domingo, 7 de agosto de 2011

Olhos de cinema - HELVÉCIO RATTON

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Olhos de cinema

Santiago, 1971

HELVÉCIO RATTON

NUNCA ME ESQUECI daqueles olhos. Até hoje, muitos anos depois, ainda me provocam certo arrepio quando voltam à memória. Em 1971, eu morava em Santiago do Chile, tinha 21 anos e estava lá como exilado político. Havia deixado a escola de economia e trabalhava na Chile Films, estatal de cinema, na produção de um filme de época. Os estúdios da Chile Films ficavam na parte alta da cidade, aos pés da cordilheira. Como eu não morava muito longe, dava para voltar a pé. Embora o país vivesse um clima de confronto político, a cidade não era violenta e se podia caminhar com segurança por suas ruas.

Naquela noite, tive uma reunião que durou até mais tarde e devo ter saído dos estúdios por volta das 22h. Eu e um companheiro de equipe descemos juntos até certo ponto; depois, segui sozinho.
Já perto de minha casa, lembrando da geladeira vazia que me esperava, decidi entrar em um bar e comer alguma coisa. Sentei numa mesa, pedi um sanduíche e uma taça de vinho.

Enquanto esperava pelo sanduíche, comecei a folhear um livro de filosofia que trazia comigo. Não me lembro de que livro se tratava, mas seguramente era de um autor marxista. O sanduíche chegou, fechei o livro e comecei a comer. Foi quando um homem que estava na mesa ao lado, puxando conversa, perguntou-me se eu gostava de filosofia e se podia sentar-se comigo.

Bem-vestido, o sujeito devia ter uns 40 anos. Começou a falar de filosofia, citou livros e pensadores idealistas, demonstrando erudição. Naquela época, Santiago fervilhava politicamente: havia discussões ideológicas por toda parte, e eu adorava participar delas.

O cara falava em metafísica e daquilo que havia além da matéria. Eu, em contrapartida, me aferrava aos princípios do materialismo dialético para contradizer os argumentos dele.

Olhando aquele homem, o que chamava a atenção eram os olhos negros, inquisidores, emoldurados por sobrancelhas traçadas em ângulo reto. Tive a sensação de que eu os conhecia, que já os tinha visto em algum lugar. O tom da discussão foi crescendo e ficando exaltado. Num certo momento, o sujeito me encarou e fez um desafio: se eu não acreditava no que ele dizia, que o acompanhasse naquela noite. Ele iria me provar o que estava dizendo; eu veria coisas que jamais tinha visto. Àquela altura, eu já estava tomado pela discussão e decidi aceitar.

Enquanto esperávamos a conta, fiquei a observar meu interlocutor. Aqueles olhos... foi quando a ficha caiu. Eram iguaizinhos aos de um personagem de "O Bebê de Rosemary", do [Roman] Polanski, um dos filmes mais assustadores que já vi. Eram os mesmos olhos do chefe dos bruxos, do personagem Roman Castevet, vivido pelo ator Sidney Blackmer. O mesmo olhar agudo, penetrante.

Foi aí que me bateu medo. A coragem que eu tinha em defender meus princípios filosóficos e minha atitude de São Tomé, de ver pra crer, desapareceu num piscar daqueles olhos.

Aleguei que não sabia que estava tão tarde, que no dia seguinte começaria a trabalhar cedo, e fugi do desafio. Paguei minha conta e fui para casa, tocado por aquele estranho encontro.

Alguns dias depois, uma matéria de capa de um jornal chileno me chamou a atenção. Uma série de mortes violentas estavam sendo investigadas pela polícia. Suspeitava-se que estivessem ligadas a rituais de magia realizados em bairros ricos de Santiago.

Nunca soube se aquele homem tinha algo a ver com isso, mas a dúvida ficou para sempre. O encontro não abalou minhas convicções da época, mas, no fundo, o que prevaleceu foi o velho ditado espanhol: "Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay..."

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