sexta-feira, 29 de julho de 2011

RUY CASTRO - Beiço no mundo

RIO DE JANEIRO - A velha Hollywood (1915-1965) nos ensinou que tudo nos EUA era maior, melhor, mais limpo, justo, ético, honesto, adulto, moderno, eficiente e perfeito do que nos outros países. Também pudera -os americanos eram o povo mais bonito, forte, corajoso, engenhoso e talentoso do mundo. Onde mais as pessoas saíam cantando e dançando pelas ruas com naturalidade e ao som de uma enorme orquestra invisível?
E quem cavalgava melhor e tinha os cavalos mais velozes? O cowboy americano. Não havia índio ou mexicano que o capturasse, exceto à traição, coisa que, aliás, eles viviam fazendo (e de que o cowboy americano era incapaz). O mesmo se aplicava ao soldado americano em relação aos alemães e japoneses -quem era o mais heroico, o mais desprendido, o mais inteligente? E a Marinha americana? Quem tinha porta-aviões mais imponentes? Quem usava camisas de manga curta mais brancas? E quem mais tinha milhares de marinheiros que sabiam sapatear?
Nos filmes, víamos maravilhas que faziam parte do dia a dia dos americanos e de ninguém mais: cerveja em lata, barbeadores elétricos, cortadores de grama, trevos rodoviários (filmados de avião), edifícios de 90 andares e naves que iam à Lua e voltavam. E quem seria mais poderoso que o governo dos EUA, capaz de movimentar estruturas gigantescas para plantar um exército inteiro em território inimigo a 15 mil km e resgatar um espião a minutos de ser descoberto?
Todas essas eram benesses do poder e da riqueza. De repente, fico sabendo que o dinheiro no caixa do Tesouro americano vai acabar na terça-feira e que a Casa Branca, com uma dívida de US$ 14,3 trilhões, ameaça dar o beiço no mundo.
Inacreditável. Como pode o governo americano quebrar? Se acontecer, quem vai pagar a conta da lavanderia que mantinha as camisas tão brancas?

terça-feira, 26 de julho de 2011

Charge - Paixão

Justiça, corrupção e impunidade - Marco Antonio Villa

Não há quem não fique indignado com as constantes denúncias de corrupção em todas as esferas do Executivo e do Legislativo. A cada mês ficamos horrorizados com o descaso e o desperdício de milhões de reais. Como não é possível ao cidadão acompanhar o desenrolar de um processo (e são tantos!), logo tudo cai no esquecimento e não ficamos sabendo da decisão final (isto quando o processo não é anulado e retorna à estaca zero). O denunciado sempre consegue encontrar alguma brecha legal e acaba sendo inocentado. E isto se repete a cada ano. Não há indignação que resista a tanta impunidade.

E aí é que mora o problema central do Brasil. Não é possível dizer que as instituições democrática estão consolidadas com tantos casos de corrupção e o péssimo funcionamento dos três poderes. Agir como Poliana é jogar água no moinho daqueles que desprezam a democracia. E sabemos que temos uma tradição autoritária.

Apesar dos pesares, o Executivo e o Legislativo são transparentes, recebem uma cobertura jornalística que devassa os escândalos. Os acusados se transformam, em um período limitado, em inimigos públicos. Viram motivo de chacotas. Nada de efetivo acontece, é verdade. Porém, o momento de catarse coletiva ocorre. E o Judiciário? Age para cumprir a sua função precípua? Recebe cobertura paulatina da imprensa? Ou insinua usar o seu poder para que não sejam lançadas luzes - com o perdão da redundância - sobre o seu poder?

É no Judiciário que está o cerne da questão. Caso cumprisse o disposto na Constituição e na legislação ordinária, certamente não assistiríamos a este triste espetáculo da impunidade. Pela sua omissão virou o poder da injustiça. É, dos três poderes, o mais importante. E tem a tarefa mais difícil, a de resolver todo santo dia a aplicação da justiça.

O Supremo Tribunal Federal, por ser a instância máxima da Justiça, deveria dar o exemplo. Mas não é o que ocorre. A estranha relação entre os escritórios de advocacia e os ministros do STF deixa no ar uma certa suspeição. E no caso da Corte Suprema não pode existir qualquer tipo de questionamento ético. Os ministros devem pautar sua vida profissional pelo absoluto distanciamento com outros interesses que não sejam o do exercício do cargo. Não é admissível que um ministro (por que não ser denominado juiz?) tenha empreendimentos educacionais, ou mantenha um escritório de advocacia, ou, ainda, tenha parentes (esposa, filhos, cunhados, genros, noras) que participem diretamente ou indiretamente de ações junto àquela Corte.

O padrão de excelência jurídica foi decaindo ao longo dos anos. É muito difícil encontrar no STF algum Pedro Lessa, Adauto Lúcio Cardoso ou Hermes Lima. Os ministros que lá estão são pálidos, juridicamente falando, com uma ou outra exceção. Cometem erros históricos primários. Seria melhor que as sessões televisivas daquela Corte fossem proibidas para o bem dos próprios ministros.

Mas o problema do Judiciário é muito maior do que o STF. Nos estados, a situação é mais calamitosa. Famílias poderosas exercem influência nefasta. O filhotismo crassa sem nenhum pudor. E o que não se vê é a aplicação da justiça. Não pode ser usada como justificativa a falta de recursos. Desde a Constituição de 1988, o Judiciário tem um orçamento fabuloso. O problema é que o dinheiro é mal gasto.

O Judiciário preocupa-se com o cerimonial, o rito burocrático e todas as formalidades, mas esquece do principal: aplicar a justiça. O poder é lento e caro. E pior: é incompreensível ao cidadão comum. Ninguém entende como um acusado de desvio de milhões de reais continua solto, o processo se arrasta por anos e anos e, quando é condenado, ele não cumpre a pena. Ninguém entende por que existem tantas formas de recorrer de uma sentença condenatória. Ninguém entende o conceito do que é considerado prova pela Justiça brasileira.

É inadmissível juízes e promotores realizarem congressos patrocinados por empresas que demandam o Judiciário. É inadmissível um ministro do STF comparecer a uma festa de casamento no exterior com despesas pagas (no todo ou parte, isto pouco importa) por advogado que demanda aquela Corte. E ainda gazeteou sessões importantes (foram descontadas as faltas?). Se o Brasil fosse um país com instituições em pleno funcionamento, certamente haveria algum tipo de sanção. Sem idealizar a Suprema Corte americana, mas caberia perguntar: como seria recebida por lá uma notícia como essa?

Indo para o outro lado do balcão, cabe indagar o papel dos escritórios de advocacia especializados na defesa de corruptos. E são tantos. É evidente o direito sagrado de defesa. Não é isto que está sendo questionado. Mas causa profunda estranheza que um número restrito de advogados sempre esteja do lado errado, do lado dos corruptos. E cobram honorários fabulosos. Realizam seu trabalho somente para a garantia legal do direito de defesa? Será? É possível assinar um manifesto pela ética na política e logo em seguida comparecer ao tribunal para defender um político sabidamente corrupto? Este advogado não tem nenhuma crise de consciência?

Há uma crise estrutural no Judiciário. Reformá-lo urgentemente é indispensável para o futuro da democracia. De nada adianta buscar explicações pífias de algum intérprete do Brasil, uma frase que funcione como um bálsamo. Ninguém aguenta mais as velhas (e ineficazes) explicações de que a culpa é da tradição ibérica, da cordialidade brasileira ou do passado escravista. Não temos nenhuma maldição do passado, algo insuperável. Não. O problema é o presente.

Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP).

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O autor está morto, diz Jean-Luc Godard

FIACHRA GIBBONS
DO "GUARDIAN"

Jean-Luc Godard tem uma solução para a crise financeira da Europa. Ela é simples e criativa, como se poderia esperar de um homem que nos anos 1960, juntamente com todos os jovens cineastas da Nouvelle Vague, libertou o cinema da camisa-de-força dos estúdios. "Os gregos nos deram a lógica. Temos uma dívida com eles por isso. Foi Aristóteles quem propôs o grande 'logo'. 'Você não me ama mais, logo...'. Ou, 'encontrei você na cama com outro homem, logo...'. Usamos essa palavra milhões de vezes para tomar nossas decisões mais importantes. É hora de começarmos a pagar por ela."

"Se formos obrigados a pagar dez euros à Grécia cada vez que usarmos a palavra 'logo', a crise acabará em um dia, e os gregos não precisarão vender o Partenon aos alemães. Temos no Google a tecnologia para rastrear todos esses 'logos'. Podemos até cobrar das pessoas pelo iPhone. A cada vez que Angela Merkel disser aos gregos 'nós emprestamos todo esse dinheiro a vocês, logo vocês precisam nos pagar de volta com juros', ela será obrigada, logo, a pagar primeiro aos gregos pelos royalties."

Ele ri, eu rio, alguém que está ouvindo na sala ao lado ri. É claro que Godard é contra todo o conceito capitalista burguês do copyright: ele dá uma banana a isso em uma gag pouco sutil no final de "Film Socialisme", a mais recente salva de tiros em sua guerra de 40 anos contra Hollywood, lançado na semana passada. O "enfant terrible" do cinema pode estar com 80 anos, mas não perdeu nada de sua verve em matéria de irreverência e espírito do contra.


Miguel Medina/France Presse
O cineasta Jean-Luc Godard durante debate sobre seu filme "Film Socialisme", em Paris (França)
O cineasta Jean-Luc Godard durante debate sobre seu filme "Film Socialisme", em Paris (França)

"Film Socialisme" é o mais puro Godard em toda a glória desconcertante de sua fase mais recente: um ataque visual avassalador que entorpece os olhos, o cérebro e as nádegas do espectador, que toma liberdades com a paciência e a resistência mental dele, mas cuja originalidade é inegável. Não há trama, é claro. Em vez disso, estamos ao mar em um cacofônico navio de cruzeiro no Mediterrâneo, uma Las Vegas flutuante que se afoga em consumo excessivo, onde um coro grego de atores e filósofos perambula entre os passageiros de meia-idade, citando Bismarck, Beckett, Derrida, Conrad e Goethe em francês, alemão, russo e árabe.

Não é fácil de se assistir. A vontade de viver frequentemente desaparece enquanto imagens do último século atormentado passam diante de nossos olhos --apenas para ser despertada outra vez pelas tomadas sublimes que Godard faz do navio e do mar, ou por alguma citação aleatória que acerta o alvo em cheio. "Ter razão, ter 20 anos, ter esperança", ouvimos enquanto Patti Smith percorre o convés com sua guitarra, como uma adolescente mal-humorada. Quer dizer que é isto o futuro do cinema, como alegam os defensores de Godard? Tenho minhas dúvidas. Só sei que ninguém mais faz filmes deste jeito. E que outro diretor importante colocaria o filme inteiro no YouTube --embora em velocidade-relâmpago-- no dia antes de chegar aos cinemas.

Os discípulos eternos de Godard veem "Film Socialisme" como não apenas uma metáfora da Europa --um navio de descontentes envelhecidos boiando à deriva em sua própria história--, mas como um manifesto em favor de "uma nova república de imagens", livre do domínio morto da propriedade corporativa e das leis de propriedade intelectual. Este novo cinema será recortado e colado em um mundo para além do copyright, onde os direitos do autor em pouco tempo passarão a ser vistos como tão medievais quanto o "droit du seigneur" (o suposto direito dos senhores feudais de deflorar as donzelas que viviam em seus domínios, antes de elas se casarem). Godard lançou pouca luz sobre sua criação até agora, tendo desaparecido sem explicações exatamente quando o filme fez sua estreia em Cannes este ano, deixando apenas uma mensagem: "Em função de problemas de estilo grego, não poderei estar com vocês em Cannes. Eu iria até a morte pelo festival, mas nem um passo além disso."

Este é o tipo de Godard satírico que já conhecemos, o Godard dos grandes gestos, o Godard que é objeto de piadas intelectuais desde que fez um desvio pelo obscurantismo maoista depois de reescrever as regras do cinema no início dos anos 1960 com filmes como "Acossado". Incitado por Raoul Coutard, seu brilhante diretor de fotografia, ele filmou ao improviso, com câmeras seguradas na mão e praticamente nenhum roteiro, abrindo o caminho não apenas para a Nouvelle Vague francesa mas para toda uma geração de diretores independentes em todo o mundo. Scorsese, Tarantino, Altman, Fassbinder, De Palma, Soderbergh, Jarmusch, Paul Thomas Anderson --de uma maneira ou outra, eles e incontáveis outros se inspiraram neste enigmático cineasta suíço dotado de uma reserva inesgotável de aforismos espirituosos que manterão os teóricos do cinema ativos por séculos: "A fotografia é verdade. O cinema é verdade 24 vezes por segundo", "uma história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem".

Mas parece que, em algum lugar no meio desse caminho, o homem foi consumido pelo mito. O Godard que está sentado à minha frente em um apartamento de Paris, usando uma camiseta tão apertada que lhe dá o ar de um Buda de óculos e barba por fazer que foi acordado no meio de sua soneca da tarde, é tão mais humano, tão mais infantil que a lenda. Ele fala com um ligeiro ceceio. Ele é brincalhão e paciente. Procura responder perguntas que outros poderiam interpretar como insultos. Ele faz sentido, na maioria das vezes. É difícil enxergá-lo como o sujeito "merda" com quem o colega cineasta da Nouvelle Vague François Truffaut se desentendeu nos anos 1970.

Godard chega a falar bem de Hollywood, ou, pelo menos, da Hollywood dos anos 1930-1950, "que sabia fazer filmes como ninguém mais sabia. Hoje, nem mesmo os noruegueses conseguem fazer filmes tão ruins quanto os americanos." Ele se derrama em elogios à forma não narrativa dos westerns. "Só o que você sabe é que um estranho chega à cidade a cavalo." Pergunto sobre a pressão de ser visto como o autor dos autores, um visionário permanente. "Não sou um autor, bem, pelo menos, não agora", ele responde tão casualmente como se deixar de ser autor fosse como deixar de fumar. "Houve uma época em que pensávamos que fôssemos autores, mas não éramos. Realmente não fazíamos ideia. O cinema acabou. É triste que ninguém esteja explorando o cinema realmente. Mas, fazer o quê? De qualquer maneira, com os celulares e tudo o mais, hoje todo o mundo é autor."

Godard raramente concede entrevistas e frequentemente as cancela. Há mais de 30 anos ele vem tentando encontrar uma nova linguagem do cinema, encerrando-se em sua garagem na enfadonha cidade suíça de Rolle. Um filósofo francês me contou que certa vez passou uma semana diante da casa de Godard, aguardando em vão por uma audiência. Pergunto sobre o significado do lhama e do asno em "Film Socialisme", motivo de muitos questionamentos por parte de críticos. "A verdade é que eles estavam no campo ao lado do posto de gasolina na Suíça onde filmamos a sequência. Voilà. Não há mistério algum. Eu uso o que encontro." Ele diz que as pessoas frequentemente identificam significados inexistentes em seus filmes. Começo a me perguntar se é possível que Godard tenha sido profundamente incompreendido: será que, na realidade, ele é muito mais simples do que parece?

"As pessoas nunca fazem as perguntas certas", ele diz. "Minha resposta à pessoa que jamais vai me fazer a pergunta certa sobre este filme é que a imagem que eu gosto realmente é a imagem sobre a Palestina, os trapezistas." É uma metáfora da beleza que nascerá no dia em que judeus e árabes aprenderem a trabalhar em conjunto.

Estamos nos aproximando do tópico espinhoso do suposto antissemitismo de Godard, tema que voltou à tona novamente no ano passado quando ele recebeu um Oscar honorário. Sua hostilidade a Israel e seu apoio forte à causa palestina muitas vezes foram confundidos com ódio aos judeus, acusação que ele diz ser "idiota". O filósofo Bernard-Henri Lévy, que trabalhou com Godard em uma série de projetos abortados sobre "o ser judeu", certa vez descreveu o cineasta como um homem "que está tentando se curar de seu antissemitismo". Este pode ou não vir de sua família franco-suíça de alta classe, muitos de cujos membros foram favoráveis a Vichy. Em "Film Socialisme", Godard volta a enfiar a mão no vespeiro, com falas como "que estranho que Hollywood tenha sido inventada pelos judeus".

Outro livro que o acusa de antissemitismo saiu algumas semanas atrás, do intelectual Alain Fleischer. Este define como antissemita qualquer pessoa que se opõe à existência de Israel; ele admite, contudo, que Godard é antissemita apenas no mesmo grau em que "um judeu às vezes pode sê-lo". Procuro espicaçá-lo para que dê uma resposta, mas Godard não morde a isca. "Isso me deixa triste. Ele diz que o homem falou isso, mas o homem e a obra são coisas diferentes." Pergunto se isso quer dizer que o homem pode ser antissemita, mas a obra não é, mas Godard faz um gesto de afastar com as mãos. "Não, não! Isso é ridículo."

Preparo-me para partir, perguntando o que ele vai fazer a seguir, e ele se levanta rapidamente, como um adolescente, e vai procurar entre objetos na sala ao lado, retornando com um roteiro. "Tome", diz Godard, escrevendo uma dedicatória a "o guardião da cinematografia", pensando, por alguma razão, que eu talvez possa ajudar para que o filme seja feito. Fico comovido, mas profundamente entristecido pelo fato de um grande pioneiro do cinema estar sendo obrigado a usar desses estratagemas para divulgar sua criação.

Mas será que ele está mesmo? Será que Godard, aos 80 anos, está simplesmente oferecendo sua criação para quem quiser vê-la --como, por exemplo, colocando seu filme no YouTube? Enquanto desço o bulevar Magenta, me pergunto se eu mesmo deveria fazer o filme, já que direitos autorais e o conceito de autor já não significam nada para Godard. O roteiro é intitulado "Adieu to Language" (Adeus à Linguagem), e é mais ou menos isso mesmo. Trata de um casal e um cachorro, da vida, da morte e de todo o resto, embora o cachorro seja o protagonista real. Sim, quem sabe eu deva fazer o filme. Mas será que o mundo já está preparado para "Lassie - A Busca de um Cão por Sentido em um Universo Existencial"? Ou, algo mais louco ainda-- um filme de Godard com final feliz?

Tradução de Clara Allain

O baixo risco de ser corrupto no Brasil - Leonardo Avritzer

A demissão recente dos ministros da Casa Civil e dos Transportes envolvidos em escândalos com fortes traços de corrupção, assim como a tramitação do regime de contratação especial no Congresso Nacional reabrem um debate da maior importância para a democracia brasileira: como controlar a corrupção sem comprometer a eficiência do Estado brasileiro?

Já estão distantes os dias em que a opinião pública enxergava a corrupção de maneira jocosa expressa no "rouba mas faz". Até 1988, o Brasil vivia um clima de tolerância à corrupção que, na melhor das hipóteses era sancionada simbolicamente. Alguém afirmava "lá vai um corrupto" ou "esse indivíduo está envolvido em corrupção". Essa era a única maneira de apontar a corrupção. Tínhamos no Brasil a assim chamada "sanção simbólica da corrupção".

A partir da Constituição de 1988, essa atitude mudou. As novas atribuições do TCU, a criação da CGU em 2001 e as operações da Polícia Federal estão entre as ações importantes que ajudam a controlar a corrupção no Brasil. Sabemos mais sobre os casos de corrupção, alguns esquemas importantes de corrupção foram interrompidos por operações da Polícia Federal e, finalmente, podemos dizer que há um risco em ser corrupto no Brasil, risco esse que não é apenas simbólico. Casos de corrupção, tais como os dois mencionados acima, aparecem todos os dias na imprensa, o que não deixa de constituir um avanço nas formas de controle da corrupção.

Há, no entanto, uma segunda dimensão do fenômeno do combate à corrupção que merece destaque: a relação entre a baixa criminalização do fenômeno pelo judiciário e o aumento exponencial de regras impostos pelo assim chamado sistema "U". Os casos de coibição da corrupção no Brasil esbarram em um sistema judicial lento, com quatro instâncias e que trabalha com um conceito absurdo de presunção da inocência. A condenação em três instâncias é absolutamente inócua no Brasil e não produz nenhuma consequência jurídica. O foro especial ao qual tem direito o presidente, os ministros, os senadores e os membros do Congresso Nacional gera uma balbúrdia jurídica que inviabiliza a maior parte dos processos. Processos são transferidos dos tribunais de primeira e segunda instância para Brasília a cada eleição e, a cada demissão de ministro, voltam para os seus locais de origem. Ao mesmo tempo, o Supremo, pela sua característica de Corte constitucional, não consegue imprimir a esses processos a celeridade desejada. Cria-se um mecanismo de impunidade que reduz o risco das condenações por práticas de corrupção. Assim, é possível dizer que há um risco em aderir a práticas de corrupção no Brasil, mas esse risco ainda é incrivelmente baixo.

A reação do sistema "U" à falta de punição dos casos de corrupção é o aumento do controle administrativo. Difunde-se, no âmbito da máquina administrativa do Estado, formas de controle interno que aumentam o número de regras existentes para a realização de qualquer atividade. Ao mesmo tempo, se a punição às práticas corruptas é cada vez mais lenta no Brasil, a interrupção das atividades do estado na construção de infra-estrutura é cada vez mais frequente. Estamos assim, naquilo que denomino o pior dos mundos: não temos o chamado controle criminal da corrupção, isto é, não temos punição aos atos mais importantes de apropriação privada dos recursos públicos e temos uma máquina estatal que não consegue realizar os seus objetivos com eficiência devido a uma proliferação absurda de regras que minam a pouca eficiência que o setor público no Brasil tem. Como sair desse impasse?

Uma mudança que pode ser implementada para diminuir o impacto da impunidade sobre a eficiência do setor público é a introdução dos contratos de gestão entre órgãos e agências do setor público. Esta constitui uma maneira de compensar a incapacidade do controle administrativo de fazer frente à corrupção. Através de contratos de gestão, o Estado abriria mão do chamado controle administrativo exercido no varejo por meio de um conjunto de regras pouco claras. Ao mesmo tempo, órgãos como hospitais públicos, universidades federais, ou até mesmo os órgãos ligados as obras públicas teriam que assumir compromissos claros em relação a resultados. Por exemplo, hospitais poderiam ser administrados a partir de três metas: número de pacientes atendidos, custo por paciente, índices de mortalidade. Universidades poderiam assumir um formato parecido: número de alunos titulados, número de artigos publicados, custo por aluno titulado.

No caso dos controles, haveria uma forte redução dos controles administrativos restando apenas os controles mais importantes que levariam, no caso de descumprimento, a processos criminais e não aos processos administrativos cujas limitações conhecemos. O importante é que essas metas envolvam aumentos significativos de produtividade no setor público.

A introdução de contratos de gestão no setor público teria dois objetivos: o primeiro deles é diminuir o foco do controle administrativo. O que vemos nos escândalos de corrupção mais importantes, aqueles que implicam em fortes danos às finanças públicas, é que órgãos como o TCU e a CGU controlam tudo e, no final, exercem muito pouco controle efetivo. Falta foco no controle administrativo no Brasil e ele só pode ser adquirido com uma nova filosofia dos órgãos de controle. Ao conciliar aumento da produtividade do setor público com um controle mais seletivo será possível alcançar o que a sociedade brasileira clama: o aumento do risco de aderir à corrupção que depende da punição criminal e não do controle administrativo.

Leonardo Avritzer é professor associado do Departamento de Ciência Política da UFMG e membro do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP).

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Triste papel

Merval Pereira, O Globo

Enquanto a presidente Dilma prossegue na sua ação saneadora no Ministério dos Transportes, para espanto de seus aliados no Congresso e também do próprio ex-presidente Lula, que estaria preocupado com o risco de isolamento que a presidente correria, podemos assistir a um desfile de desfaçatez que exemplifica bem a deterioração das relações políticas nos dias atuais.

O líder do Partido da República, que está no centro do alvo da limpeza ética que se processa sob a orientação da presidente, não se constrange em mais uma vez utilizar a arma da chantagem política para tentar reequilibrar o jogo, a esta altura francamente desfavorável a seu partido.

O deputado Lincoln Portela acha que as demissões a conta-gotas estão desgastando o seu partido diante da opinião pública, e diz que o governo está "demonizando" o PR, lembrando os bons serviços prestados pelo partido, na sua encarnação PL, com a indicação de José Alencar para a vice-presidência de Lula.

Esqueceu-se o nobre deputado que está na origem dessa escolha, numa reunião entre Valdemar da Costa Neto e Delúbio Soares, com a presença de José Dirceu, uma das pontas do mensalão.

Não podendo discordar da decisão da presidente de demitir os envolvidos em corrupção, finge que está apenas querendo equilíbrio nas decisões. "A balança tem de ser uma só", disse ele, pedindo de maneira pouco sutil a cabeça do diretor de infra-estrutura do Dnit, Hideraldo Caron, indicado pelo PT que continua aparentemente firme no cargo.

A ameaça mais ostensiva o deputado deixou para o fim da entrevista, quando fez uma previsão sobre os trabalhos no Congresso no segundo semestre, depois do recesso legislativo: "Se o governo federal não mudar a forma de tratar a base, haverá problemas na condução dos trabalhos legislativos no segundo semestre".

Nesses comentários de fim de expediente estão reunidos vários ingredientes para uma crise institucional grave: a disputa de nacos do poder com o PT; a percepção de que o PR está perdendo terreno dentro do governo e, pior que isso, está sendo desmoralizado perante a opinião pública; e a ameaça de, com seus 41 deputados e sete senadores, dar o troco no governo em alguma votação importante no Congresso.

A facilidade com que os partidos da base ameaçam o governo em busca de melhores posições na sua estrutura, ou simplesmente atrás de liberação de verbas, só se torna aceitável numa democracia que se acostumou com distorções funcionais que vêm de longa data, com o Executivo subjugando o Legislativo e o Judiciário tomando para si a tarefa de legislar ou de interpretar a Constituição mesmo contra o que está escrito na lei.

O auge dessa situação de submissão do Congresso ao Executivo foi atingido no governo Dilma, que controlou a pauta do Legislativo durante esses primeiros seis meses através da emissão de medidas provisórias ou de projetos de lei com urgência, que impediram a votação de outros assuntos que não fossem os considerados prioritários pelo Executivo.

A estranheza da situação, que ocorreu pela primeira vez na história de nossa vida democrática, foi registrada pela reportagem do "Estado de S. Paulo", mas não recebeu dos senhores parlamentares nenhuma referência.

Ao contrário, o presidente da Câmara, o petista Marcos Maia, atuou sempre em consonância com o Palácio do Planalto, legitimando essa forma de controle do Legislativo pelo Executivo.

Nesse ambiente político, sobra para os deputados que se conformam com a impossibilidade de não terem iniciativas próprias as migalhas do poder, disputadas a tapas dentro da coligação governista. Os poucos que não participam desse conluio têm espaço reduzido nos partidos para atuar de maneira independente.

O favor que os partidos aliados podem prestar ao Executivo é barrar iniciativas que, aprovadas por cochilos dos governistas, tentam superar a situação de submissão em que se encontra o Legislativo.

É o caso da mudança na tramitação das medidas provisórias, que o senador Aécio Neves, de posse da relatoria de um projeto oriundo da própria presidência do Senado, tentou transformar em uma afirmação do Legislativo sobre o Executivo, ao que tudo indica sem sucesso.

As medidas provisórias entram em vigor assim que editadas, e o governo quer que essa prerrogativa continue. O senador Aécio Neves propunha que elas só vigorassem depois de serem analisadas por uma comissão mista do Congresso, que teria um prazo mínimo para verificar se a medida se enquadra nas exigências legais, coisa que hoje não é levado em conta pelo Congresso, que aceita medidas provisórias que não têm nem urgência nem relevância, e também as que tratam de diversos assuntos desconexos ao mesmo tempo.

O mais provável é que o Congresso não imponha ao Executivo nenhuma restrição, e que o Senado apenas ganhe mais tempo para analisar as medidas provisórias, ficando cada Casa com um prazo fixo determinado para a análise do conteúdo das emendas, ao contrário de hoje, quando o prazo é conjunto e quase sempre gasto na Câmara, por onde entram as MPs.

À medida que abrem mão de suas prerrogativas, só resta aos parlamentares um papel coadjuvante no exercício do poder, que se torna protagonista quando estoura algum escândalo.

A pressão política que os partidos da base aliada podem exercer sobre o Executivo, quando abrem mão de programas partidários, será sempre fisiológica, o que os transforma em partícipes secundários do poder, ou potenciais promotores de escândalos. Um triste papel.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Charge - Cícero

Causas da letargia diante da corrupção (Editorial)

O Globo

Em artigo publicado no GLOBO, o correspondente do jornal espanhol “El País”, Juan Arias, expôs sua perplexidade diante da letargia cívica que acomete a sociedade brasileira enquanto se multiplicam casos de corrupção.

O afastamento de dois ministros, Antonio Palocci e Alfredo Nascimento, em poucos meses de governo Dilma, seria motivo para alguma manifestação. Até porque, antes de serem fatos isolados, constam de um longo ciclo de malfeitos na esfera pública.

É ainda mais estranha a passividade quando se considera — como levou em conta Arias — que este mesmo país já ocupou ruas e praças em defesa da volta das eleições diretas e pelo impeachment, por corrupção, do presidente Fernando Collor.

Nos últimos tempos, apenas atraem multidões, observou o jornalista, a defesa da liberalização da maconha, a luta contra a homofobia e igrejas evangélicas. “Por que não reagem os brasileiros?” — é o título do artigo de Arias.

O fenômeno da inapetência política diante de assaltos aos cofres abastecidos com pesados impostos pelo contribuinte tem múltiplas raízes. A mais profunda deriva da bem-sucedida execução de um projeto de cooptação — com dinheiro público, claro — dos sindicatos, organizações da sociedade civil, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), e movimentos ditos sociais. Todos convertidos em correias de transmissão do lulopetismo.

Repartida a máquina pública dentro da filosofia do toma lá dá cá do fisiologismo, couberam ao MST e satélites, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento e o Incra; e aos sindicatos, o Ministério do Trabalho, e por óbvio, respectivas verbas.

Assim, soube o lulopetismo desativar os motores de ignição clássicos de manifestações políticas. Até o 1º de Maio, data de reivindicações sindicais, foi convertido num dia de quermesses.

Afinal, as agremiações sindicais estão no poder. Na reedição sem retoques de uma política getulista, o governo Lula oficializou a existência das centrais, dando-lhes a chave do cofre do imposto sindical, um dinheiro de acesso fácil, recolhido compulsoriamente dos assalariados, e sem a necessidade de comprovação de gastos.

Tudo ao contrário do que defendia o “novo sindicalismo” nascido sob a liderança de Lula no final da década de 70.
Também não pode ser desprezado o efeito hipnótico do crescimento econômico com inflação sob relativo controle, embora alta.

Acrescente-se o crédito farto — caro, mas com prestações a perder de vista — e estará pronto o cenário de tranquilidade para os inquilinos do poder.

Não é inédito. Guardadas as devidas diferenças históricas, também no auge do “milagre brasileiro” a classe média não se opôs à ditadura militar, enquanto conseguia comprar no crédito direto o primeiro carro do filho recém-aprovado no vestibular.

Outro aspecto a ser considerado é que, com Lula, a partir de 2003, passou a ser aplicado um projeto de poder, não de governo. Em nome dele, tudo é válido — mensalões, aloprados, getulização do Estado, doação do Ministério dos Transportes ao PR e a Valdemar Costa Neto. O silêncio literalmente vale ouro.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Charge - Amarildo

O cinema passional de Almodóvar

Em 30 de abril de 2004, publique esse artigo sobre o cineasta Pedro Almodóvar no Jornal da Cidade (Aracaju)

O cinema passional de Almodóvar

(*) Murilo da Silva Navarro

O cinema espanhol produziu importantes obras cinematográficas e legou ao mundo alguns grandes cineastas como Luis Buñuel ( o maior de todos ), Juan Antonio Bardem, Carlos Saura, e recentemente os diretores Bigas Luna e o mais completo dessa geração, Pedro Almodóvar. Nascido em Calzada de Calatrava (Espanha), em 25 de setembro de 1951, o cineasta Pedro Almodóvar transferiu-se com a família para a cidade de Cáceres quando tinha oito anos de idade. O período em que ele passou estudando em colégios religiosos contribuiu decisivamente para ele mudar de opinião sobre a Igreja Católica.

Ao completar 16 anos, foi para Madri sozinho, sem família e dinheiro, porém com uma meta específica: estudar cinema e fazer filmes. Como era impossível se matricular na escola de cinema, pois o ditador Franco tinha acabado de fechá-la, decidiu aprender a substância, vivendo-a pela experiência. Era o fim dos anos 60 e, apesar da ditadura, para um adolescente provinciano a cidade de Madri era a capital da contra-cultura.

Teve vários empregos temporários, mas só pôde comprar sua primeira câmera super-8, quando conseguiu um trabalho na Companhia telefônica em 1973, onde trabalhou por 12 anos como auxiliar administrativo. Esses foram os anos de sua verdadeira formação. Pelo dia trabalhava em contato com uma classe social que, de outra forma, não conheceria tão bem: a classe média espanhola no período da queda do regime de Franco. Conheceu os dramas e infortúnios da classe média e descobriu uma verdadeira mina de ouro em tipos esquisitos e personagens fascinantes. À noite, escrevia, amava e atuava no teatro com o grupo Los Goliardos (quando conheceu a atriz Carmen Maura)

Entre 1974 e 78, fez onze curtas em super 8, sempre contando com o apoio dos amigos. Dos Putas, o Historia de Amor que Termina en Boda (74), La Caída de Sodoma (75) e Folle ...Folle... Fólleme Tim (78) são exemplos de curtas rodados por ele e que fizeram sucesso na cena underground espanhola. Com a ajuda de Carmem Maura e Félix Rotateta, realiza seu primeiro longa-metragem Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón(1980), rodado inicialmente em 16 mm e mais tarde convertido em 35 mm. O filme tornou-se sucesso de público e o transformou em um novo ícone da Movida Madrileña (a efervescência cultural que tomou conta de Madri no fim da ditadura de Franco).

Seguiram-se o inusitado Labirinto de Paixões (82), o blasfêmico e surreal Maus Hábitos(83), a tragicomédia inspirada na classe média madrileña ¿Qué He Hecho Yo Para Merecer Esto?(84), o universo das touradas envolto em mortes e sensualidade no belíssimo Matador (86). Durante as filmagens de Matador, Almodóvar criou juntamente com seu irmão Agustín a produtora El Deseo S. A. e passou a produzir seus próximos filmes. A primeira produção da El Deseo S. A. é o filme mais ousado, radical e pessoal de Almodóvar, A Lei do Desejo de 1987.

Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (88) foi o primeiro sucesso mundial de Almodóvar e o ajudou a consolidar as características que seriam eternamente associadas ao diretor. Então, restrito a festivais de cinéfilos inveterados, o cineasta espanhol invadiu as salas mais comerciais e recebeu até uma indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1989. O filme apresenta um Almodóvar kitsch, coloridíssimo, hilário, exagerado, escrachado e ácido. As muitas referências almodovarianas vão das comédias cínicas de Billy Wilder aos melodramas de Douglas Sirk, passando pelas comédias malucas dos Irmãos Marx e as emoções baratas das fotonovelas italianas.

Para ele, as mulheres de seus filmes são fascinantes “porque perderam todo o pudor e a auto-estima”. No centro desse imbroglio feminino está um homem, o fútil e infiel ator de TV Ivan. À sua volta, a ex-esposa Lucia, internada num hospício; a amante Pepa, atriz e dubladora que tenta se matar; a nova namorada Paulina; o filho de Ivan, Carlos e sua namorada virgem e insatisfeita Marisa. Completando o leque de personagens do filme estão Candela (amiga de Pepa e namorada de um terrorista xiita), dois policias e um funcionário da companhia telefônica. Uma série de coincidências e mal-entendidos vai reunir essa fauna toda no coloridíssimo apartamento de Pepa. Essa esfuziante confusão, regada a boleros antigos, narrada em ritmo frenético e vagamente inspirada na peça A Voz Humana, de Jean Cocteau, ganhou o prêmio de melhor roteiro do Festival de Veneza de 89 e tornou-se o filme espanhol de maior sucesso de todos os tempos. O filme marca também o rompimento da amizade e colaboração entre Carmen Maura e Pedro Almodóvar.

O universo passional das cores berrantes, figurinos extravagantes, personagens caricatos, situações delirantes e exageradas dos primeiros trabalhos foram aprimorados em Ata-me!(90), De Salto Alto (91) e Kika(93). Entre os três filmes uma pessoa em comum, a excelente atriz Victoria Abril, que está perfeita nos papéis de Rebecca em De Salto Alto e da repórter sensacionalista Andréa Caracortada em Kika.

A Flor do Meu Segredo (95) marca uma mudança de direção na filmografia de Almodóvar. Os excessos e extravagâncias começam a dar lugar ao equilíbrio emocional e ao refinamento técnico. As comédias rasgadas, coloridas e sensuais são gradativamente substituídas pelo melodrama. Algumas evidências disso redirecionamento são óbvias: a crescente autonomia formal em relação a seus modelos originais, a deliciosa conquista da confiante serenidade de seu estilo, a magistral modulação dos ritmos de sua narrativa num movimento que equilibra perfeitamente o riso e o choro. Esse amadurecimento é aperfeiçoado em Carne Trêmula de 1997, filme em que os personagens escondem essencialmente os sacrifícios que quatro pessoas fazem por amor: um homem fica paraplégico, uma bela mulher se torna sua guardiã, o rapaz que a ama passa quatro anos na prisão e a mulher que ama o rapaz sacrifica sua vida.

Em Tudo sobre minha Mãe (99), Almodóvar atinge a maturidade e a perfeição. Ganha o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, ao contar a história de uma mulher de meia-idade (a argentina Cecilia Roth) que, depois da trágica morte do filho, viaja de Madri a Barcelona em busca do pai do rapaz. Na trama saborosa cabem travetis, freiras grávidas e atrizes drogadas. Após o sucesso arrebatador de público e crítica, Almodóvar lança em 2002, o filme Fale com Ela e confirma o momento inspirado de sua carreira. Mesmo retomando várias de suas obsessões, o diretor surpreende e parece se deixar surpreender. Mestre na arte de transformar o absurdo em algo perfeitamente plausível, Pedro Almodóvar conta desta vez a história de amizade e cumplicidade entre dois homens apaixonados por mulheres em estado de coma.

Fale com Ela é o mais poético e triste de todos os seus filmes, mais ainda do que Tudo Sobre Minha Mãe, e é bem provável que não exista uma obra na história recente do cinema que tenha apresentado visão tão complexa e plural do amor. O filme mostra o quanto Almodóvar amadureceu, mostrando-se cada vez mais coerente consigo mesmo e com o mundo à sua volta.

O trabalho mais recente de Almodóvar, La Mala Educación(2003), é estrelado pelo ator mexicano Gael Garcia Bernal, de O Crime do Padre Amaro e o jovem Che Guevara da produção americana Diários de Motocicleta, do diretor brasileiro Walter Salles. Em plena forma, Almodóvar narra uma história que trata de relações homossexuais entre estudantes de um colégio católico e o assédio desses meninos pelos padres. La Mala Educación abrirá o Festival de Cannes deste ano e tem estréia prevista para o Brasil a partir de setembro.

Se tentássemos explicar a poesia e o humanismo exibidos em seus últimos filmes, poderíamos dizer que Almodóvar é um tradutor bizarro da alma humana, que provoca diversão e até choro no meio de uma gargalhada.

(*) Mestre em Física pela Universidade Federal de Sergipe e Cinéfilo

domingo, 17 de julho de 2011

O direito feudal - MARIO VARGAS LLOSA

Quando jovenzinho, nos anos 50, muitas vezes ouvi meus companheiros de bairro e de escola se gabarem de ter se desvirginado com as empregadas de sua casa. O diziam utilizando uma expressão que sintetizava todo o racismo, o machismo e a brutalidade de uma classe social que, naquela época, ainda eram exibidos sem o menor acanhamento no Peru: "Tirar-se a la chola" (traçar a empregada). Os meninos de boa família não faziam amor com suas namoradas, que deviam chegar virgens ao casamento. Para seus ardores sexuais, escolhiam entre a prostituta e a criada.

O direito da primeira noite é antiquíssimo e os senhores feudais da Idade Média europeia o legaram aos senhores e patrões sul-americanos. Mas estão enganados os que acreditam que essas violências sexuais de fortes e poderosos cavalheiros contra mulheres pobres e desvalidas limitavam-se ao mundo do subdesenvolvimento. A truculenta odisseia vivida por Dominique Strauss-Kahn parece demonstrar que na civilizada França há senhores que, desafiando os tempos atuais, costumam perpetrar a sinistra tradição.

Se a acusação à qual Strauss-Kahn deve responder perante a mais alta corte do Estado de Nova York for aceita pelos juízes, ficará claro que ele praticava o direito da primeira noite segundo o antigo hábito, com o acréscimo de pancadas e maus tratos à sua vítima. Os médicos que examinaram a camareira da Guiné, que denunciou o político francês por tê-la obrigado a praticar sexo oral com ele, detectaram que ela estava com um ligamento do ombro rompido, hematomas na vagina e as meias rasgadas. A polícia, por sua vez, comprovou a existência, tanto na parede quanto no tapete do quarto, de sêmen que a camareira afirma ter cuspido, enojada, logo depois que o suposto autor do crime ejaculou. Esses são fatos objetivos e a Justiça deverá determinar se o sexo oral foi forçado, como ela declara, ou consensual, como diz Strauss-Kahn.

Mentiras. Como foi comprovado que a camareira mentiu para a polícia sobre seu ingresso nos Estados Unidos - é uma imigrante ilegal - e teve uma conversa com um homem preso por tráfico de drogas, para quem se gabara de querer tirar dinheiro de seu suposto estuprador aproveitando-se do ocorrido, comenta-se que a acusação já não convence, e o próprio promotor de Nova York estaria pensando em arquivar o caso.

Isso provocou, na França, onde me encontro agora, a publicação de muitos artigos e declarações de amigos e colegas favoráveis ao ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI). Encabeçados por Bernard-Henri Lévy, atacam ferozmente a Justiça americana por ter mostrado à imprensa Strauss-Kahn algemado e humilhado, em vez de respeitar sua privacidade e sua condição de mero acusado, não de culpado. Tem-se a impressão de que ele é um tipo de mártir e mereceria desagravo.

Repulsa. Na minha opinião, entretanto, o personagem é repulsivo. Tendo a acreditar que o que a camareira guineana afirma a respeito dele é verdade. Continuaria achando-o repulsivo mesmo se o sexo oral com o qual ele se gratificou naquela manhã nova-iorquina foi consensual. Mesmo se o tivesse solicitado com as boas maneiras, pagando por isso, teria cometido um ato covarde, prepotente e asqueroso com uma pobre mulher infinitamente mais frágil e vulnerável do que ele. Alguém que teria passado por essa pantomima por necessidade ou por medo, mas de modo algum seduzida pela posição ou a inteligência do personagem que encontrou nu no quarto que deveria arrumar. "Traçar a empregada", com boas ou más maneiras, é um ato ignóbil e vil, principalmente quando quem o perpetra é um aristocrata, como o quase intocável Strauss-Kahn.

Não sei por que as mentiras da camareira atenuariam a falta do seu suposto estuprador. O que vai ser julgado é se ela foi ou não violada, e não se é boa, sincera e desprendida. Se o elemento determinante para que a acusação prevalecesse não fossem os dados objetivos, e sim a personalidade e o caráter, Strauss-Kahn estaria em maus lençóis.

Seus antecedentes indicam claramente que ele sempre gostou muito das mulheres, e não teve o menor problema em demonstrá-lo, usando o que os brasileiros chamam de "mão boba" nas recepções, em elevadores e corredores. Pouco tempo após assumir a direção do FMI, ele se envolveu em um caso semelhante por ter contratado uma amante entre suas subordinadas.

Agora mesmo há um processo contra ele em Paris, no qual é acusado pela jornalista e escritora Tristane Banon de ter tentado estuprá-la, em 2003, quando ela foi entrevistá-lo para um livro. A jornalista declara que ele a recebeu num apartamento decorado apenas com uma cama e umas poltronas e teve de se defender com pontapés e arranhões do seu entrevistado, que rasgou o sutiã e a calcinha dela enquanto lutavam no chão. Na época, Tristane quis denunciar a tentativa de estupro, mas sua mãe a impediu de fazê-lo argumentando que isso seria muito prejudicial para o Partido Socialista, no qual ela também militava.

Portanto, se há indícios negativos no que concerne ao caráter e à personalidade da camareira guineana, as credenciais morais do hóspede estão longe de serem impolutas. Esse senhor superinteligente, ultra poderoso e milionário estava acostumado a se conceder certos excessos com a convicção de que estas fraquezas são permitidas a alguém como ele, assim como o direito da primeira noite era permitido aos senhores feudais.

O mais terrível é que, aparentemente, um bom número de seus compatriotas concorda com ele. A indignação contra a polícia e a Justiça dos Estados Unidos por terem tratado esse homem tão importante e de tão grande prestígio como um ladrãozinho preso em flagrante é quase unânime.

Não entendo tanta indignação. Não houve exagero no tratamento de Strauss-Kahn. Mas ele tampouco teve um tratamento preferencial por desempenhar um alto cargo no mundo financeiro. Pelo que leio em Paris, em seu país ele seria perdoado. Já a camareira seria expulsa por ser por ser imigrante ilegal e praticar a prostituição.


/ TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

É GANHADOR DO NOBEL DE LITERATURA

Caetano Veloso - Esboço de resposta

Vargas, o nosso Perón, não é sequer um nome que comova o coração de pessoas com menos de 60 anos

Juan Arias, do “El País”, pergunta por que os brasileiros não demonstram indignação pública contra a corrupção, já que o governo Dilma, em seis meses, teve que expulsar dois ministros fortes por evidência de práticas ilícitas. Pensando nos protestos espanhóis contra o sombrio clima político resultante do caos financeiro pós-2008, ele estranha a atual apatia no país das Diretas Já e dos caras- pintadas. Ao ler seu artigo, me lembrei de ter visto e-mails-filipetas convocando encontros semelhantes aos da Puerta del Sol em frente ao Copacabana Palace. Um pequeno grupo de pessoas tentava incitar pelo menos a garotada e os velhinhos descolados da Zona Sul a se manifestarem.


As notícias são de fato estarrecedoras. Palocci ter caído pela segunda vez em poucos anos e, semanas depois, a cúpula do Ministério dos Transportes ser defenestrada significa que o governo, mais uma vez, se vê obrigado a admitir que não pode sequer tentar negar as acusações gritadas pela imprensa. Ricardo Noblat dissecou o histórico sujo de Pagot — e este passou pelo Congresso com muito lubrificante. Não há quem não saiba que se mantém a tradição de mensaleiros e aloprados. Sendo que Palocci e Nascimento são herança direta do governo Lula.

Eu começaria a responder a Arias dizendo que as manifestações verdadeiramente populares do Brasil moderno têm em seu DNA a explosão indignada que o suicídio de Getúlio deflagrou: ela era contra o moralismo udenista e a imprensa que o apoiava. Este DNA estava nas Diretas Já, nos caras-pintadas e na passeata dos cem mil de 1968. Não somos a Argentina. E Vargas, o nosso Perón, não é sequer um nome que comova o coração de pessoas com menos de 60 anos. Mas o fim da era Vargas, que FH preconizara,
não se realizou. Está, na melhor das hipóteses , em andamento. Lento. A estrutura mental deixada por Vargas é ainda dominante. Seus conteúdo são na maioria inconscientes, mas têm consequências. Então não pode ser fácil arregimentar gente para protestar contra a frouxidão com que se tratam os crimes de corrupção no país.

Arias chama a atenção para o fato de que milhões vão a marchas pelos veados, pelo evangelismo e pela maconha. Sim. Mas isso reflete, por um lado, a tendência contemporânea para a compartimentalização de temas ideológicos, e, por outro, a ausência de estímulo para pôr em xeque um governo cujo histórico tem mais a ver com as manifestações pró-Vargas do que com as críticas ao “mar de lama”. Como iniciar um apelo pela internet para uma passeata contra a impunidade de altas autoridades que são exoneradas e logo santificadas pelos mandatários se a web está cheia de blogueiros lutando contra a “imprensa golpista”? Esses movimentos crescem em ambientes estudantis, em rodas de jovens artistas, em papo de trabalhadores sindicalizados, em naves de igrejas. Como imaginar algo assim acontecendo se a UNE é financiada por estatais e os sindicatos estão nos palácios? Em suma: se os formadores de rebelião são hoje todos chapa-branca, como organizar o movimento?

Claro que essas manifestações espanholas, inspiradas imediatamente no cheiro de jasmim que vem do Oriente, têm caráter sessentista. Como o maio francês e a contracultura americana, elas são mais geracionais do que de classe.

Odeio esse papo de imprensa golpista. Mas é fato que a imprensa brasileira tem o Estado oligárquico em seu DNA. E eu amo mais Vargas como figura histórica do que seus detratores. Começou copiando Mussolini, terminou assustando as oligarquias. Grosso modo, o conluio de Vargas com Samuel Wainer é algo mais progressista do que os jornais pró-Lacerda que viraram, anos depois, marchas da família com Deus pela liberdade. Nestas, viu-se que a mistura de plutocracia com moralismo católico vulgar é marca genética de nossas movimentações políticas mais antiga e mais resistente do que a que se revelou com a morte de Getúlio. Os blogueiros lulistas enfrentam internautas malucos herdeiros das marchadeiras. Será que todas as tramoias de Lula com os parceiros mais variados são mesmo mais progressistas do que toda e qualquer crítica que se lhe faça? Não creio. Não creio nem que as tramoias de Vargas, por mais estruturadoras do novo Brasil que tenham sido, devessem ser imunes a críticas — nem à época, nem agora. E a superação do estágio em que Vargas nos deixou requer coragem para que sejamos mais exigentes do que pudemos ser até aqui. Zuenir tocou na ferida, quando decidiu ousar não temer o udenismo. Será ele apenas a voz mais refinada da imprensa golpista?

Jânio de Freitas insiste em que o silêncio sobre empresas, mesmo quando se malham políticos, é sintoma de uma sociedade que resiste a mudanças mais fundas. O que é inegável. Mas nem o carnaval contra os corruptos parece possível orientarse. As mesmas pessoas que estavam na primeira fila da passeata dos cem mil ou no comício das diretas ainda estão na festa da posse de Lula. E o povo iletrado só tem a agradecer.

Votei em Marina para dizer que o número dos avisados é maior do que se pensa. A contagem dos votos confirmou. Novos critérios. A oposição não pode ser refém de reacionários fanáticos. Se um entrudo antiempresas corruptoras, mesmo com bonecos de Palocci, Dirceu e Nascimento, surgisse de surpresa,
seria um sinal de saúde: o esboço de um pós-getulismo progressista, civilizador e moderno, levando o Brasil a dizer ao mundo o que este precisa ouvir.

Humor - Acordo Brasil/Argentina




Fomos eliminados em 2010 juntos
Fomos Eliminados na Copa América Juntos
E estaremos juntos em 2014

sábado, 16 de julho de 2011

Charge - Sponholz

Obsessão - Merval Pereira, O Globo

Como se sabe, temos no Brasil dois grandes especialistas em imprensa: o ex-presidente Lula e o ex-ministro José Dirceu. Os dois dedicam-se, desde os primeiros meses do primeiro mandato do petista na Presidência da República, a tentar aprovar legislações que controlem a informação, uma tendência que vem se alastrando por toda a América Latina.

O movimento de contenção da liberdade de imprensa está presente em diversos países, como Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador, onde TVs, rádios e jornais vão sendo fechados sob os mais variados pretextos, e muitos outros são ameaçados com diversas formas de pressão, seja financeira, seja por meio de medidas judiciais.

No início do governo, tivemos que lutar contra a criação de várias agências oficiais. A Agência Nacional de Cinema e Audiovisual daria poderes para o governo interferir na programação da televisão e direcionar o financiamento de filmes e de toda a produção cultural para temas que estivessem em sintonia com as metas sociais do governo.

O Conselho Nacional de Jornalismo teria a finalidade de controlar o exercício da profissão e poderes para punir, até mesmo com a cassação do registro profissional, os jornalistas que infringissem normas de conduta que seriam definidas pelo próprio conselho.

Os mesmos grupos políticos continuam empenhados em aprovar novos tipos de cerceamento à liberdade de imprensa no país, sob o pretexto de exercer um "controle social" sobre os meios de comunicação, sendo que o Partido dos Trabalhadores decidiu que uma das prioridades é o que chamam, paradoxalmente, de "democratização da comunicação".

A presidente Dilma, ao assumir o governo, relegou a um plano secundário um projeto que objetivava controlar a informação, sob o pretexto de regulamentação dos novos meios eletrônicos.

Nossos dois "especialistas" voltaram às suas obsessões nos últimos dias. Lula motivado pelas críticas ao apoio oficial ao Congresso da UNE, onde foi o grande homenageado. E José Dirceu incentivado pelo escândalo na imprensa inglesa que provocou o fechamento do jornal "News of the World", além da demissão de vários dirigentes do conglomerado de informações do magnata Rupert Murdoch, uma espécie de "cidadão Kane" pós-moderno.

Insistindo nos seus equívocos, Lula tentou pela enésima vez menosprezar o peso dos jornais tradicionais que chamaram a reunião da UNE de chapa-branca. E declarou-se "invocado" por considerar que a imprensa não larga do seu pé.

A pretexto de consolar o presidente da UNE, Augusto Chagas, o ex-presidente garantiu a ele que os grandes jornais do Rio e de São Paulo não têm alcance nacional e não chegariam, segundo o ex-presidente, à Baixada Fluminense ou ao ABC paulista.

"Eles não perceberam que as coisas estão mudando no Brasil. O povo não quer mais intermediário entre eles e a informação. O povo está se informando de muitas formas. Muitas formas. E não apenas naqueles (meios) que habitualmente achavam que formavam", argumentou o ex-presidente, revelando sua peculiar postura ética, além de ignorância em relação à circulação das informações nas novas mídias.

Se a notícia não chega a todo o país, e muito menos ao interior, então não é preciso se preocupar, ensina Lula. O fato em si não tem a menor importância, desde que a grande massa de cidadãos permaneça na ignorância deles.

Esquece-se o presidente que, da mesma maneira que a internet e as novas mídias sociais permitem que as informações circulem mais largamente, com versões de várias fontes, elas também levam as reportagens da grande imprensa aos recantos mais longínquos do país.

Estudo recente demonstra que as reportagens da grande imprensa são replicadas no Facebook, no Twitter e em outras mídias sociais, amplificando sua repercussão.

O ex-presidente também se esqueceu que, no Brasil, a circulação dos jornais vem crescendo, especialmente a dos chamados "jornais populares", o que leva as questões nacionais a esse público que Lula pretende controlar sozinho, sem a interferência de outros agentes.

Além do mais, os blogs mais acessados são justamente os que se ligam aos principais jornais do país, cujas marcas e tradição lhes dão os meios para apuração das notícias e a credibilidade que muitas vezes faltam a blogs personalistas.

Não é à toa que a presidente Dilma Rousseff vem demitindo ministros e assessores do primeiro escalão com base em denúncias da chamada "grande imprensa". E, se considerasse mesmo desimportantes os grandes jornais, Lula não perderia seu tempo com eles.

Não há dúvida de que, com o surgimento das novas tecnologia, os jornais perderam a hegemonia da informação, mas continuam sendo fatores fundamentais para cidadania.

O jornalista espanhol José Luis Cebrian, diretor do "El País", talvez o jornal mais influente hoje da Europa, considera que os jornais perderam a centralidade da formação da opinião pública, mas continuam sendo um "contrapoder", com uma enorme influência, embora menor do que anteriormente à chegada das mídias sociais.

Ele relembrou em recentes entrevistas que os jornais continuam sendo importantes para a institucionalização democrática dos países, embora precisem se adaptar à nova realidade tecnológica.

Já o escândalo das escutas ilegais do jornal britânico "News of the World" fez com que o ex-ministro José Dirceu recuperasse o fôlego, depois de ter sido reafirmado pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel como o "chefe da quadrilha" do mensalão, e voltasse à carga em seu blog na campanha pela "regulação da mídia", nova maneira de denominar sua permanente tentativa de controlar a informação.

A gravidade do que aconteceu no "News of the World", com escutas ilegais e chantagens, liga perigosamente a prática de crimes comuns ao jornalismo, o que é inaceitável e põe em risco a própria essência da liberdade de expressão. O jornalismo, instrumento da democracia, não pode se transformar em atividade criminosa.

O interessante é que nem mesmo na Grã-Bretanha, epicentro dessa grave crise do jornalismo, está em discussão uma legislação oficial para controlar meios de comunicação.

São grandes as críticas à atuação da Press Complaints Commission (comissão de queixas sobre a imprensa), órgão formado pelos próprios jornais para se autorregular, e há um amplo debate sobre a revisão de seus critérios para reconquistar a confiança do público britânico.

Mas até agora não apareceu nenhum Dirceu para defender o controle governamental da imprensa.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Os indignados de hoje e de ontem

O correspondente do jornal espanhol “El País”, Juan Arias, está indignado com os brasileiros porque eles não vão às ruas para manifestar a sua indignação contra a corrupção.

A indignação, como se sabe, é um movimento da moda. Dizem que é filho dileto das redes sociais. Substitui o modo tradicional de fazer política através dos partidos ou dos “movimentos sociais” (que na verdade são segmentos sublocados de militância partidária mal disfarçada, pelo menos aqui no Brasil ), por uma forma genérica de protesto que consiste em acampar em praças e fazer manifestações em logradouros públicos com objetivos finais ainda pouco claros.

Seria a indignação que derrubou Mubarak no Egito, que tenta derrubar ditadores sírios, líbios, iemenitas e assemelhados.

Parente dessa indignação é a das praças da Espanha e da Grécia, onde se liquefaz a influência dos partidos e onde o prestígio da democracia é corroído pelos programas de arrocho e pela expansão do desemprego provocado pelos amargos remédios usados para curar as mazelas provocadas pela irresponsabilidade fiscal.

O uso de veneno para combater veneno é a fórmula mais eficaz para semear a indignação.

Como costuma acontecer com movimentos genéricos de protesto que nascem órfãos de ideologias sistematizadas, há centenas de padrastos querendo adotá-los, pregar-lhes etiquetas e fornecer-lhe fraldas e mamadeiras ideológicas.

Como se supõe que eles estejam protestando contra o que está aí e queiram substituir o status quo por qualquer outra coisa, os fornecedores de receitas mágicas sempre têm pronto no bolso do colete um modelito de socialismozinho prêt-a-porter para oferecer como panacéia para curar a indignação.

Os indignados até agora não deram mostras de querer incluir entre as suas aspirações a adesão cega às utopias regressivas que já fracassaram em sua missão de estabelecer o paraíso na terra.

O que eles querem é decência na vida pública, emprego, sistemas eficientes de proteção social que não sejam corroídos pela corrupção e estão à procura de alguma forma nova de participação na vida em comum que não passe pelo desmoralizado e desgastado caminho do jogo de poder do establishment partidário.

Enfim, sabemos muito bem o que eles não querem, mas não temos a menor idéia de onde e como pretendem chegar.

Como disse um leitor do “El País” num diálogo com a ombudsman do jornal, “essa corrente defende um novo sistema. Uma catarse. Mas morrem de idealismo e quando têm que expor seus argumentos em assembléia, não chegam a um consenso”.

Juan Arias não sabe, mas esses novos indignados no Brasil não vão às praças porque ainda são incipientes habitantes das redes sociais e não encontraram uma forma de expressão fora dos resmungos no mundo virtual.

Os indignados de antes, que pintavam as caras e saíam à rua para protestar contra outras corrupções e outros governos, hoje dividem entre si os frutos do poder.

Chegaram lá e quem chega lá não se indigna mais.

Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez. E.mail: svaia@uol.com.br

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Charge - Edcarlos

A tristeza da presidente - Editorial do Estado de SP

A presidente Dilma Rousseff minimizou as suas atribulações ao dizer, numa entrevista, que "tem dias" que fica triste "quando acontece alguma coisa errada" no seu governo. Dado que a política é indissociável da governança, as coisas erradas nessa frente não apenas não são esporádicas, mas de tal forma se empilham que a presidente teria motivos para viver em estado de permanente tristeza. Ela fez a sua relutante confissão na terça-feira. Nesse dia, depondo numa comissão do Senado, o diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Luiz Antonio Pagot, deu-lhe a alegria de elogiar o seu zelo e de desmentir explicitamente os rumores de que citaria o então ministro do Planejamento (hoje nas Comunicações), Paulo Bernardo, e a senadora sua mulher, Gleisi Hoffmann, atual titular da Casa Civil, numa nebulosa história de doações eleitorais e obras sob medida para os doadores. Mas o resto foi só mágoa.

Não se sabe se Pagot teria base para levantar suspeitas sobre o casal, como não se sabe nem sequer a situação em que ele se encontra e qual será o seu destino - e esses mistérios têm tudo que ver com as entristecedoras coisas erradas que se sucedem no Planalto. Sabe-se apenas que a sua comportada conduta no Senado resultou de uma negociação indireta com a presidente. O intermediário foi o padrinho político do figurão do Dnit, o ex-governador de Mato Grosso e senador Blairo Maggi, também do PR. Apontado pela revista Veja como um dos personagens-chave de um esquema de corrupção armado na pasta dos Transportes, Pagot soube pelo seu ainda chefe, ministro Alfredo Nascimento, que a presidente determinara o seu imediato afastamento (e o dos demais citados). Retrucou que é demissível, mas não afastável, e de mais a mais tinha entrado em férias.

Ciosa de sua autoridade, Dilma mandou avisar que ele seria exonerado assim que voltasse ao trabalho. Eis por que se especulava que ele se vingaria no seu depoimento. Não só não se vingou, como teve o cuidado de ressaltar que todas as decisões relativas a obras, licitações, contratos e os afamados aditivos - o foco provável da corrupção - eram tomadas em colegiados e "corroboradas" pelo secretário executivo da pasta, Paulo Sérgio Passos, o substituto de Nascimento pinçado por Dilma para zanga do PR do deputado mensaleiro Valdemar Costa Neto, secretário-geral da agremiação. Em suma, nem ele, Pagot, nem nenhum dos seus parceiros fizeram qualquer coisa que pudesse ser considerada irregular, para não dizer ilícita, nesse tempo todo.

Desmentindo, assim, a presidente Dilma, o diretor do Dnit foi praticamente beatificado por seus companheiros de legenda, pelos aliados da base parlamentar do governo - incluindo o líder do governo na Câmara, Cândido Vaccarezza, que aproveitou para se "solidarizar" com o ministro que se demitira -, e pelo novo titular da pasta, para quem Pagot é um "profissional responsável", contra o qual nada pesa. Mais do que depressa, armou-se na base um movimento para Dilma mantê-lo na função. Só faltou dizerem em público que ela precisaria pedir desculpas por ter endossado e reforçado as denúncias de falcatruas no seu governo. Esse é o drama da presidente. A coalizão que em tese deveria apoiá-la não lhe perdoa ter feito a coisa certa, porque feriu os interesses de um dos 14 partidos que a integram - e, nessas circunstâncias, é um por todos e todos por um.

Eles também se unem na expectativa de que ela pague pontualmente o preço que cobram por seu apoio. Nos oito anos passados eles não precisavam lembrar de seus deveres a um presidente obcecado em fazer o sucessor por quaisquer meios. Além de não deixá-los na mão, Lula exacerbou os vícios do sistema político brasileiro. Com o seu "presidencialismo de resultados", entregou o Ministério dos Transportes aos apetites do PR de Costa Neto e congêneres. Em 2002, na sua encarnação anterior como PL, o partido recebeu R$ 10 milhões do PT. O negócio foi fechado na mesma hora do acerto do candidato Lula com o seu vice José Alencar. No fim das contas, as máfias políticas que ele cevou para eleger Dilma são as mesmas que agora a deixam numa tristeza sem remissão à vista.