segunda-feira, 29 de agosto de 2011

RUY CASTRO - Gente influente

RIO DE JANEIRO - Todo ano, a revista americana "Forbes" elege as mulheres mais influentes do mundo. O critério é difuso. Varia do número de pessoas que uma mulher lidera ao tamanho do dinheiro que outra controla, até a capacidade de ainda outra de "definir as questões de nosso tempo". Assim, não admira que a chanceler alemã Angela Merkel e a secretária de Estado americana Hillary Clinton garantam a ponta -um espirro delas pode provocar um tufão na economia ou abalar um ditador.
Da mesma forma, a espetacular escalada da presidente Dilma, do 95º lugar na lista de 2010 para o terceiro lugar neste ano, se explica por ela ter assumido um país com tanta gente e, incrível, tão próspero. Dizer que tal influência é circunstancial e não advém dos méritos pessoais de Dilma não vale -porque, sem a Alemanha ou os EUA, Angela e Hillary, com todo o seu valor, também estariam pilotando uma mesa ou em casa, fritando bolinhos.
Surpreendente na lista da "Forbes" é a cantora Lady Gaga em 11º lugar. Sim, ela é famosa, mas sua influência só pode estar na produção mundial de organdi ou na compra e venda de artigos de cabeleireiro. Assim como a estrela Angelina Jolie, em 29º. Dizem que, por sua causa, cresceu o uso de botox.Milhões de mulheres estariam se injetando para ganhar uma boca como a dela -embora, em muitos casos, o resultado lembre mais a boca dos bonecos de "Muppets".
O que me espanta é a rainha Elizabeth em 49º, à beira do rebaixamento. Desde que me entendo, nenhuma mulher parecia tão incontornável. Sob seu chapéu, estendia-se o gigantesco Império Britânico. Mas, à medida que esse império encolheu, também diminuiu a sombra de seu chapéu -que, hoje, mal deve lhe proteger as orelhas.
Essa relatividade é cruel e atinge também os homens. Lula, por exemplo, é hoje muito menos Lula do que há um ano. Ou se faz disso.

CONTARDO CALLIGARIS - "A Árvore da Vida" e "Melancolia"

Insegurança e narcisismo: queremos ser os únicos a "perceber" e a denunciar a falsidade do mundo



No sábado passado, assisti a dois filmes: "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, e "Melancolia", de Lars von Trier.

Assistindo ao filme de Malick, pensei no meu professor de literatura no ginásio (acho que se chamava Massariello). Ele nos apresentou à poesia de Giacomo Leopardi, que líamos com gosto, e logo administrou uma ducha fria: "Leopardi era bom poeta, mas não um grande". "Por quê?", perguntamos.

Ele explicou: "Leopardi, em sua breve existência, cantou a juventude que passa rápido demais, a morte que se aproxima, a natureza que não é uma mãe amorosa, o infinito no qual descobrimos nossa insignificância, a vida que não responde às promessas que ela nos fez quando éramos crianças. Vocês gostam de seus poemas porque essas são as questões preferidas pelos adolescentes e por todos os que não conseguem enxergar e amar a vida concreta".

A vida concreta, para ele, era o mundo -desde "as mulheres, os cavalheiros, as armas, os amores" até o pipoqueiro na esquina. Também segundo ele, para justificar a existência desse mundo concreto (grandioso ou trivial, feio ou bonito), bastava a revelação de seu charme, de sua "poesia".

Pois bem, Malick (ou seu narrador) é assombrado pelas lembranças (que ele apresenta admiravelmente) da brutalidade de seu pai, da morte de seu irmão etc. Problema: como não perder de vista Deus e o sentido do mundo diante das inexplicáveis injustiças divinas?

Solução: tente contar sua história começando pelo Bing Bang e passe pelas águas-vivas, pelos dinossauros, pelo meteorito que os extinguiu, até chegar a você. Depois de uma hora de erupções vulcânicas e frêmitos de células no estilo "National Geographic" (com uma trilha sonora na qual Justine, a protagonista de "Melancolia", diria que só falta a nona de Beethoven), tudo fará sentido: a morte dos que você ama, o mal que Deus permite e o que você cometeu parecerão participar do milagre que são a existência do universo, a árvore da vida e o plano divino. Aleluia!

Problema: no fim, o mundo concreto terá sido justificado por uma transcendência (a mão de Deus no grande esquema das coisas). Isso é ótimo para um ensaio ou para uma pregação. Para a arte e a poesia, melhor esperar o fim da adolescência e repassar, diria o professor Massariello.

Eu tinha o receio de que "Melancolia", de Lars von Trier, fosse uma espécie de inverso simétrico do filme de Malick: uma meditação sobre a gratuidade da nossa existência, que talvez Massariello achasse tão adolescente quanto "A Árvore da Vida". Mas não foi nada disso.

Parêntese: vários comentadores declaram que se trata de um filme sobre o mal de hoje, a depressão, só que esta não é a doença do nosso tempo, e sim, sobretudo, uma doença que nosso tempo gosta de diagnosticar porque acha que encontrou a pílula certa para curá-la.

Continuando, o mal do qual sofre Justine consiste em perder interesse pela vida concreta, a ponto de não tolerar o que lhe parece ser a farsa de sua própria festa de casamento.

Em geral, esse cinismo cético é fruto de 1) uma consciência moral terrível, pela qual toda experiência concreta, sobretudo se for prazerosa, deve ser culpada ou 2) uma extrema insegurança compensada por uma exaltação narcisista; assim: sou o único a "perceber" que tudo é falso -com isso, sou superior aos outros, ninguém me engana. Essa posição é frequente na adolescência; pense no jovem que, no baile, desesperado por não conseguir se integrar, fica sentado denunciando mentalmente a impostura e os simulacros na valsa dos que dançam.

Nota. A mãe de Justine é clinicamente perfeita. Passando pelo crivo de seu sarcasmo, tudo é apenas hipocrisia: não sobra um mundo no qual a gente possa querer encontrar um lugar.

No "Nascimento da Tragédia", Nietzsche conta que Sileno, companheiro de Dionísio, tendo que responder à pergunta "O que é melhor para o homem?", disse: "O melhor de tudo é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser".

Nietzsche simpatizava com Sileno e não recorria a transcendências (divinas ou não) para justificar o mundo. Sua solução era que a vida se justificasse pela arte ou, como dizia Massariello, pelo charme que a poesia lhe confere.
Bom, Von Trier conseguiu dar sentido (e charme) ao fundo do poço. Não perca.

ccalligari@uol.com.br

sábado, 27 de agosto de 2011

A presidente Dilma e o governo-conluio - RUBENS FIGUEIREDO

Nem tudo que é bom para o Brasil é bom para o governo. A presidente Dilma Rousseff, ao se empenhar em resgatar princípios republicanos, promovendo a famosa faxina nos ministérios, certamente beneficia o País. Mas, ao mesmo tempo, expõe o ex-presidente Lula e o PT, gerando, de quebra, um imenso descontentamento nos partidos da base aliada. E passa para a sociedade a ideia de um governo instável, imerso em corrupção.

Dilma é cria de Lula, o presidente ídolo, o presidente show, o rei dos discursos, o comunicador talentoso e o pai moderno dos pobres. Em pouquíssimo tempo, Dilma conseguiu imprimir uma marca à sua gestão e criou um estilo todo próprio de conduta. Para alguém que sucede a um fenômeno e era totalmente desconhecida pelo eleitorado há um ano, trata-se de verdadeira epopeia.

O quadro é complexo. A presidente ganhou a simpatia da classe média tradicional, aquele conjunto de cidadãos de escolaridade mais alta e mais informado sobre política. Sua avaliação, entretanto, piorou no conjunto da sociedade, segundo todas as pesquisas recentes divulgadas. Ainda é alta, pois Lula entregou o governo nos píncaros da glória. Mas caiu.

A performance de um governo, entretanto, não é medida apenas pela ação do chefe de governo. Precisa ter projetos, prestar bons serviços, melhorar a vida das pessoas, aprovar leis importantes. Num sistema político de presidencialismo de coalização, no qual os governos são formados com a participação de partidos coligados, fazer uma boa administração significa ter uma excelente relação com os grupos aliados. Um governo paralisado ou em "marcha lenta" jamais será inscrito no rol dos mais eficientes.

Isso criou, no Brasil, a ideia do governo-conluio. Em nome da governabilidade, aceita-se uma pletora de nomeações de políticos de caráter duvidoso e cria-se uma espetacular rede de proteção corporativa, que nos governos anteriores era capitaneada pelo próprio presidente. Combater corrupção, as pesquisas mostram, não é prioridade para a ampla maioria dos eleitores. Pode vir a ser, se a presidente Dilma conseguir dar às suas ações um caráter educativo e convencer a sociedade de que, pelo menos no caso da sua faxina, o que é bom para o Brasil pode ser bom também para o governo.

A presidente Dilma e o governo-conluio - RUBENS FIGUEIREDO

Nem tudo que é bom para o Brasil é bom para o governo. A presidente Dilma Rousseff, ao se empenhar em resgatar princípios republicanos, promovendo a famosa faxina nos ministérios, certamente beneficia o País. Mas, ao mesmo tempo, expõe o ex-presidente Lula e o PT, gerando, de quebra, um imenso descontentamento nos partidos da base aliada. E passa para a sociedade a ideia de um governo instável, imerso em corrupção.

Dilma é cria de Lula, o presidente ídolo, o presidente show, o rei dos discursos, o comunicador talentoso e o pai moderno dos pobres. Em pouquíssimo tempo, Dilma conseguiu imprimir uma marca à sua gestão e criou um estilo todo próprio de conduta. Para alguém que sucede a um fenômeno e era totalmente desconhecida pelo eleitorado há um ano, trata-se de verdadeira epopeia.

O quadro é complexo. A presidente ganhou a simpatia da classe média tradicional, aquele conjunto de cidadãos de escolaridade mais alta e mais informado sobre política. Sua avaliação, entretanto, piorou no conjunto da sociedade, segundo todas as pesquisas recentes divulgadas. Ainda é alta, pois Lula entregou o governo nos píncaros da glória. Mas caiu.

A performance de um governo, entretanto, não é medida apenas pela ação do chefe de governo. Precisa ter projetos, prestar bons serviços, melhorar a vida das pessoas, aprovar leis importantes. Num sistema político de presidencialismo de coalização, no qual os governos são formados com a participação de partidos coligados, fazer uma boa administração significa ter uma excelente relação com os grupos aliados. Um governo paralisado ou em "marcha lenta" jamais será inscrito no rol dos mais eficientes.

Isso criou, no Brasil, a ideia do governo-conluio. Em nome da governabilidade, aceita-se uma pletora de nomeações de políticos de caráter duvidoso e cria-se uma espetacular rede de proteção corporativa, que nos governos anteriores era capitaneada pelo próprio presidente. Combater corrupção, as pesquisas mostram, não é prioridade para a ampla maioria dos eleitores. Pode vir a ser, se a presidente Dilma conseguir dar às suas ações um caráter educativo e convencer a sociedade de que, pelo menos no caso da sua faxina, o que é bom para o Brasil pode ser bom também para o governo.

Melancolias - JOSÉ MIGUEL WISNIK

Só os muito insensíveis são capazes de viver sem sofrer os efeitos da mais antiga das doenças da alma

Ainda não pude ver “Melancholia”. As colunas de Francisco Bosco e de Caetano me mobilizaram para o filme, e para o assunto da melancolia e do fim do mundo. Já contei aqui, recentemente, que essas questões me perseguiram intimamente por muito tempo, com o sentimento de uma catástrofe final, definitiva, inevitável. Contei também que esse sentimento passou por uma mutação em mim, e perdeu a dominância que tinha nas minhas fantasias e nos meus medos. Talvez porque eu tenha passado por perdas reais. A verdade é que saí da posição melancólica encruada. Entrevejo, pelos comentários deles, que as duas irmãs, personagens do filme de Lars von Trier, de algum modo dramatizam isso. Diante da iminente colisão do planeta Melancholia com a Terra, a melancólica parece encarar o real (se eu não estiver enganado), enquanto a realista e adaptada não tem como suportá-lo.

Sem ter visto o filme, eu o vejo através dos meus colegas de coluna, além de vêlos e de me ver neles. O texto de Francisco Bosco é bonito e forte, e acusa o impacto do filme sobre si como o da Melancolia destruidora
sobre a Terra. Embora já tenha se revelado, aqui mesmo, como habitualmente insone, ele conta ter sofrido, na noite que se seguiu, da insônia redobrada desse impacto, o do filme, que lhe pareceu tão poderoso quanto filosoficamente inaceitável.

Não sofro de insônia, em geral, mas imagino bem essa insônia específica. Acho que eu e Francisco Bosco, antes de críticos, somos crédulos, isto é, damos crédito às fabulações artísticas que nos atingem. Há outros que, antes de críticos, preferem ser mais propriamente crápulas, dispostos a extirpar pela raiz qualquer espécie de inocência. Eu e Bosco não tememos a inocência — tememos talvez pela inocência. É por isso que ele acusa no filme a traição da vocação nietzscheana da arte, a de afirmar a vida contra a falta de fundamento e sentido.

Caetano é mais escolado do que nós dois, que somos mais escolares, ou mais scholars, do que ele. Identifica com naturalidade os truques americanoides que correm por baixo do supereuropeu “Melancholia”, ao mesmo tempo em que identifica os vezos europeizantes do norteamericano “A árvore da vida”, que lhe parece ser o mesmo filme pelo avesso. Conhecendo bem, por experiência própria, os atalhos do campo que medeia entre a arte (historicamente europeia) e o entretenimento (invenção americana), embarca autoconsciente no que há de entretenimento em “Melancholia”, sem se abalar, ao que parece, com os efeitos apocalípticos do filme, movidos a subwoofers tipicamente hollywoodianos (aqueles sons mais que graves, que vêm de baixo, vibrando nos ossos, e que servem no cinema para dar a ideia da presença de forças colossais).

Fazendo assim, isto é, apontando truques hollywoodianos no famigerado cineasta transgressor escandinavo e relativizando a sua ambição totalizante, livra-se de sofrer os efeitos do filme em bloco, podendo apreciar as situações da trama que lhe interessam — a atriz sexy, o problema do casamento, os podres devassados da burguesia, a trepada, o vestido da noiva, a limousine na estrada de terra, a criança e o anúncio da tragédia — mais em escala interpessoal do que em escala global e alegórica. Não deixa de ser uma estratégia, praticamente declarada ao final do artigo, para neutralizar a melancolia espasmódica dada em espetáculo, com suas cólicas catastrofistas.

Eu me interesso por essa visão multifocal das coisas, que Caetano pratica hoje em dia sem maiores cerimônias e sem pruridos didáticos. Ela é um dissolvente, funcione assim ou não, dos estereótipos monofocais que pulam e pululam por toda parte. Nos seus comentários ele exibe o modo como ao mesmo tempo gosta e não gosta do filme de Lars von Trier, colocando-se, no entanto, não em cima do muro, mas acima de certos muros mentais.

No final das contas, nos convida de novo a ver os vídeos de Mangabeira Unger (eu também
ainda não vi ) . Mangabeira representa, para Caetano, a posição assertiva de quem contrapõe à paralisia crítica e aos lampejos revolucionários de certa esquerda, por um lado, e às ameaças apocalípticas, confusamente objetivas e subjetivas, que nos assombram, por outro, um rol de propostas práticas, não por acaso pouco audíveis em meio ao turbilhão entrópico. Acho que Caetano migrou desde algum tempo, a seu modo, para uma ênfase na afirmação política, mesmo que heterodoxa, mais do que na sublimação estética. Isso marca a sua diferença em relação à tônica do artigo de Francisco Bosco, ao mesmo tempo em que se liga com a tendência à poética mais crua e direta de suas últimas canções.

Voltando à melancolia. Só os muito insensíveis são capazes de viver este tempo sem sofrer os efeitos mutantes da mais antiga das doenças da alma. Esses efeitos são desde muito tempo conhecidos como ambivalentes, como Francisco Bosco mostrou. Enraízam-se na impossibilidade estrutural do desejo,
de atingir plenamente os seus objetos, e realimentamse das ansiedades e ameaças contemporâneas, multiplicadas em todas as escalas. São despistados pela oferta universal das mercadorias. Mas a melancolia mesma só tem uma saída: mergulhar fundo nela, até conhecer a forma mais total do desapego, a de quem abre mão de tudo. Aí então, sem se deixar levar por ela, voltar a ter pela vida um apego de verdade, desses de que não se abre mão.

sábado, 20 de agosto de 2011

Crítico britânico ataca obsessão da música em copiar passado recente - ANDRÉ BARCINSKI CRÍTICO DA FOLHA

Autor de livros fundamentais sobre a cena eletrônica e o pós-punk, o crítico musical britânico Simon Reynolds lançou um livro tentando explicar um dos fenômenos mais evidentes da cultura pop atual: por que tanta música nova parece cópia de música mais antiga?

Em "Retromania - Pop Culture's Addiction to its Own Past" (em tradução livre, retromania - a obsessão da cultura pop por seu próprio passado), ainda inédito no Brasil, Reynolds traça um panorama nada otimista da cena cultural do século 21.

Em entrevista à Folha, Reynolds afirma que os downloads de música e a oferta infinita de produtos são "um desastre para artistas e para fãs".

"A cultura digital se fundamenta na facilidade, e a facilidade de acesso e o custo mínimo de aquisição têm levado a uma depreciação no valor da música e à degradação da experiência audiófila."


Associated Press/France Presse
O vocalista do Nirvana, Kurt Cobain, e Ariel Pink; você consegue adivinhar qual é qual?
O vocalista do Nirvana, Kurt Cobain, e Ariel Pink; você consegue adivinhar qual é qual?

Segundo o autor, todo grande movimento cultural buscou inspiração em alguma manifestação do passado. O problema é que artistas atuais estão buscando suas musas num passado cada vez mais próximo.

"Nunca houve, na história universal, uma sociedade tão obcecada com os artefatos culturais de seu passado imediato. É o que distingue 'retrô' de história", afirma.

Isso criaria, segundo Reynolds, um círculo vicioso, em que as influências que cada artista sofreu têm mais peso que a inspiração artística.

No livro, o autor analisa os fenômenos das turnês de reunião de bandas, o aumento impressionante da venda de discos de catálogo, a influência do YouTube como "arquivo infinito" da cultura pop e a forma como a música é consumida hoje, "muito mais como pano de fundo para outras atividades, como trabalhar no computador ou andar de metrô".

A conclusão é pouco animadora: "Acho que hoje há muita coisa legal para ouvir, mas a maioria envolve, de certa forma, a reinterpretação do passado".

"Não tenho ouvido coisas que, na época, me pareceram tão novas e radicais quanto 'Remain in Light', do Talking Heads, por exemplo, um disco que, especialmente no segundo lado, parece conter em cada canção uma nova direção para a música."

Leia a íntegra da entrevista com Simon Reynolds

ANDRÉ BARCINSKI

CRÍTICO DA FOLHA

No livro "Retromania - Pop Culture's Addiction to its Own Past" (em tradução livre, retromania - a obsessão da cultura pop por seu próprio passado), ainda inédito no Brasil, o crítico musical britânico Simon Reynolds traça um panorama nada otimista da cena cultural do século 21. Por que tanta música nova parece cópia de música mais antiga?

Leia abaixo a íntegra da entrevista com Reynolds.

Folha - No livro, você diz que tem um filho pequeno. Ele é fã de música? Como você compara a sua própria experiência, crescendo como um fã de música nos anos 70 e 80, à experiência do seu filho?

Simon Reynolds - Kieran tem 11 anos e não parece muito interessado em música. Possivelmente, por ter um pai que é crítico de música e que fica tocando música o tempo todo e de todos os tipos, muitas vezes música estranha. É como se música fosse o "meu" negócio e ele estivesse em busca do negócio "dele'.

Kieran adora videogames, diferentemente de mim, que nunca fui interessado nisso. E ele também adora qualquer coisa relacionada a computadores - e-mail, Youtube, Ebay. Ele cresceu como parte da geração conectada. Este é seu mundo.

Acredito que, para a geração dele, música é legal e divertido, mas não tem a mesma importância que teve para a minha geração ou para a geração que sucedeu a minha, a juventude dos anos 90.

Nós realmente víamos a música como a principal arena cultural, era o que nos explicava a nós mesmos e parecia se conectar a todas as outras áreas da cultura e política. Se você, como eu, era ligado em punk e pós-punk, então lia certo tipo de livros, via certo tipo de filmes, tinha interesse em teoria crítica e outras coisas do tipo. Acho que a música foi relegada a ser apenas uma pequena parte do horizonte cultural, e não a parte principal.

Kieran gosta de algumas músicas em particular - como algumas faixas do Black Eyed peãs, por exemplo - mas não acho que ele esteja disposto a explorar a música como parte de sua formação de identidade. Talvez isso aconteça quando ele for um adolescente e descobrir música que tenha relação com sexualidade, ansiedade e toda a confusão que vem com essa fase de transição na vida.

Música também é ligada a diferenças sociais e a ser descolado, é uma forma de socialização entre adolescentes, da mesma forma como Pokemon é hoje para Kieran. Então, acho que, com o passar do tempo, ele vai ter um interesse maior por música, quem sabe até pela música que o pai dele gosta.

Minha filha Tasmin tem 5 anos e ama música. Ela adora dançar, tem um bom senso rítmico e é capaz de passos incríveis, algo no meio do caminho entre o break e artes marciais. Ela tem artistas favoritos, como Pink, Justin Bieber, Ke$ha e Katy Perry. Basicamente, ela gosta de qualquer coisa que toque no rádio e que pareça uma versão pop do Techno e da house music que eu dançava nos anos 90. Ela curte melodia e ritmo, basicamente.

Você acha que a facilidade em baixar música tem, de certa maneira, desvalorizado a música?

Pessoas de tendência liberal ou de esquerda muitas vezes têm um reflexo anticapitalista de dizer: "Que bom que a música é de graça agora, que não está apenas enriquecendo corporações". Mas sou da opinião que a de-commodification não tem funcionado muito bem para a música.

Claramente, é um desastre para os artistas e para a indústria. Mas também para ouvintes e fãs. Veja bem: quando a música custava dinheiro e vinha numa forma sólida, em que, para consegui-la, você tinha de ir a uma loja, e isso envolvia tempo e dinheiro, as pessoas davam mais valor a ela.
A equação é simples: se você gastou dinheiro num bem cultural, seja um livro, revista, disco, etc., você vai gastar tempo tentando extrair o máximo dele. Se você gasta dinheiro com um CD, vai prestar atenção nele quando tocá-lo, e vai tocá-lo mais vezes. Se você obtém um CD de graça, na forma de downloads, você fica mais propenso a ouvir poucas vezes e de uma forma mais distraída. Você vai ouvir a música enquanto faz outras coisas no computador (chamam a isso de "síndrome de atenção parcial"), e você muitas vezes nem vai ouvir o disco todo.

Além disso, se você vive baixando muita música, como as pessoas tendem a fazer quando conseguem música de graça, é matematicamente mais provável que você ouça cada canção menos vezes. E muitos discos só começam a se revelar totalmente depois de repetidas audições.

Para responder à sua pergunta: sim, eu diria que a cultura digital se fundamenta na facilidade, e que a facilidade de acesso e o custo mínimo de aquisição têm levado a uma depreciação no valor da música e à degradação da experiência audiófila.

Mesmo os artistas novos que você elogia no livro - Ariel Pink, por exemplo - fizeram suas carreiras reinterpretando o passado. Você consegue enxergar algo realmente novo sendo feito hoje em dia?

Sim, vejo um número razoável de coisas que eu poderia descrever como relativamente novo ou vagamente inovador. Mas aquelas coisas que, de vez em quando, surgiam como "Uau! FUTURISTA!", essas sumiram, são cada vez mais raras.

Nos anos 90, havia vários gêneros ou movimentos que pareciam grandes ondas de inovação que se sustentaram por vários anos, ou por toda a década: gêneros como jungle, R&B, street rap ou dancehall.

Nos últimos dez anos, parece que os gêneros se tornaram quase estáticos, mas, de vez em quando, no meio de tanta coisa banal e mundana, você via o brilho de algo realmente novo. Em R&B, por exemplo, uma vez ou outra você via algo realmente extraordinário como "Umbrella", da Rihanna, ou "Single Ladies", da Beyoncé.

O dubstep me parece uma extensão dos anos 90, como um tipo de versão adulta e lenta de jungle. Mas produz algumas coisas excitantes: o EP homônimo do Zomby e partes de seu novo álbum, "Dedication", que saiu pelo selo 4AD, as faixas de Cooly G no selo Hyperdub, algumas coisas de James Blake e Ramadanman.

Na música eletrônica tem gente fazendo coisas interessantes: Ricardo Villalobos, Actress, Tobias... Nomes como Oneohtrix, Point Never e Laurel Halo se inspiram muito no passado - música analógica de sintetizadores dos anos 70 e 80, New Age, etc., mas é inegável que fizeram coisas novas.

Uma das áreas onde, acredito, coisas muito interessantes vêm aparecendo é a área de manipulação de vozes: texturização digital de vocais, aceleração e redução de vocais, micro-edição de "samples" de voz. Você pode ouvir isso em música eletrônica extrema e underground (Burial, James Blake) e também no gênero witch house (Salem, etc.), e até na música pop mais comercial (Black Eyed Peas, Ke$ha).

Isso é excitante, embora, se você pensar bem, pode ser rastreado aos anos 90 e a coisas com vocais sampleados que produtores de house e jungle fizeram. Sem esquecer de Cher e de sua faixa "Believe", em 1999, com vocal manipulado via Autotune!

Há algumas semanas, o Arctic Monkeys colocou na web seu novo álbum para os fãs ouvirem. Cada faixa tinha um contador, que permitia ver quantas vezes havia sido ouvida. Mais de 75% das pessoas que ouviram a primeira música não chegaram à última. Você acha que isso pode ser explicado mais pelo déficit de atenção do público, ou pelo fim do LP como um formato de lançamento viável?

Acho que se refere ao que escrevi sobre a depreciação no valor da música e os efeitos da cultura digital na capacidade de atenção do público. O problema de ouvir música via computador ou Iphone conectado à Internet é que o mesmo portal que está conectando você à música é também capaz de, simultaneamente, conectá-lo a milhões de outras coisas. Então, há uma tentação irresistível a clicar em outra coisa e fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo - checar e-mails, baixar mais música, etc. Então você raramente está imerso apenas na música.

Publicações na web são criadas para desestimular o leitor a terminar de ler qualquer artigo, porque elas têm uma série de links coloridos e que chamam a atenção. As publicações não querem que você termine o artigo, porque querem o maior número possível de cliques. Quanto mais você pular de uma parte a outra, melhor para eles.

Você acredita que a mesma visão que seu livro traz da música pode ser estendida ao cinema? Me parece que, desde o surgimento de Tarantino, Robert Rodriguez e outros diretores criados à base de filmes velhos em vídeo e TV a cabo, o cinema tem se tornado cada vez mais uma colcha de retalhos de outros filmes.

Não me parece tão crônico em cinema quanto em música. Você está certo sobre Tarantino, ele é o exemplo óbvio de um fenômeno que detalho em meu livro, que é o do "curador-criador". E se no rock existem as "bandas de colecionadores de discos", com músicos que trabalharam em lojas de discos (como Ariel Pink, por exemplo), o mesmo aconteceu com Tarantino, que foi balconista de uma locadora de filmes. Foi ali que ele criou todo seu conhecimento sobre filmes e sistematicamente dissecou a história do cinema. Então faz sentido que seus filmes sejam baseados em vários estilos e repletos de piadas e sacadas com filmes antigos. O mesmo ocorre com Jim Jarmusch.

Um fenômeno que pensei em explorar no livro foi o das refilmagens. Mas concluí que as razões não eram tão complexas quanto a retromania é para a música. No caso das refilmagens, acho que são 100% motivadas por dinheiro: o reconhecimento, por parte do público, de um filme antigo, pode garantir um certo número de espectadores para a refilmagem. Concluí que não havia muito o que investigar ali.

Tenho uma filha de três anos. Alguns dias atrás, montei minha velha vitrola e toquei alguns discos para ela. Foi fascinante perceber a reação de alguém que, nascida na era digital, teve, pela primeira vez, a chance de ver uma agulha tocando num pedaço de plástico e produzindo som. Você acha que esse aspecto tátil da música, tanto no ouvir música quanto na produção, está mudando a maneira como a música é percebida?

É claro que existe algo de muito estranho na música pop moderna, em que se simula a energia e o som de música tocada ao vivo, mas onde toda a integridade da performance foi desvirtuada pelo uso de elementos de copy/paste que permitem mover a música e torná-la "perfeita". Você consegue perceber, quase subliminarmente, que o que você está ouvindo não é real.
Não é de hoje que gravações de rock têm sido melhoradas por "overdubs" e erros têm sido consertados por edições e substituições, mas hoje vivemos a era em que os sons se tornaram apenas uma massa que pode ser processada ou mudada a gosto. De uma certa forma, é exatamente como eu imaginava a música com o pós-rock, mas, em outro nível, tem uma certa fraudulência no ar, já que simula o som de uma banda tocando ao vivo. Depois, quando você adiciona tratamentos como compressão e AutoTune, o resultado é algo realmente horrível de escutar.

Em gêneros como hip hop, R&B e dance music, isso não parece importar muito, já que são gêneros antinaturais, dependentes da tecnologia e onde não há sequer a intenção de simular "pessoas tocando juntas num estúdio".

Como autor e alguém que depende de seus livros e artigos para sobreviver, como você vê a troca de arquivos na Internet?

Bom, é ótimo poder achar aquele disco raro que eu sempre quis. Mas, de maneira geral, a troca de arquivos tem sido muito ruim para a minha apreciação de música. Para uma pessoa como eu, que cresceu numa época em que música custava dinheiro, ter música de graça na internet é como ganhar a chave da maior loja de discos do mundo. O problema é que nosso tempo não é infinito.

Eu adorei seu livro, mas tenho de confessor que me deixou triste, porque o futuro não parece muito promissor. Como a experiência de escrevê-lo te afetou?

Quando comecei, estava perplexo e ansioso pelo estado da música e, embora eu tenha encontrado muitas explicações no caminho, por meio de minha pesquisa e pensamentos sobre o assunto, terminei exatamente como comecei: perplexo e ansioso.

Concluí que há muita coisa legal para ouvir, mas que a maioria envolve, de certa forma, a reinterpretação do passado. Não tenho ouvido coisas que, na época, me pareceram tão novas e radicais quanto "Remain in Light", do Talking Heads, por exemplo, um disco que, especialmente no segundo lado, parece conter em cada canção uma nova direção para a música.

Tenho acompanhado o lado eletrônico-techno-rave da música, mas a primeira década do século 21 parece ter atingido um ponto em que as pessoas estão experimentando com formas já conhecidas ou criando híbridos ao combinar coisas diferentes da própria história da música eletrônica. Então, tem sido difícil encontrar, hoje, a mesma sensação de novidade absoluta e energia que senti quando ouvi jungle, ou gabba, ou Techno minimal nos anos 90.

Eu diria que o futuro não parece muito promissor, embora, muitas vezes, períodos de estagnação sejam prólogos para algum tipo de erupção cultural.

Estou cautelosamente otimista sobre a nova geração de músicos que só conheceram a Internet. No mínimo, estou curioso sobre o que vai acontecer daqui por diante. Me parece que vivemos uma época interessante. A velha maneira analógica de fazer as coisas - a forma como a cultura funcionava - entrou em colapso, mas acho que alguma coisa vai surgir dessas ruínas.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Quem Matou ?

"E o Brasil é o país do "quem matou". Quem matou Norma? Quem matou Salomão Hayala? Quem matou Odete Roitman? Quem matou a juíza Patrícia Acioli? Quem matou Eliza Samudio? E quem matou a torcida brasileira de vergonha?".
José Simão

Charge - Dalcio



quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A tragédia sincera da política americana - DOMINIC BOYER

O Tea Party propõe mensagem neoliberal radicalizada para combater o declínio de padrões de vida que o neoliberalismo mesmo ajudou a acelerar



O movimento Tea Party nos Estados Unidos é um enigma. Dependendo de quem responda, trata-se de uma revolução popular em favor da responsabilidade fiscal e contra a burocracia governamental -um movimento minoritário de protesto que é genuíno, mas cuja importância é exagerada nos relatos- ou é evidência do desgaste e da ineficácia da cultura política contemporânea dos EUA.
É difícil afastar a impressão de que é bem possível que seja tudo isso. Embora ninguém ponha em dúvida sua influência política, é difícil definir até mesmo quantos partidários o Tea Party possui.
Como o movimento não tem organização partidária, mas é composto de constelação frouxa de grupos de interesses locais e nacionais, que às vezes concorrem entre si, seu impacto político não pode ser medido em termos de base unificada de membros ou de plataforma.
Em lugar disso, temos visto como certos segmentos de sua base política vêm conseguindo radicalizar determinadas questões políticas, entre elas a imigração, o casamento homossexual, a taxação, os gastos do governo e, mais recentemente, o deficit nacional e a dívida dos EUA.
Embora seja bastante provável que os bilionários que dão apoio financeiro ao Tea Party (entre os quais estão os irmãos Koch e Rupert Murdoch) tenham motivações ocultas, é importante entender que os sentimentos políticos populares de ira, indignação e frustração que estão sendo canalizados por meio do Tea Party são realmente sinceros. Eles refletem dois fatos que se ornaram impossíveis de ignorar por qualquer pessoa que viva nos Estados Unidos.
O primeiro é que o padrão de vida americano está declinando, sem nenhuma esperança evidente de recuperação em vista.
O segundo é que o âmbito do discurso político nos EUA se estreitou de tal maneira que não existe razão para supor que esse discurso vá gerar novas soluções para contrapor-se à trajetória atual de declínio. Os Estados Unidos vêm sendo dominados por dois partidos políticos, um de centro-esquerda e outro de centro-direita, e ambos se comprometeram a promover uma agenda neoliberal de privatização e um modelo de saúde econômica nacional medido pela riqueza crescente da elite do setor privado.
A neoliberalização do Partido Democrata, em curso desde a década de 1990, vem empurrando os modos "progressistas" de liberalismo em direção a uma codependência cada vez mais íntima com a antipolítica voraz do neoliberalismo.
Tornou-se angustiante assistir a liberais progressistas como Obama buscando articular uma imaginação política que, nesta era de globalização e financialização, não escorregue simplesmente de volta para o corporativismo e o consumismo neoliberais.
Com a crise econômica de 2008, o distanciamento da política converteu-se em sentimento de ultraje diante de uma cultura política que está rapidamente se tornando tão repetitiva e destituída de imaginação quanto os regimes socialistas estatais da Europa Oriental.
O movimento Tea Party é um sintoma da tragédia da democracia americana hoje. Como um neurótico que constantemente arranca as cascas de suas feridas, o Tea Party propõe mensagem neoliberal radicalizada para combater o declínio dos padrões de vida e da cultura política que o próprio neoliberalismo ajudou a acelerar. Mas é a essa condição, precisamente, que os cidadãos americanos foram reduzidos.
Sem uma voz que os represente em uma cultura política elitista e monolítica, eles estão se punindo com mais abuso neoliberal. Sua raiva está voltada para dentro, pelo menos por enquanto.

DOMINIC BOYER é professor associado do Departamento de Antropologia da Universidade Rice (EUA) e editor do livro "Expertise: Cultures and Technologies of Knowledge" (editora Cornell Univ. Press).

Tradução de CLARA ALLAIN.

VLADIMIR SAFATLE - Maria Antonieta

Em 2006, a cineasta Sofia Coppola lançou um filme sobre Maria Antonieta. Ao contar a história da rainha juvenil que vivia de festa em festa enquanto o mundo desabava em silêncio, Coppola acabou por falar de sua própria geração.
Esta mesma que cresceu nos anos 1990.
No filme, há uma cena premonitória sobre nosso destino. Após acompanharmos a jovem Maria por festas que duravam até a manhã com trilhas de Siouxsie and the Ban- shees, depois de vermos sua felicidade pela descoberta do "glamour" do consumo conspícuo, algo estranho ocorre.
Maria Antonieta está agora em um balcão diante de uma massa que nunca aparece, da qual apenas ouvimos os gritos confusos. Uma massa sem representação, mas que agora clama por sua cabeça.
Maria Antonieta está diante do que não deveria ter lugar no filme, ou seja, da Revolução Francesa. Essa massa sem rosto e lugar é normalmente quem faz a história. Ela não estava nas raves, não entrou em nenhuma concept store para procurar o tênis mais stylish.
Porém ela tem a força de, com seus gritos surdos, fazer todo esse mundo desabar.
Talvez valha a pena lembrar disso agora porque quem cresceu nos anos 1990 foi doutrinado para repetir compulsivamente que tal massa não existia mais, que seus gritos nunca seriam mais ouvidos, que estávamos seguros entre uma rave, uma escapada em uma concept store e um emprego de "criativo" na publicidade.
Para quem cresceu com tal ideia na cabeça, é difícil entender o que 400 mil pessoas fazem nas ruas de Santiago, o que 300 mil pessoas gritam atualmente em Tel Aviv.
Por trás de palavras de ordem como "educação pública de qualidade e gratuita", "nós queremos justiça social e um Estado-providência", "democracia real" ou o impressionante "aqui é o Egito" ouvido (vejam só) em Israel, eles dizem simplesmente: o mundo que conhecemos acabou.
Enganam-se aqueles que veem em tais palavras apenas a nostalgia de um Estado de bem-estar social que morreu exatamente na passagem dos anos 1980 para 1990.
Essas milhares de pessoas dizem algo muito mais irrepresentável, a saber, todas as respostas são de novo possíveis, nada tem a garantia de que ficará de pé, estamos dispostos a experimentar algo que ainda não tem nome.
Nessas horas, vale a lição de Maria Antonieta: aqueles que não percebem o fim de um mundo são destruídos com ele. Há momentos na história em que tudo parece acontecer de maneira muito acelerada.
Já temos sinais demais de que nosso presente caminha nessa direção. Nada pior do que continuar a agir como se nada de decisivo e novo estivesse acontecendo.

Hiroshima, meu amor - ARNALDO JABOR

Outro dia tentei ver o filme "Hiroshima, Meu Amor", de Alain Resnais, e não consegui; parei no meio porque as cenas documentais inseridas na história são insuportáveis mesmo para nossos olhos já acostumados a horrores.

Há 66 anos, em 6 e 9 de agosto de 1945, os norte-americanos destruíram Hiroshima e Nagasaki. Todo ano me repito e escrevo artigos parecidos sobre a bomba nessa data. Mataram 150 mil pessoas em minutos e repetiram o feito três dias depois. Escrevo sempre sobre esse fato histórico, sobre essa tragédia extra depois do Holocausto, não para condenar um dos maiores crimes da humanidade, mas para lembrar que o impensável pode acontecer a qualquer momento.
A situação no Oriente Médio, mesmo com a "Primavera Árabe" ainda meio ilusória, tende a um conflito entre os cada vez mais poderosos Irã e Israel, com o corrupto Paquistão atômico ao lado da Índia também atômica. Sem falar no chiqueiro da Coreia do Norte.

Ou seja, vivemos ainda na era inaugurada por Hiroshima.

Lá e em Nagasaki, inaugurou-se a "guerra preventiva" como chamamos hoje.

Enquanto o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século XX, o espetáculo luminoso de Hiroshima marca o início da guerra do século XXI. O horror se moderniza, mas não acaba.

Auschwitz e Treblinka ainda eram "fornos" da Revolução Industrial, eram massacres "fordistas", mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses do nazismo.

O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte "on delivery", "de pronta entrega", sem trens de gado humano, morte "clean", anglo-saxônica. A bomba norte-americana foi considerada uma "vitória da ciência".

Os nazistas matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "razão". Na luta pela democracia, rasparam da face da Terra os "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Truman em seu diário, "são animais cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como "shitakes"...

A bomba A agiu como um detergente, um mata-baratas. A guerra como "limpeza", o típico viés norte-americano de tudo resolver, rápida e implacavelmente...

A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a Monarquia. Diziam que Hitler estava perto de conseguir a bomba - o que é mentira.

Uma das razões reais era que o presidente e os "falcões" da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!...". O clima era lúdico e alucinado... tanto que o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto na fuselagem - "Enola Gay". Esse gesto de carinho derreteu no fogo 150 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio.

Os norte-americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria; além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de som, luz e fúria, uma superprodução a cores do novo Império.

O espantoso também é que o Holocausto sujou o nome da Alemanha (até hoje), mas Hiroshima soa como uma vitória tecnológica "inevitável". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a opinião pública celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e da Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na Quinta Avenida sobre os beijos de amor da vitória.
Naquele contexto, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.

Hoje, a época está de novo morta para palavras, insuficientes para deter ou mesmo descrever os fatos.

Agora, não temos mais a guerra fria; ficamos com a guerra quente do deserto - a mais perigosa combinação: fanatismo religioso e poder atômico. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a cruzada errada do Ocidente, apesar de Obama, que foi contra e hoje tem de resolver os crimes do Bush.

Do outro lado, temos os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte.

Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Estamos num momento histórico onde já se ouvem os trovões de uma tempestade que virá. Os mecanismos de controle pela "razão", sensatez, pelas "soft powers" da diplomacia, perdem a eficácia. Instala-se um progressivo irracionalismo num "choque de civilizações"; sim, sei do simplismo da análise do Huntington em 1993, mas estamos diante do simplismo da realidade, formando uma equação com mil incógnitas impossíveis de solucionar.
Como dar conta da alucinação islâmica religiosa com amor à morte do Paquistão, da Índia, de Israel, do Irã dominado por ratos nucleares em breve, da invencibilidade do Afeganistão, com a "hiper-direita" de Israel com Bibi, com o Hamas ou o Hezbollah que querem impedir o "perigo da paz"? E agora, com a súbita vitória dos "tea parties" na América e a porrada que deram no Obama?

"There is a shit-storm coming" - disse Norman Mailer uma vez.

A crença na razão ocidental foi ferida por dois desastres: o 11 de Setembro e a era Bush-Cheney, que pode renascer agora. A caixa de Pandora que Bush abriu nunca mais se fechará.

Sente-se no ar o desejo inconsciente por tragédias que pareçam uma "revelação". Historicamente, sempre que uma situação fica insolúvel, prosperam as ideias mais irracionais, mais boçais para "resolver" o problema. Mesmo uma catástrofe sangrenta parecerá uma "verdade" nova. Já imaginaram os "tea parties" no Poder?

domingo, 7 de agosto de 2011

Charge - Sponholz

MARCELO GLEISER - O bom, o mau e o feio

O desafio da globalização será reinventar nossa natureza tribal; queremos viver sem bandeiras?



Será que a globalização, essa força que anda redefinindo o mundo, melhorará ou piorará as coisas? De um lado, vemos o mundo encolher com maior acesso à internet e com o aumento da eficiência e velocidade dos transportes e da intensidade do comércio internacional. De outro, nosso tribalismo desconfia de culturas diferentes e reage negativamente a valores externos.
Há muito tempo futuristas preveem que o desenvolvimento tecnológico deixará o mundo cada vez mais homogêneo. Considere, por exemplo, o livro do físico Mikio Kaku "A Física do Futuro", continuação de outros semelhantes que ele escreveu.
Ele entrevistou 300 cientistas para criar uma visão utópica de um mundo definido pela ciência. Em 2100, diz, computadores inteligentes trabalharão com humanos, o acesso à internet será por lentes de contato e moveremos objetos com o pensamento; nanorrobôs destruirão células de câncer, a propulsão a laser redefinirá as viagens espaciais e colonizaremos Marte. Não haverá barreiras comerciais, e a mesma cultura e os mesmos alimentos serão divididos por todos. Essa homogeneização da sociedade acabará com as guerras.
Essas maravilhas tecnológicas são extrapolações do que já temos. Se alguém tivesse previsto que em 2010 teríamos laptops capazes de baixar remotamente gigabytes de informação ninguém acreditaria. O difícil é prever o inesperado.
Recentemente, o cientista político Pankaj Ghemawat, professor de estudos estratégicos da Universidade de Navarra, em Barcelona, Espanha, publicou um livro em que critica o excesso de otimismo com relação à globalização.
Segundo ele, valores que tendem a diluir barreiras culturais vão contra a nossa natureza tribal. O autor mostra que a maior parte de nossas relações permanece local: o correio internacional é apenas 1% do total, telefonemas internacionais são menos de 2% e tráfego internacional na internet representa entre 17% e 18% das informações da rede.
O fundamentalismo é uma reação à essa tendência homogeneizante. Quando valores externos ameaçam aqueles em que você e seus antepassados baseiam suas vidas, existem duas opções: ou você os absorve a um maior ou menor grau ou você se rebela e se fecha ainda mais, reagindo agressivamente à qualquer tipo de "intrusão".
Além de nossas famílias, nossa rede de interação social e cultural é baseada na aliança a certas tribos: Palmeiras ou Corinthians, brasileiro ou argentino, branco ou negro, católico ou muçulmano etc. A troca de ideias enriquece, mas a sua homogeneização empobrece.
Muitas das extrapolações tecnológicas que Kaku e outros descrevem estão chegando. Questões relativas a cultura e mercado são mais sutis. Não há dúvida de que barreiras comerciais continuarão a cair e que a globalização fará com que bens sejam acessíveis a um número cada vez maior de pessoas.
O desafio será reinventarmos nossa natureza tribal. Será que podemos (ou queremos) viver sem bandeiras? Se não aprendermos a respeitar as nossas diferenças, criando uma atmosfera de troca de informações e culturas, o sonho de um mundo melhor pode se transformar num pesadelo nada utópico.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

Olhos de cinema - HELVÉCIO RATTON

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Olhos de cinema

Santiago, 1971

HELVÉCIO RATTON

NUNCA ME ESQUECI daqueles olhos. Até hoje, muitos anos depois, ainda me provocam certo arrepio quando voltam à memória. Em 1971, eu morava em Santiago do Chile, tinha 21 anos e estava lá como exilado político. Havia deixado a escola de economia e trabalhava na Chile Films, estatal de cinema, na produção de um filme de época. Os estúdios da Chile Films ficavam na parte alta da cidade, aos pés da cordilheira. Como eu não morava muito longe, dava para voltar a pé. Embora o país vivesse um clima de confronto político, a cidade não era violenta e se podia caminhar com segurança por suas ruas.

Naquela noite, tive uma reunião que durou até mais tarde e devo ter saído dos estúdios por volta das 22h. Eu e um companheiro de equipe descemos juntos até certo ponto; depois, segui sozinho.
Já perto de minha casa, lembrando da geladeira vazia que me esperava, decidi entrar em um bar e comer alguma coisa. Sentei numa mesa, pedi um sanduíche e uma taça de vinho.

Enquanto esperava pelo sanduíche, comecei a folhear um livro de filosofia que trazia comigo. Não me lembro de que livro se tratava, mas seguramente era de um autor marxista. O sanduíche chegou, fechei o livro e comecei a comer. Foi quando um homem que estava na mesa ao lado, puxando conversa, perguntou-me se eu gostava de filosofia e se podia sentar-se comigo.

Bem-vestido, o sujeito devia ter uns 40 anos. Começou a falar de filosofia, citou livros e pensadores idealistas, demonstrando erudição. Naquela época, Santiago fervilhava politicamente: havia discussões ideológicas por toda parte, e eu adorava participar delas.

O cara falava em metafísica e daquilo que havia além da matéria. Eu, em contrapartida, me aferrava aos princípios do materialismo dialético para contradizer os argumentos dele.

Olhando aquele homem, o que chamava a atenção eram os olhos negros, inquisidores, emoldurados por sobrancelhas traçadas em ângulo reto. Tive a sensação de que eu os conhecia, que já os tinha visto em algum lugar. O tom da discussão foi crescendo e ficando exaltado. Num certo momento, o sujeito me encarou e fez um desafio: se eu não acreditava no que ele dizia, que o acompanhasse naquela noite. Ele iria me provar o que estava dizendo; eu veria coisas que jamais tinha visto. Àquela altura, eu já estava tomado pela discussão e decidi aceitar.

Enquanto esperávamos a conta, fiquei a observar meu interlocutor. Aqueles olhos... foi quando a ficha caiu. Eram iguaizinhos aos de um personagem de "O Bebê de Rosemary", do [Roman] Polanski, um dos filmes mais assustadores que já vi. Eram os mesmos olhos do chefe dos bruxos, do personagem Roman Castevet, vivido pelo ator Sidney Blackmer. O mesmo olhar agudo, penetrante.

Foi aí que me bateu medo. A coragem que eu tinha em defender meus princípios filosóficos e minha atitude de São Tomé, de ver pra crer, desapareceu num piscar daqueles olhos.

Aleguei que não sabia que estava tão tarde, que no dia seguinte começaria a trabalhar cedo, e fugi do desafio. Paguei minha conta e fui para casa, tocado por aquele estranho encontro.

Alguns dias depois, uma matéria de capa de um jornal chileno me chamou a atenção. Uma série de mortes violentas estavam sendo investigadas pela polícia. Suspeitava-se que estivessem ligadas a rituais de magia realizados em bairros ricos de Santiago.

Nunca soube se aquele homem tinha algo a ver com isso, mas a dúvida ficou para sempre. O encontro não abalou minhas convicções da época, mas, no fundo, o que prevaleceu foi o velho ditado espanhol: "Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay..."

Razão e bom humor - MÁRCIO SUZUKI

FILOSOFIA

Razão e bom humor

A pequena grande filosofia de David Hume






RESUMO
Nascido há 300 anos, Hume marcou a história da filosofia com seu ceticismo "mitigado", que questiona a superioridade da razão em relação ao instinto. Ao aliar serenidade e bom humor à investigação intelectual, concebeu a filosofia como atividade galante, que se vale da diversão e da imaginação livre para resolver problemas.

MÁRCIO SUZUKI
ilustração PAULO MONTEIRO

Ao Matinas

É PROVÁVEL QUE boa parte da atração que o leitor sente ao contato com os textos de David Hume (1711-76) ainda hoje, nos 300 anos de seu nascimento, se deva à saudável inquietação que provocam.
Enquanto Descartes (1596-1650) procura extirpar os "preconceitos da infância" à força de uma intensificação hiperbólica da dúvida, lançando mão de recursos retóricos e cênicos como o Gênio Maligno e o Deus enganador, Hume avança teses frontalmente contrárias ao senso comum sem alterar o tom, procurando evitar que o leitor reacenda no espírito suas prevenções costumeiras.

Será verdade que o instinto é mais importante para a vida que a razão? E que o raciocínio de causa e efeito não tem origem racional, mas é fruto de uma conjunção fortuita, a que apenas educação e hábito dão consistência?

Levar o leitor comum a se convencer da verdade de tais proposições supõe uma concepção peculiar do exercício filosófico e literário, que pode ser explicado como busca de um ajuste fino entre excentricidade e bom senso, cujo indicador se exprimiria por sinais de serenidade e bom humor. Quanto maior o destempero, maior o indício de que se perdeu a razão, ensinava Shaftesbury (1671-1713). Na mesma linha, Hume definiu sua filosofia como ceticismo temperado ou "mitigado", por oposição ao ceticismo excessivo ou de "cabeça quente".

OBRA O primeiro livro que Hume publicou, em 1739-40, o "Tratado da Natureza Humana" [trad. Déborah Danowski, Editora Unesp, 2000, 712 págs.], quase não teve repercussão. A obra era pesada demais, e seu fracasso levou, felizmente, o autor a repensar sua maneira de escrever.
Em 1742 saem os "Ensaios", bem mais acessíveis, nos quais mimetiza os artigos de Addison na revista "Spectator". Foram 17 reedições durante a vida de Hume; junto com a "História da Inglaterra", contribuíram para seu renome como escritor. Em 1748, ele publica a "Investigação sobre o Entendimento Humano" e, em 1751, a "Investigação sobre a Moral" [Editora Unesp, 2003, 438 págs.], a qual ele próprio considerava sua obra mais bem-acabada.

Reações eclesiásticas a esses escritos não se fizeram esperar. Por causa deles, Hume não foi aceito como professor na Universidade de Edimburgo e, posteriormente, na Universidade de Glasgow. Em 1756, sofreu um processo de excomunhão, sendo absolvido pela Assembleia Geral da Igreja da Escócia. Em 1757, publicou a "História Natural da Religião", e em 1779, três anos após sua morte, aparecem os "Diálogos sobre a Religião Natural" [trad. José O. A. Marques, Martins Fontes, 1992, 188 págs.].

GRANDEZA E BAIXEZA Apesar do sucesso como escritor, a imagem que provavelmente ficou de Hume no público britânico em geral é aquela que Samuel Johnson deixou dele: a de um "homem infiel, embora benevolente e bom".
Sabe-se hoje que a apreciação de Johnson sobre o filósofo escocês se deve menos a leituras de suas obras e ao pouco contato pessoal que teve com ele do que àquilo que lhe foi soprado por seu grande biógrafo, James Boswell. Seja como for, a disputa entre o grupo ligado a Johnson e o ligado a Hume foi decisiva para os rumos da vida filosófica, artística e literária na Grã-Bretanha.

Um exemplo, entre tantos outros: Edgar Wind escreveu um estudo admirável sobre a pintura britânica do século 18, "David Hume e o Retrato Heroico: Estudos sobre a Imagística no Século 18" [Oxford University Press, 146 págs.], no qual procura mostrar que as diferenças de estilo nos retratos dos dois maiores pintores do século 18 na Grã-Bretanha, Joshua Reynolds e Thomas Gainsborough, se devem a concepções filosóficas antagônicas a respeito da natureza humana.

A arte de Gainsborough representaria uma visão rebaixada do homem, sustentada no ceticismo humiano, que afirma que a razão humana é muito fraca se comparada ao instinto e, portanto, não muito superior à razão encontrada nos animais. Já a grandiosidade das figuras nos retratos de Reynolds se explicaria como reação a esse rebaixamento do homem e de sua razão. Reynolds teria buscado fazer jus a uma concepção "heroica" do homem, que ele partilhava com Johnson e com o filósofo James Beattie, adversário de Hume.

CRISTIANISMO Que a filosofia humiana tenha conseguido provocar reações contrárias de religiosos e do grupo próximo a Johnson é algo que dá o que pensar, já que a desconfiança em relação aos poderes da razão é um traço que aproxima o ceticismo do cristianismo. Hume teria apenas errado na dose, mas o fez, sem dúvida, com toda a consciência.

Ao final dos "Diálogos sobre a Religião Natural" há um texto em que a aproximação do cético e do crente é expressa de forma magistral: o indivíduo que tem justa noção das imperfeições da razão natural se voltará para a verdade revelada, ao contrário do dogmático arrogante, que imagina poder fundar a teologia sobre um sistema racional perfeito. No homem letrado, ser cético é, portanto, paradoxalmente passo indispensável para se tornar crédulo.

A interpretação do trecho é controversa. Muitos dizem se tratar de uma das (não poucas) ironias de Hume. Outros podem nela enxergar semelhanças com Pascal: a ciência é causa de orgulho e soberba. A insignificância do homem diante da imensidão do cosmo faz o cético se convencer de que, para o universo, "a vida de um homem não tem mais importância que a vida de uma ostra".

ALEMANHA Na Alemanha, a reação cristã ao ceticismo de Hume foi oposta. Lá, ele foi reconhecido como aliado estratégico por Hamann e Jacobi, que viram na crítica às provas da existência de Deus uma defesa importante dos milagres e da revelação, contra a voga das teologias racionalistas surgidas com o Iluminismo.

Hamann e Jacobi fizeram uma interpretação original da noção humiana de crença. O escocês afirma que, assim como não há raciocínio que demonstre a existência dos objetos externos, e que tudo o que fazemos é crer imediatamente naquilo que os sentidos nos apresentam, também não há raciocínio que possa provar a existência divina. Os dois filósofos alemães assimilaram os termos "crença" (belief) e "fé" (faith). Tudo passa pela fé ou pelo sentimento.

Em "David Hume ou sobre a Crença" (1787), Jacobi sustenta que a religiosidade não vem da adesão racional, mas de um sentimento íntimo, que leva à conversão por um "salto mortal".
Essas ideias tiveram sua importância para a crítica da filosofia racional em Kierkegaard (1813-55) e, por tabela, para os primórdios do existencialismo francês, dos quais Hume pode ser considerado um precursor (sobre esse estranho percurso, veja-se o estudo de Isaiah Berlin "Hume e as Fontes do Irracionalismo Alemão", que faz parte do livro "Against the Current. Essays in the History of Ideas", Princeton University Press, 2001.)

KANT Hamann e Jacobi eram bem próximos de Kant (1724-1804), ele também bastante influenciado pela obra do escocês, a ponto de afirmar que foi Hume quem o despertou do "sono dogmático". Kant investiu anos de vida tentando mostrar que o raciocínio de causa e efeito não é fruto de repetição e hábito. O seu esforço é explicável: diferentemente de Hamann e Jacobi, Kant não se enganou sobre as reais intenções de Hume.

Embora a própria ideia de crítica da razão tenha no ceticismo humiano uma de suas mais fortes inspirações, era preciso lhe responder à altura, mostrando que entendimento e razão não são tão impotentes assim como ele queria fazer crer.

Até hoje corre muita tinta para saber quem, Hume ou Kant, venceu a controvérsia (a causalidade é um hábito originado na experiência ou um conceito "a priori" do entendimento?), que sobrevive em posições epistemológicas bem distintas, uma mais afeita a uma concepção racional do conhecimento, outra ao utilitarismo, ao positivismo lógico e ao pragmatismo.

FILOSOFIA GALANTE Mas hoje também se sabe que os pontos de contato entre Hume e Kant não se restringem ao plano cognitivo, com suas implicações teológicas. Como muitos em seu século, o "Hume Prussiano" (como o chamou Hamann) se impressionou igualmente com a proposta de que a filosofia deveria ser concebida como um diálogo entre o homem galante e a lady sensível, ou como uma aliança entre o mundo acadêmico e o mundo dos salões.

Segundo essa concepção, o "gentleman" em sentido filosófico é alguém que não deve apenas subir aos grandes temas da metafísica, da moral e da política mas também descer às questões menores, que tocam diretamente a vida individual e social, como casamento, divórcio, comércio, avareza, amor, suicídio etc.

Ele se ocupa de problemas aparentemente banais e sabe falar sobre eles de maneira simples e refinada, gesto de gentileza e respeito para com o interlocutor e leitor. Para isso, precisa ter apuro na arte do ensaio, do epistolário e da conversa, formas que melhor captam e transmitem a vivacidade própria aos sentimentos e às relações entre os indivíduos. O leitor pode ter uma boa ideia dessa maneira de proceder no recém-lançado "A Arte de Escrever Ensaio e Outros Ensaios" [sel. Pedro Pimenta, trad. Márcio Suzuki e Pedro Pimenta, Iluminuras, 336 págs.]

Como um bom gourmet que sabe notar a presença de um condimento ou tanino determinando o sabor de um prato ou de um vinho, o filósofo deve ser capaz de sentir pequenas circunstâncias relevantes para a compreensão de um acontecimento e ter gosto refinado para poder avaliar a obra de arte mais complexa como o mais tarimbado dos críticos. A questão é discutida no "Un Bicchiere con Hume e Kant - 'Divertissement' Estetico-Metafisico (um trago com Hume e Kant, 'divertissement' estético-metafísico) [ETS, 164 págs., R$ 28]. Mas também precisa ter largueza de espírito para compreender por que uns julgam de maneira diferente dos outros (o que tem óbvia implicação para a compreensão e a aceitação das diferenças em política).

Essa atitude diante da diferença permite a Hume fazer observações deliciosas sobre os motivos por que alguém se apaixona por coisas que os outros consideram estapafúrdias ou irrisórias. Como os objetos e os fatos não existem fora da mente que os representa, só a imaginação em conjunto com a paixão pode lhes atribuir valor e significado.

O apego às ocupações, diversões e passatempos se explica da mesma maneira. Trabalho, entretenimento, jogos começam inocentemente, mas a paixão por eles cresce e pode aos poucos tomar conta do indivíduo. Eles não são viciosos ou ruinosos em si mesmos (nem os jogos de azar o são) e só se tornam tais se praticados de maneira excessiva.

MIRAGENS Mesmo a mais trivial das ocupações tem valor para o indivíduo que nela se aplica -valor que está menos naquilo que se busca do que na própria atividade.

O dinheiro cobiçado na mesa de jogo, o javali freneticamente disputado numa caçada são apenas miragens que a natureza institui para nos impelir à atividade. Indivíduos mais excêntricos correm atrás de outros tipos de recompensa, como o imperador Domiciano (51-96 d.C.), para quem o troféu dos seus esforços eram as moscas que pegava.

Impossível demonstrar mediante argumentos, para quem gosta de sinuca, que o golfe é um esporte mais nobre, assim como, para o fã de música techno, que é melhor ouvir música clássica. A opção é só aparentemente irracional, pois se explica por um mecanismo natural, ligado ao instinto de conservação e prazer e ao temperamento de cada um.

Assim, tão importante quanto o refinamento do gosto e dos costumes é a atenção para as diferenças de sensibilidade e temperamento. Tal respeito pela diversidade explica por que Hume acertou bem mais do que Samuel Johnson no que se refere ao "Tristram Shandy" de Laurence Sterne (trad. José Paulo Paes, Companhia das Letras), romance inteiramente avesso ao gosto clássico de ambos. Em carta a William Strahan, de 1773, Hume diz que, nos últimos 30 anos, o melhor livro escrito por um "englishman" era o de Sterne -"por pior que ele seja" ("as bad as it is").

HOBBY Alguns autores já observaram a afinidade do pensamento humiano com o do autor do "Tristram Shandy", aproximação pertinente, especialmente pelo olho que os dois têm para a atitude excêntrica. Essa aproximação, aliás, também já foi feita por Kant, na definição perspicaz que propõe para hobby, que diz: hobby é "a mais leve de todas as transgressões dos limites do bom senso", é "como um ócio atarefado, uma paixão em se entreter cuidadosamente com objetos da imaginação, com os quais o entendimento simplesmente brinca por distração, como se fosse um negócio". ("Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático", ed. Iluminuras).

E Kant comenta: só os sabichões, com sua "seriedade pedante", censuram o hobby, essa cavalgada num "cavalinho de pau" (tradução literal de "hobbyhorse"), e eles merecem a censura que Sterne lhes faz no livro I, capítulo 7, do "Tristram Shandy", no qual o narrador diz que cada um pode subir e descer como quiser a estrada real no seu cavalinho de pau, desde que não obrigue ninguém a se sentar na garupa.
Noutro lugar, mas no mesmo contexto, Kant dirá: "Porque cada um tem sua dose de doidice, é preciso que tenha paciência com as doidices dos outros".

Gosto e hobby não se discutem. A explicação que Kant dá sobre o hobby se vale dos princípios humianos e está próxima do jogo entre imaginação e entendimento encontrado na atividade estética e no gênio (onde também o fim que se busca não é exterior à atividade). Contrapondo-se claramente a Pascal, para quem a busca de diversão só poderia redundar em tédio, Hume ensinou que se distrair e divertir, além do valor terapêutico intrínseco ("ocupar a mente"), tem também um valor heurístico.
No final da "Investigação sobre o Entendimento Humano", há uma passagem conhecida, na qual ele afirma que, de tanto matutar um problema, o filósofo será acometido de melancolia e delírio, só curados não pela filosofia, mas pela natureza, muito mais sábia, que faz a mente buscar um relaxamento de seu esforço em entretenimentos como jogar gamão, jantar e conversar com os amigos.

Kant percebeu aonde ia dar o argumento: depois de algumas horas de diversão, o filósofo poderá voltar revigorado às suas lucubrações. Sua imaginação já não estará presa à ideia fixa que a impede de avançar na resolução de um problema. Descoberta e invenção dependem da mudança de atividade, fundamental para repor a imaginação em seu livre jogo.

IDIOSSINCRASIAS O filósofo galante sabe compreender o que há de fundamental nas idiossincrasias dos outros e também brincar com as próprias. É o que Hume faz com sua entrega um tanto intemperada aos prazeres da mesa.

Mas o principal é que a singularidade deve ser respeitada, porque, se não é prova, pode ao menos ser sinal do novo. Como afirma o ensaio sobre "O Comércio", os pensadores "abstrusos" são mais interessantes do que os superficiais, porque "indicam caminhos" e "apontam dificuldades" que podem levar a "finas descobertas" de pensadores "mais ajuizados".

Para a filosofia séria, "profissional", há uma consequência bastante incômoda a tirar de todas essas ideias. É que, se toda ocupação é importante, não havendo razões para dizer que uma seja superior à outra, a conclusão também é válida para o sublime amor ao saber. Comparar a meditação filosófica a um passatempo frívolo qualquer parece, assim, perturbar muito mais do que todos os argumentos céticos ou cristãos sobre a fraqueza de nossa razão.

A lição de David Hume talvez resida nessa combinação de excentricidade e modéstia: o máximo que o exercício filosófico pode almejar são pequenas descobertas -ou, parafraseando Kant, transgressões judiciosas dos limites do bom senso.

Hume definiu sua filosofia como ceticismo temperado ou "mitigado", por oposição ao ceticismo excessivo ou de "cabeça quente"

Apesar do sucesso como escritor, a imagem que ficou de Hume no público britânico é a de um "homem infiel, embora benevolente e bom"

Kant se impressionou com a proposta de que a filosofia deveria ser concebida como um diálogo entre o homem galante e a lady sensível

Contrapondo-se a Pascal, Hume ensinou que se distrair e divertir, além do valor terapêutico ("ocupar a mente"), tem também um valor heurístico

Quadrinhos belgas surgem como nova fonte de Hollywood

Em cartaz no Brasil, "Os Smurfs" terá sequência em 2013; "Tintim" de Spielberg é primeiro de uma trilogia

Nos EUA, aventura urbana em 3D das criaturas azuis ofuscou estreia de adaptação de HQ norte-americana


FERNANDA EZABELLA
ENVIADA ESPECIAL A CANCÚN, MÉXICO

Não foi à toa que Harrison Ford arrancou a cabeça do Papai Smurf num programa de TV nesta semana.
O ator é estrela da mais nova adaptação dos quadrinhos americanos para os cinemas, "Cowboys & Aliens", que passou vergonha nas bilheterias durante sua estreia, quase perdendo para o bando de criaturas azuis do tamanho de duas maçãs.
"Os Smurfs", que chegou aos cinemas do Brasil, é uma das principais animações do ano, assim como "As Aventuras de Tintim", a ser lançada em dezembro nos EUA.
Têm em comum o fato de ambas serem baseadas em gibis belgas, dos artistas Peyo (1928-1992) e Hergé (1907-1983), respectivamente, uma brisa europeia numa Hollywood dominada por Marvel e DC Comics.
Para alguns especialistas, isto não é mera coincidência.
"Hollywood já tirou todo o leite de seus próprios quadrinhos e super-heróis", diz o roteirista e crítico cultural belga Chris Craps. "Mas o público ainda continua grande para os filmes inspirados em HQs. Os produtores querem atravessar fronteiras para ver outras fontes de inspiração."
A versão cinematográfica dos Smurfs, famosos deste lado do oceano pelo desenho animado do estúdio americano Hanna-Barbera, é em 3D -e bem urbana.
Em vez da floresta com casinhas em forma de cogumelos, a caótica Nova York. O vilão Gargamel é interpretado por um ator de verdade, Hank Azaria, num elenco que conta ainda com Neil Patrick Harris e Sofia Vergara.
"Colocá-los na cidade, fora de seu ambiente, vai fazer com que as pessoas vejam Nova York como nunca viram antes", diz o diretor Raja Gosnell. "Quando os Smurfs chegam a Nova York, é como chegar à Cidade Esmeralda, de 'O Mágico de Oz'."
Já para fazer "Tintim", o diretor Steven Spielberg e o produtor Peter Jackson vêm repetindo que buscam ser os mais fiéis possíveis às histórias de Hergé.
"Quando estávamos fazendo o filme, tentamos manter todas as camadas que Hergé colocava em suas histórias", disse Peter Jackson, citando as ironias do protagonista, os comentários sociais e mesmo as influências dos filmes de ação de Hollywood. "Realmente não tentamos fazer nada de diferente do que estava nos livros."
Kathy Kennedy, produtora do filme, que trabalha desde 1981 com Spielberg, afirmou que a maior preocupação da família Hergé residia no fato de a equipe do filme ser americana. "Há nuances do humor, do estilo, e tudo era importante. Tivemos que ser educados."
"Tintim", que estreia no Brasil em janeiro, será uma trilogia, enquanto "Os Smurfs" deve ganhar uma sequência em 2013.

A jornalista FERNANDA EZABELLA viajou a Cancún a convite da Sony Pictures

LIVRO AZUL
FRANCÊS DIZ QUE SMURFS SÃO FASCISTAS

Antoine Buéno lançou na França "O Pequeno Livro Azul", que analisa politicamente a sociedade dos Smurfs. Atualiza teorias conspiratórias sobre as criaturas terem tendências stalinistas por serem comandadas por um líder, Papai Smurf, e antissemitas, por terem só uma mulher na vila, a Smurfete, loira ariana idealizada.