domingo, 10 de julho de 2011

Ideologia da Corrupção - Daniel Piza

A presidente Dilma Rousseff poderia decretar que não se use mais a expressão "escândalo de corrupção". Afinal, os casos de corrupção, como agora o do Ministério dos Transportes, do qual um dos servidores está construindo casa de R$ 4 milhões em Brasília, não causam mais escândalo. A tal ponto que o próprio ministro Alfredo Nascimento, que não foi demitido por Dilma, mas foi obrigado a se demitir em função das matérias publicadas pela imprensa, seguiu articulando sua sucessão e dirigindo seu partido, o PR. No Brasil não apenas vigora a impunidade, mas também um prêmio de consolo para os que deveriam ser punidos. Delúbio não voltou ao PT? E alguém acredita que Palocci parou de fazer as consultorias mal explicadas que o tiraram do poder? Estamos vendo surgir, como efeito, uma espécie de ideologia da corrupção.

Algumas pessoas, principalmente petistas que chegaram a ensaiar decepção com seu partido depois do mensalão e mais tarde rearranjaram sua "consciência" com desculpas de todos os tipos (o ser humano pode até reconhecer um erro, mas logo depois descola um "mas" para aplacar sua culpa), dizem que ficar indignado com esses casos de corrupção é coisa pequeno-burguesa, udenista, moralista. Não é. Pequeno-burguesa é a mentalidade segundo a qual "corrupção existe em todo lugar", como se a arte da impunidade no Brasil não fosse única. E não é preciso ler Sérgio Buarque de Holanda ou Octavio Paz para ver que esse tratamento da coisa pública é uma herança histórica, de um passado sem o liberalismo iluminista, e um sinal da força da cultura oligárquica entre nós.

Outras pessoas, em geral as que enriqueceram como nunca nos anos FHC e Lula, nesses tais anos de "estabilidade", apontam dois cenários para diminuir a importância da questão do sistema político e sua corrupção. Um é o que se poderia chamar de "italiano": se no país de Berlusconi a classe política também é uma porca miséria e a economia é a de uma sociedade desenvolvida, por que não poderia acontecer o mesmo no Brasil? Primeiro, esquecem os séculos de guerras e revoluções necessárias para esse desenvolvimento, além de operações contemporâneas como a Mãos Limpas (da qual o Brasil tanto precisaria, se não fizesse pouco caso da Justiça italiana); segundo, há um custo evidente em tudo isso, tanto que o país perde força na já fraca economia europeia.

O outro cenário é que se poderia chamar de "chinês": lá só existe um partido, que comanda com rigor a vida econômica, e o país cresce a taxas três ou quatro vezes maiores que a brasileira. Esse argumento é ainda mais tosco, porque parece flertar com o fim da democracia multipartidária, embora a quantidade de partidos fortes no Brasil seja um problema real. E mais importante: se queremos mirar no exemplo chinês, temos de atirar com muito mais potência e precisão. Por exemplo: embora seja um Estado dirigista, ele subtrai da sociedade a metade dos impostos que o Estado brasileiro subtrai da nossa sociedade, proporcionalmente. Por sinal, as três maiores economias do mundo (EUA, China e Japão) têm carga tributária inferior à brasileira.

Há muitas coisas no exemplo da China que seriam muito mais inspiradoras. Embora tenha uma população mais de seis vezes maior que a do Brasil, eles conseguem que 80% dos jovens estejam no ensino médio, um ensino que é muito mais exigente e eficiente do que o daqui, seja na matemática, seja nas artes - e aqui a metade dos alunos fica entalada no gargalo do ensino médio. A China também investe pesado em ciência e tecnologia, como vi pessoalmente em locais como Chengdu, espécie de Vale do Silício chinês, onde a velha imagem da indústria que só copia e maquia começa ser desfeita. No Brasil, faltam engenheiros e técnicos em geral e o investimento em pesquisa mal passa de 1% do PIB. E quem é o ministro? Aloizio Mercadante, cuja qualificação para a área é desconhecida; que é outro que ganhou consolação pelo caso dos aloprados.

Enquanto isso, na adequada expressão do Financial Times, a economia brasileira se torna uma "bicicleta difícil de pedalar". A valorização do real multiplicou as importações, e o déficit externo só não explodiu porque as commodities seguiram em alta. Os cidadãos estão cada vez mais endividados (mais de 40% da massa salarial) e inadimplentes (aumento de 8% no mês de maio), mas o governo não consegue conter o crédito e o consumo, ao passo que os investimentos não conseguem nem chegar a 20% do PIB. Os juros vão ter de subir para segurar a inflação, o que por sua vez atrai mais capital externo e derruba mais o dólar. O governo aumenta as reservas financeiras para mostrar ao mercado que é solvente, mas a economia real patina em ritmo medíocre. A produtividade, que depende tanto de educação e tecnologia, não avança quase nada. E as obras da Copa deslizam num mar de lama ainda por medir.

Mais do que desviar dinheiro do contribuinte para bolsos particulares, a corrupção é um sintoma desse modo de governar à brasileira, no qual o Estado é uma bolha de privilégios - da imunidade parlamentar ao sistema jurídico, dos fundos de pensão aos aportes do BNDES - e a sociedade paga preço cada vez mais alto para mantê-la. A questão ética, no entanto, existe por si só. O escritor Machado de Assis foi funcionário de alto escalão do Ministério dos Transportes, então chamado "da Viação", até sua morte em 1908, e sempre se comportou na carreira com o máximo de lisura e espírito público. Hoje temos um Alfredo Nascimento e sua patota "republicana". Não há crescimento do PIB que justifique essa decadência de caráter.

Rodapé. Confesso que não entendi muito as intenções de Vargas Llosa em O Sonho do Celta, livro publicado no ano em que ganhou o merecido Nobel, 2010, e agora no Brasil pela Alfaguara. Sim, o personagem é muito fascinante e tem relação com vários temas de Llosa, como a liberdade individual contra a opressão política, a questão do colonialismo, etc. Mas eu, como todo admirador exaltado de Joseph Conrad, li vários textos sobre Casement, cujos relatos das atrocidades no Congo belga foram importantes para O Coração das Trevas, e em especial apreciei a biografia de Brian Inglis (Penguin, 2002).

Os resenhistas brasileiros, claro, descobriram agora a figura de Casement - que esteve a serviço do Império Britânico inclusive na Amazônia, e seus diários da viagem acabam de ser publicados nos EUA -, mas o que se esperava de Llosa era algo que fosse além da biografia, e não apenas uma biografia com toques de romance, onde mais de 90% das informações são factuais. O estilo, claro, tem a enorme habilidade de sempre, mas compare com o que ele fez com Paul Gauguin em O Paraíso na Outra Esquina. O Sonho do Celta não sonha.

Uma lágrima. A morte de Cy Twombly, ocorrida na terça-feira, fica mais triste quando se pensa como a pintura anda fraca, salvo por poucos nomes (Freud, Kiefer, Tuymans). Há uma fase dele, a dos "garranchos" que parecem desenhos infantis em lousa, que não me agrada, mas depois que se mudou para a Itália, nos anos 60, e começou a se inspirar em histórias mitológicas (Hero e Leandro, Leda e o cisne, etc.), sua pintura ganhou força, sensualidade, profundidade, apesar da superfície beirando o caótico, de tão gestual. Telas grandes como Blooming, a Scattering of Blossoms and Other Things a minha preferida, a série das Quatro Estações, que vi em Nova York, compensam tudo que ele fez na juventude. De pessoas verdadeiramente talentosas, o que nos cabe é sempre lembrar os momentos únicos, inconfundíveis, e o "Ciclone" deixou muitos deles.

Cadernos do cinema. São duas horas e meia de barulho ininterrupto, com efeitos especiais encadeados em cenas de menos de dez segundos cada uma, com apenas algumas pausas para delinear as muitas curvas de Rosie Huntington-Whiteley. O ritmo entontecedor de Transformers 3, nesta era que o 3-D ainda parece ter valor em si mesmo para os engenheiros da indústria, não é o maior problema, nem a perda de Megan Fox; o maior problema é que a história perdeu o humor dos episódios anteriores, ganhando até ares de pretensão ideológica ao situar o início de tudo entre a corrida espacial contra os russos e o acidente de Chernobyl. Não por acaso o único momento que sugere um mínimo de leveza, ainda que não de tranquilidade, é o do voo com aqueles macacões estilo morcego.

Carros 2, da Pixar, também é uma sequência inferior. Num registro bem mais infantil, sua graça estava na história de um carro de corrida famoso que aprende simplicidade ao parar numa cidadezinha abandonada pelo traçado das autoestradas. Agora é Matt, o guincho caipira, que vai para as maiores metrópoles do mundo para voltar a ensinar o valor da amizade a McQueen, em meio a uma trama de espiões ingleses e vilões nazistas. Menos, gente, menos.

Por que não me ufano. Por falar em carros, o trânsito de São Paulo ainda merece uma mitologia ao modo de Roland Barthes. Mas reduzir a velocidade máxima em avenidas planas e largas a 60 km/h para derrubar as estatísticas de acidentes e atropelamentos, sem mexer na geometria das pistas e na engenharia de tráfego, é mais uma "janistada" do prefeito Gilberto Kassab, que daqui a pouco vai querer tirar a quinta marcha dos câmbios. Circule em qualquer grande cidade do mundo, verifique os limites em avenidas equivalentes e por fim compare os números de acidentes. Lá os limites são maiores e os acidentes menores, pois o que importa é organização, sinalização e fiscalização decente.

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