segunda-feira, 18 de julho de 2011

O cinema passional de Almodóvar

Em 30 de abril de 2004, publique esse artigo sobre o cineasta Pedro Almodóvar no Jornal da Cidade (Aracaju)

O cinema passional de Almodóvar

(*) Murilo da Silva Navarro

O cinema espanhol produziu importantes obras cinematográficas e legou ao mundo alguns grandes cineastas como Luis Buñuel ( o maior de todos ), Juan Antonio Bardem, Carlos Saura, e recentemente os diretores Bigas Luna e o mais completo dessa geração, Pedro Almodóvar. Nascido em Calzada de Calatrava (Espanha), em 25 de setembro de 1951, o cineasta Pedro Almodóvar transferiu-se com a família para a cidade de Cáceres quando tinha oito anos de idade. O período em que ele passou estudando em colégios religiosos contribuiu decisivamente para ele mudar de opinião sobre a Igreja Católica.

Ao completar 16 anos, foi para Madri sozinho, sem família e dinheiro, porém com uma meta específica: estudar cinema e fazer filmes. Como era impossível se matricular na escola de cinema, pois o ditador Franco tinha acabado de fechá-la, decidiu aprender a substância, vivendo-a pela experiência. Era o fim dos anos 60 e, apesar da ditadura, para um adolescente provinciano a cidade de Madri era a capital da contra-cultura.

Teve vários empregos temporários, mas só pôde comprar sua primeira câmera super-8, quando conseguiu um trabalho na Companhia telefônica em 1973, onde trabalhou por 12 anos como auxiliar administrativo. Esses foram os anos de sua verdadeira formação. Pelo dia trabalhava em contato com uma classe social que, de outra forma, não conheceria tão bem: a classe média espanhola no período da queda do regime de Franco. Conheceu os dramas e infortúnios da classe média e descobriu uma verdadeira mina de ouro em tipos esquisitos e personagens fascinantes. À noite, escrevia, amava e atuava no teatro com o grupo Los Goliardos (quando conheceu a atriz Carmen Maura)

Entre 1974 e 78, fez onze curtas em super 8, sempre contando com o apoio dos amigos. Dos Putas, o Historia de Amor que Termina en Boda (74), La Caída de Sodoma (75) e Folle ...Folle... Fólleme Tim (78) são exemplos de curtas rodados por ele e que fizeram sucesso na cena underground espanhola. Com a ajuda de Carmem Maura e Félix Rotateta, realiza seu primeiro longa-metragem Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón(1980), rodado inicialmente em 16 mm e mais tarde convertido em 35 mm. O filme tornou-se sucesso de público e o transformou em um novo ícone da Movida Madrileña (a efervescência cultural que tomou conta de Madri no fim da ditadura de Franco).

Seguiram-se o inusitado Labirinto de Paixões (82), o blasfêmico e surreal Maus Hábitos(83), a tragicomédia inspirada na classe média madrileña ¿Qué He Hecho Yo Para Merecer Esto?(84), o universo das touradas envolto em mortes e sensualidade no belíssimo Matador (86). Durante as filmagens de Matador, Almodóvar criou juntamente com seu irmão Agustín a produtora El Deseo S. A. e passou a produzir seus próximos filmes. A primeira produção da El Deseo S. A. é o filme mais ousado, radical e pessoal de Almodóvar, A Lei do Desejo de 1987.

Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (88) foi o primeiro sucesso mundial de Almodóvar e o ajudou a consolidar as características que seriam eternamente associadas ao diretor. Então, restrito a festivais de cinéfilos inveterados, o cineasta espanhol invadiu as salas mais comerciais e recebeu até uma indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1989. O filme apresenta um Almodóvar kitsch, coloridíssimo, hilário, exagerado, escrachado e ácido. As muitas referências almodovarianas vão das comédias cínicas de Billy Wilder aos melodramas de Douglas Sirk, passando pelas comédias malucas dos Irmãos Marx e as emoções baratas das fotonovelas italianas.

Para ele, as mulheres de seus filmes são fascinantes “porque perderam todo o pudor e a auto-estima”. No centro desse imbroglio feminino está um homem, o fútil e infiel ator de TV Ivan. À sua volta, a ex-esposa Lucia, internada num hospício; a amante Pepa, atriz e dubladora que tenta se matar; a nova namorada Paulina; o filho de Ivan, Carlos e sua namorada virgem e insatisfeita Marisa. Completando o leque de personagens do filme estão Candela (amiga de Pepa e namorada de um terrorista xiita), dois policias e um funcionário da companhia telefônica. Uma série de coincidências e mal-entendidos vai reunir essa fauna toda no coloridíssimo apartamento de Pepa. Essa esfuziante confusão, regada a boleros antigos, narrada em ritmo frenético e vagamente inspirada na peça A Voz Humana, de Jean Cocteau, ganhou o prêmio de melhor roteiro do Festival de Veneza de 89 e tornou-se o filme espanhol de maior sucesso de todos os tempos. O filme marca também o rompimento da amizade e colaboração entre Carmen Maura e Pedro Almodóvar.

O universo passional das cores berrantes, figurinos extravagantes, personagens caricatos, situações delirantes e exageradas dos primeiros trabalhos foram aprimorados em Ata-me!(90), De Salto Alto (91) e Kika(93). Entre os três filmes uma pessoa em comum, a excelente atriz Victoria Abril, que está perfeita nos papéis de Rebecca em De Salto Alto e da repórter sensacionalista Andréa Caracortada em Kika.

A Flor do Meu Segredo (95) marca uma mudança de direção na filmografia de Almodóvar. Os excessos e extravagâncias começam a dar lugar ao equilíbrio emocional e ao refinamento técnico. As comédias rasgadas, coloridas e sensuais são gradativamente substituídas pelo melodrama. Algumas evidências disso redirecionamento são óbvias: a crescente autonomia formal em relação a seus modelos originais, a deliciosa conquista da confiante serenidade de seu estilo, a magistral modulação dos ritmos de sua narrativa num movimento que equilibra perfeitamente o riso e o choro. Esse amadurecimento é aperfeiçoado em Carne Trêmula de 1997, filme em que os personagens escondem essencialmente os sacrifícios que quatro pessoas fazem por amor: um homem fica paraplégico, uma bela mulher se torna sua guardiã, o rapaz que a ama passa quatro anos na prisão e a mulher que ama o rapaz sacrifica sua vida.

Em Tudo sobre minha Mãe (99), Almodóvar atinge a maturidade e a perfeição. Ganha o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, ao contar a história de uma mulher de meia-idade (a argentina Cecilia Roth) que, depois da trágica morte do filho, viaja de Madri a Barcelona em busca do pai do rapaz. Na trama saborosa cabem travetis, freiras grávidas e atrizes drogadas. Após o sucesso arrebatador de público e crítica, Almodóvar lança em 2002, o filme Fale com Ela e confirma o momento inspirado de sua carreira. Mesmo retomando várias de suas obsessões, o diretor surpreende e parece se deixar surpreender. Mestre na arte de transformar o absurdo em algo perfeitamente plausível, Pedro Almodóvar conta desta vez a história de amizade e cumplicidade entre dois homens apaixonados por mulheres em estado de coma.

Fale com Ela é o mais poético e triste de todos os seus filmes, mais ainda do que Tudo Sobre Minha Mãe, e é bem provável que não exista uma obra na história recente do cinema que tenha apresentado visão tão complexa e plural do amor. O filme mostra o quanto Almodóvar amadureceu, mostrando-se cada vez mais coerente consigo mesmo e com o mundo à sua volta.

O trabalho mais recente de Almodóvar, La Mala Educación(2003), é estrelado pelo ator mexicano Gael Garcia Bernal, de O Crime do Padre Amaro e o jovem Che Guevara da produção americana Diários de Motocicleta, do diretor brasileiro Walter Salles. Em plena forma, Almodóvar narra uma história que trata de relações homossexuais entre estudantes de um colégio católico e o assédio desses meninos pelos padres. La Mala Educación abrirá o Festival de Cannes deste ano e tem estréia prevista para o Brasil a partir de setembro.

Se tentássemos explicar a poesia e o humanismo exibidos em seus últimos filmes, poderíamos dizer que Almodóvar é um tradutor bizarro da alma humana, que provoca diversão e até choro no meio de uma gargalhada.

(*) Mestre em Física pela Universidade Federal de Sergipe e Cinéfilo

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