar seus filhos na brandura da compreensão, na honestidade pedagógica de falar, mas de também ouvir.

Mas essa revolução de perspectiva não levou em conta os trânsfugas da educação tradicional e da moderna, os que confundiram liberdade com abuso, direito com prepotência, democracia com impunidade. Chegamos ao tempo cinzento das novas iniquidades, o do direito torto, da lei capciosa, da lei de Gerson, do individualismo exacerbado, da solidão que cega. Em larga extensão, a sociedade brasileira está matando o outro e o sentido da alteridade e da reciprocidade. "Deus é brasileiro" foi frase comum na boca de todos durante um longo tempo de nossa história. Mas Deus morre todos os dias não só nos atos dos que a si mesmos se supõem deuses; também nas várias modalidades de aniquilamento do semelhante.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, AUTOR, DENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN, MÍSTICO (CONTEXTO, 2011) - O Estado de S.Paulo