domingo, 26 de junho de 2011

Solidão a dois - BRUNO GHETTI

Solidão a dois

Carrière psicografa Buñuel

BRUNO GHETTI

Nas derradeiras páginas de "Meu Último Suspiro", autobiografia de Luis Buñuel (1901-83) [trad. André Telles, Cosac Naify, 376 págs., R$ 59], o cineasta entregava um sonho: queria, após sua morte, despertar a cada dez anos para ler jornais e atualizar-se das coisas do mundo antes de iniciar novo repouso de uma década.
Fiel ao estilo que marcou sua produção, o devaneio do diretor espanhol acaba de se materializar nos fotogramas de "Meia-Noite em Paris", de Woody Allen, e nas letras do francês Jean-Claude Carrière, 79, seu roteirista preferido e coautor daquele volume de memórias ""o cineasta tinha menos traquejo com as palavras do que com as imagens e só se convenceu da pertinência do projeto ao ler um capítulo esboçado pelo parceiro.
Dos raros roteiristas a jamais acomodar-se à sombra dos cineastas com quem trabalhou ""a lista inclui Godard, Malle, Wajda e Forman"", Carrière acaba de lançar na França "Le Réveil de Buñuel" (o despertar de Buñuel) [Odile Jacob, 288 págs., R$ 50], romance humorístico em que o cineasta "acorda" quase 30 anos depois de sua morte para contemplar uma realidade bem diferente daquela que deixara ao partir. Na ficção, é o próprio Carrière quem se encarrega de apresentar o (não tão) admirável mundo novo ao visitante ilustre.
Coautor de seis filmes de Buñuel (entre eles "A Bela da Tarde", de 1967, e "O Discreto Charme da Burguesia", de 1972), Carrière conheceu o espanhol na intimidade. Daí esse "Réveil" ser um exercício casado de memória e criatividade.
As reações de Buñuel são desenhadas ora em torno de frases que ele efetivamente disse em vida, ora a partir de suposições do amigo. O resultado emula os roteiros da dupla, combinando inventividade, inteligência e, como não poderia deixar de ser, surrealismo.
Carrière foi, nos anos 80, um dos criadores da Fémis, a mais importante escola de cinema francesa (alma mater de François Ozon, por exemplo), mas raramente sentou-se à cadeira de diretor. Ele recebeu a Folha em sua casa, no bairro parisiense de Montmartre.

Folha - Em "Meu Último Suspiro", Buñuel afirma que gostaria de ressuscitar a cada dez anos para ler jornais e saber o que aconteceu no tempo em que se ausentou. Mas o senhor o fez esperar quase 30 anos. Por quê?
Jean-Claude Carrière - Na verdade, o projeto do livro já existe faz mais de dez anos. Mas sempre que eu decidia escrever, algo importante acontecia no mundo, como o 11 de Setembro. Então, fui adiando. O ideal seria escrever daqui a uns dois anos, mas, até lá, talvez seja eu que não esteja mais vivo ""já tenho quase 80 anos...
Passados 28 anos de sua morte, Buñuel ainda está muito próximo a mim.

Como o sr. escreveu as falas dele em "Le Réveil..."? Inventou-as ou recorreu a frases que ele lhe disse?
A maior parte do que ele diz no livro é reprodução do que me falou ainda em vida. Guardo dois cadernos enormes com anotações das coisas que Buñuel me dizia sobre vários assuntos.
Tentei reproduzir a maneira peculiar como ele falava, em um francês muito correto, pontuado por expressões de seu gosto, como "canaille" (canalha).

O livro traça um perfil paradoxal de Buñuel: o de um sujeito bem-humorado, mas extremamente pessimista... Sim. Era uma mistura curiosa de enorme generosidade e bondade com um ódio profundo pelo homem. Dizia detestar a espécie, mas amar as pessoas. Buñuel tinha pavor de multidão, o que não o impedia de ser uma pessoa sociável.

Às vezes, o expediente de "ressuscitar" Buñuel dá a impressão de ser um pretexto para percorrer temas e episódios-chave da humanidade nas últimas três décadas, sobretudo no que diz respeito a política, religião e tecnologia. Existe essa intenção subjacente?
Existe. Com o livro quis falar de todos esses assuntos e, ao mesmo tempo, contar passagens do meu convívio com Buñuel que não eram de conhecimento público. Também fui guiado pelo interesse em saber a opinião dele sobre o mundo de hoje. Me concentrei em quatro grandes eixos temáticos.
O primeiro seria a queda do comunismo ""a gente não imagina o quanto o comunismo era importante para a geração do Buñuel. O segundo foi a Aids, doença que surgiu pouco antes da morte dele ""acho interessante tratar do assunto porque ele conheceu os "15 anos maravilhosos" de liberação sexual, entre os fins dos anos 60 e o início dos 80.
O terceiro eixo foi a questão da internet e do progresso eletrônico. E o último, o terrorismo islâmico - os espanhóis têm uma relação muito forte com o assunto, pela própria história deles, que ficaram tanto tempo sob domínio islâmico na península Ibérica.

Segundo o crítico René Prédal, os seis filmes de Buñuel cujo roteiro o sr. coassinou constituem um caso à parte na obra dele, mas são, ao mesmo tempo, "buñuelianos ao extremo". O sr. acha que conseguiu deixar uma marca pessoal nos filmes que fizeram juntos? Qual?
Não sei, mas de uma coisa tenho certeza absoluta: eu o encorajei a fazer filmes. Por várias vezes, ele quase se aposentou, mas eu o estimulava a fazer mais um filme.
Ele chegou a um ponto na carreira em que as pessoas se perguntavam: "O que Buñuel pode fazer agora?". Eu o ajudei a seguir uma direção mais irônica, com obras mais estranhas. Ele ficava reticente, meio desconfiado.

Há uma coleção de cenas insólitas e desconcertantes nos filmes que vocês fizeram juntos. Por exemplo, a caixa do cliente asiático no bordel de "A Bela da Tarde", cujo conteúdo nunca é revelado, ou a sequência de "O Discreto Charme da Burguesia" na sala de jantar que, de repente, vira um palco de teatro. O que é invenção do senhor e o que foi concebido por Buñuel?
É difícil dizer. Essas cenas do teatro a que você se refere foram ideia minha. Já tinha proposto a ele algumas vezes, mas Buñuel se recusava, dizendo que era uma situação impossível demais, muito "carrièresca". Ele só aceitou, aliás, porque a cena fazia parte de um sonho de um personagem.
Quanto ao objeto da caixa de "A Bela da Tarde", realmente não me lembro de quem veio. Muita gente achou que a cena mostrando o conteúdo tinha sido acidentalmente cortada da versão final do filme"¦ Às vezes, quando perguntavam a Buñuel o que havia lá dentro, ele respondia: "É uma fotografia do senhor Carrière. Por isso as prostitutas ficam aterrorizadas". [risos] Mas era proposital não mostrar nada.

Buñuel dizia que um filme sem um bom roteiro não pode ser bom. O sr. se ressente do fato de os roteiristas serem tão menos reconhecidos do que os diretores?
Não. O diretor é aquele reizinho que fica sentado na sua cadeira, mas que também não pode ser outra coisa. Um cineasta pode dirigir ótimas peças ou escrever excelentes livros, mas jamais será totalmente reconhecido em outra área.
Desde o início, escolhi não me tornar diretor, indo no sentido inverso dos outros jovens da minha geração. Preferi experimentar um campo de trabalho mais amplo, desde o início com a preocupação de entender o que era a linguagem cinematográfica.
As pessoas costumam achar que um roteirista é um romancista fracassado, um escritor de segundo time, mas, na verdade, seu ofício é como o de escrever em outra língua. É por isso que escritores conhecidos e talentosos, como Michel Houellebecq e Bernard-Henri Lévy, quando escrevem para o cinema, fazem coisas inacreditáveis, sem a menor relação com a linguagem cinematográfica.

Qual é a principal lembrança que o sr. carrega do trabalho com Buñuel?
Eu me lembro da solidão. Solidão a dois. Períodos longos, longe de tudo, das mulheres, dos amigos. Face a face, todo o dia, durante as refeições, procurando chegar a uma concentração total. Ficar meses assim é algo extremamente difícil de suportar após um certo tempo [risos].

Ele era uma pessoa difícil de convencer?
Era bem difícil. Quando você está diante de Buñuel, está no nível mais alto; ele exige o seu máximo, disponibilidade e abertura total. Não há espaço para fraqueza.
Mas não era de forma alguma uma pessoa com quem fosse difícil conviver. Era bom, engraçado. Tinha 30 anos a mais do que eu; na época, eu tinha certas vontades que ele já não tinha [risos]. Mas, para mim, não tinha problema. O trabalho tinha um nível de exigência que eu raramente vi depois.

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