segunda-feira, 27 de junho de 2011

O CNJ e as regalias dos juízes

Indo além de sua missão constitucional, que é promover o controle externo do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução que autoriza, de forma indireta, um aumento nos vencimentos da magistratura. A partir de agora, os 16.100 juízes em atividade receberão auxílio-alimentação e poderão "vender" 20 dos 60 dias de férias a que têm direito.

Pela resolução, os juízes também poderão tirar licença remunerada para estudar no exterior. Além disso, eles receberão ajuda de custo para atividades realizadas fora da jurisdição e para representação de classe e uma "indenização" de 20% de seus salários quando, "por necessidade de serviço", acumularem dois períodos de férias não gozadas.

Como esses benefícios não são previstos pela Lei Orgânica da Magistratura, que entrou em vigor em 1979, o CNJ fundamentou sua decisão no princípio da isonomia previsto pela Constituição de 88. Sob a justificativa de "aproximar" os dois textos legais e promover uma "simetria funcional" entre o Judiciário e o Ministério Público, o órgão achou "justo" conceder aos magistrados as mesmas regalias que a Procuradoria-Geral da República e as Procuradorias de Justiça dos Estados dão aos seus membros.
"A concessão de vantagens às carreiras assemelhadas induz a patente discriminação, contrária ao preceito constitucional, e ocasiona desequilíbrio entre as carreiras de Estado", diz a resolução do CNJ.

A equiparação de regalias era uma reivindicação antiga dos juízes e levou a Associação da Magistratura Brasileira (ABM) a contratar como "consultora" uma conhecida lobista brasiliense - Helga Jucá, irmã do líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR) - para pressionar o Congresso a aprovar os projetos salariais de interesse da corporação. Do ponto de vista formal, o pedido de equiparação salarial entre juízes e promotores foi enviado ao CNJ pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe), que está recorrendo aos préstimos do notório deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para defender os interesses da categoria no Congresso, e até ameaçando promover mais um "dia nacional de mobilização". A última vez que os juízes federais cruzaram os braços foi em 27 de abril. O salário médio da corporação, que - além dos benefícios funcionais - está pleiteando um reajuste de 14,79%, é de R$ 23 mil.

A magistratura também reivindicava o direito à licença-prêmio - um período de folga de três meses para cada cinco anos trabalhados. E, caso o juiz não gozasse dessa regalia, ao se aposentar ele poderia receber em dinheiro o valor equivalente aos três meses. O CNJ não acolheu essa pretensão, uma vez que ela está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, numa ação impetrada por um magistrado aposentado.
O Conselho Nacional de Justiça não divulgou o impacto das regalias que concedeu à magistratura nos gastos públicos, mas o relator Felipe Locke e os presidentes de entidades de juízes afirmam que ele será "mínimo". Eles também alegam que, além de constituir "uma forma de defesa da independência do Poder Judiciário", os benefícios ajudarão a "preservar a magistratura como carreira atrativa".

O aumento dos gastos do Poder Judiciário com folha de pagamento é apenas um dos lados do problema. O outro lado é de natureza jurídica. Como o Conselho Nacional de Justiça é um órgão administrativo, e não legislativo, ele não tem competência jurídica para tomar decisões que - mesmo por vias indiretas - levem a aumento salarial. Pela Constituição, reajustes de vencimentos e concessão de benefícios somente podem ser feitos com base em lei específica aprovada pelo Congresso. Isso foi lembrado pelo próprio presidente do CNJ, ministro Cezar Peluso, que foi voto vencido.

Agora a magistratura está pedindo à cúpula do Poder Judiciário o cumprimento imediato da resolução do CNJ. Mas, como ela é flagrantemente inconstitucional, a Advocacia-Geral da União (AGU) pode contestá-la no Supremo Tribunal Federal. Se a AGU tomar essa iniciativa, resta esperar que o Supremo atue como Corte constitucional e que seus 11 ministros não se deixem levar por interesses corporativos.

Felipe Hirsch - Pop cult 51

A cultura da música pop é de almanaque. Proporcionalmente, poucos foram os grandes teóricos que se dedicaram aos temas, como Greil Marcus e seu histórico livro “Mistery train” ou no brilhante “Lipstick traces”, sobre os Sex Pistols, o punk e os dadaístas, sobre os internacionais situacionistas e os libertinos, sobre a vanguarda e os revolucionários hereges medievais. Estou falando dos grandes. Lester Bangs é outro. Mas ele morreu muito novo, com 33 anos. Foi um dos heróis da “Rolling Stone”. Um beatnik desgarrado. Nick Kent, discípulo de Bangs, escreveu, desde 1972, na “NME”. Resultado de sua paixão por Truman Capote e Hunter Thompson. Segundo Kent, não há mais ensaístas que o interessem.

É no escopo geral, no desenvolvimento conceitual de um artista da música popular, que somos capazes de analisar sua obra em progresso. Ou, por outro lado, sua obra perdida, “uróbora”, exausta. Nos três minutos de uma canção somos apenas capazes de passar mais um verão e depois esquecê-la ou, na melhor hipótese, somos atingidos por uma melodia ou verso, como uma mensagem de um biscoito da sorte chinês, e este não nos deixará em paz por um tempo de nossas vidas. É claro que uma cultura como essa, específica, isolada do senso geral jornalístico e portanto histórico, só atinge alvos marginais. Eu cresci assim, ouvindo música no meu quarto. Meus amigos também. Morrissey ouvia música no seu quarto em Hulme quando mandou sua carta, sobre os New York Dolls, para “NME”. Quando isso acontece em cidades pequenas, menos dispersas, mais lentas e tediosas, a dependência ainda se torna maior. Rodávamos a cidade em busca de um vinil de 180 gramas qualquer. Quando me deparei com “Get Happy!!” do Elvis Costello, hiperventilei, meus pés formigaram, minhas mãos tremeram, meu coração quis fugir pela boca e anunciar que estava eternamente apaixonado. Desde então, tenho até relativo interesse pelo resto do mundo, mas o que há de integral em mim é minha paixão pela música.

O ato de escrever, como afirma David Shields, começou 3.200 anos antes de Cristo. E as primeiras formas de escrita foram as listas. Dois séculos, ainda antes de Cristo, Terêncio disse que não havia mais nada a dizer que não tivesse sido dito. É claro que nunca superaremos nosso amor pela literatura russa, é claro que ainda estudamos Ulisses em Cambridge, é claro que Machadinho, como diz Dalton Trevisan, apaixonado pela forma e o humor de Laurence Sterne, já escreveu, com essa forma, algumas das obras eternas da literatura mundial. Mas as listas ainda servem aos nossos planos e Ipods. Da mesma maneira que serviam às fitas gravadas e aos CDRs. Da mesma forma que servirão a qualquer evolução tecnológica futura. Porque o sentido não está na forma e sua evolução. Está no conteúdo amoroso da música. É uma necessidade fundamental dividir canções. É um ato afetuoso. No meu biscoito da sorte, Leonard Cohen disse: “As coisas vão se mover rapidamente em todas as direções, você não será capaz de mensurar mais nada”. Mas em toda mutação tecnológica temporária, em todo período distópico presente, em toda a vida equilibrada por um comprimido de Rivotril, dividir música fará com que essas tais pessoas isoladas se comuniquem umas com as outras.

Isso, tenho certeza, gera amor e gentileza. Tenho pedido insistentemente em redes sociais e espaços, ao meu alcance, que jovens dividam suas paixões e não seus ódios. Que falem sobre seus discos, filmes, peças, livros preferidos. Esqueçam por um momento o que odeiam. Não há mais tempo para ser um cínico. O amor é uma força mais assustadora do que o cinismo. É com ele que você lapidará seu mundo. É com ele que você honrará seu espaço. Mesmo o anônimo. Pois bem, sei que escrevo para meia dúzia de pessoas, proporcionalmente. Da mesma forma que disse, recentemente, para o honrado e respeitoso crítico Jefferson Del Rios que os críticos de teatro escrevem para os artistas de teatro. Sei que poderia apenas me reunir com meus amigos e conversar no meu apartamento sobre as coisas que tenho dito aqui. Faria isso com o maior prazer se não soubesse que, imediatamente, cederia esse importante espaço para uma pessoa que o perderia elegendo “os piores do ano” ou agredindo um espírito iluminado como o de Caetano Veloso. Prefiro pensar que desperto a curiosidade de jovens, como eu fui, capazes de buscar informações sobre algo que não conheçam, pelo prazer apaixonado que a música pop desperta. E hoje, esses jovens têm as ferramentas que os projetam no mundo. Não existem mais desculpas que justifiquem o desconhecimento. Só o autêntico e válido desinteresse. É por isso que raramente ouço de jovens a frase: “Não conheço, ou entendo, nada do que você diz”. Pelo contrário, minha dúzia de amigos tem se multiplicado em mensagens e músicas.

Quando fizemos “A vida é cheia de som e fúria” levamos milhares de jovens pela primeira vez ao teatro. Esse público é o que nos segue desde então por repertórios mais complexos e sofisticados, como “Não sobre o amor”, “Temporada de gripe”, “Pterodátilos” e até em óperas como “O castelo do Barba Azul”, ou no cinema (“Insolação”). Nesses trabalhos, estamos tentando nublar as fronteiras entre as artes. Literatura, cinema, artes plásticas, teatro, arquitetura. A música nos ajudou. Ela é a arte com o menor tempo de mediação intelectual. Mesmo a bela dodecafonia de Schoenberg não consegue afastá-la de nós. Acredite, podemos ouvi-la como ouvimos Sex Pistols. E podemos ouvi-los como ouvimos Nelson Cavaquinho. Assim como podemos ler Thomas Pynchon (um grande amante da música pop) ou Kierkegaard (um grande amante) e listas de almanaques. As únicas fronteiras são as que nós mesmos levantamos. Superar nossa própria defesa é o plano mais saudável.

domingo, 26 de junho de 2011

Solidão a dois - BRUNO GHETTI

Solidão a dois

Carrière psicografa Buñuel

BRUNO GHETTI

Nas derradeiras páginas de "Meu Último Suspiro", autobiografia de Luis Buñuel (1901-83) [trad. André Telles, Cosac Naify, 376 págs., R$ 59], o cineasta entregava um sonho: queria, após sua morte, despertar a cada dez anos para ler jornais e atualizar-se das coisas do mundo antes de iniciar novo repouso de uma década.
Fiel ao estilo que marcou sua produção, o devaneio do diretor espanhol acaba de se materializar nos fotogramas de "Meia-Noite em Paris", de Woody Allen, e nas letras do francês Jean-Claude Carrière, 79, seu roteirista preferido e coautor daquele volume de memórias ""o cineasta tinha menos traquejo com as palavras do que com as imagens e só se convenceu da pertinência do projeto ao ler um capítulo esboçado pelo parceiro.
Dos raros roteiristas a jamais acomodar-se à sombra dos cineastas com quem trabalhou ""a lista inclui Godard, Malle, Wajda e Forman"", Carrière acaba de lançar na França "Le Réveil de Buñuel" (o despertar de Buñuel) [Odile Jacob, 288 págs., R$ 50], romance humorístico em que o cineasta "acorda" quase 30 anos depois de sua morte para contemplar uma realidade bem diferente daquela que deixara ao partir. Na ficção, é o próprio Carrière quem se encarrega de apresentar o (não tão) admirável mundo novo ao visitante ilustre.
Coautor de seis filmes de Buñuel (entre eles "A Bela da Tarde", de 1967, e "O Discreto Charme da Burguesia", de 1972), Carrière conheceu o espanhol na intimidade. Daí esse "Réveil" ser um exercício casado de memória e criatividade.
As reações de Buñuel são desenhadas ora em torno de frases que ele efetivamente disse em vida, ora a partir de suposições do amigo. O resultado emula os roteiros da dupla, combinando inventividade, inteligência e, como não poderia deixar de ser, surrealismo.
Carrière foi, nos anos 80, um dos criadores da Fémis, a mais importante escola de cinema francesa (alma mater de François Ozon, por exemplo), mas raramente sentou-se à cadeira de diretor. Ele recebeu a Folha em sua casa, no bairro parisiense de Montmartre.

Folha - Em "Meu Último Suspiro", Buñuel afirma que gostaria de ressuscitar a cada dez anos para ler jornais e saber o que aconteceu no tempo em que se ausentou. Mas o senhor o fez esperar quase 30 anos. Por quê?
Jean-Claude Carrière - Na verdade, o projeto do livro já existe faz mais de dez anos. Mas sempre que eu decidia escrever, algo importante acontecia no mundo, como o 11 de Setembro. Então, fui adiando. O ideal seria escrever daqui a uns dois anos, mas, até lá, talvez seja eu que não esteja mais vivo ""já tenho quase 80 anos...
Passados 28 anos de sua morte, Buñuel ainda está muito próximo a mim.

Como o sr. escreveu as falas dele em "Le Réveil..."? Inventou-as ou recorreu a frases que ele lhe disse?
A maior parte do que ele diz no livro é reprodução do que me falou ainda em vida. Guardo dois cadernos enormes com anotações das coisas que Buñuel me dizia sobre vários assuntos.
Tentei reproduzir a maneira peculiar como ele falava, em um francês muito correto, pontuado por expressões de seu gosto, como "canaille" (canalha).

O livro traça um perfil paradoxal de Buñuel: o de um sujeito bem-humorado, mas extremamente pessimista... Sim. Era uma mistura curiosa de enorme generosidade e bondade com um ódio profundo pelo homem. Dizia detestar a espécie, mas amar as pessoas. Buñuel tinha pavor de multidão, o que não o impedia de ser uma pessoa sociável.

Às vezes, o expediente de "ressuscitar" Buñuel dá a impressão de ser um pretexto para percorrer temas e episódios-chave da humanidade nas últimas três décadas, sobretudo no que diz respeito a política, religião e tecnologia. Existe essa intenção subjacente?
Existe. Com o livro quis falar de todos esses assuntos e, ao mesmo tempo, contar passagens do meu convívio com Buñuel que não eram de conhecimento público. Também fui guiado pelo interesse em saber a opinião dele sobre o mundo de hoje. Me concentrei em quatro grandes eixos temáticos.
O primeiro seria a queda do comunismo ""a gente não imagina o quanto o comunismo era importante para a geração do Buñuel. O segundo foi a Aids, doença que surgiu pouco antes da morte dele ""acho interessante tratar do assunto porque ele conheceu os "15 anos maravilhosos" de liberação sexual, entre os fins dos anos 60 e o início dos 80.
O terceiro eixo foi a questão da internet e do progresso eletrônico. E o último, o terrorismo islâmico - os espanhóis têm uma relação muito forte com o assunto, pela própria história deles, que ficaram tanto tempo sob domínio islâmico na península Ibérica.

Segundo o crítico René Prédal, os seis filmes de Buñuel cujo roteiro o sr. coassinou constituem um caso à parte na obra dele, mas são, ao mesmo tempo, "buñuelianos ao extremo". O sr. acha que conseguiu deixar uma marca pessoal nos filmes que fizeram juntos? Qual?
Não sei, mas de uma coisa tenho certeza absoluta: eu o encorajei a fazer filmes. Por várias vezes, ele quase se aposentou, mas eu o estimulava a fazer mais um filme.
Ele chegou a um ponto na carreira em que as pessoas se perguntavam: "O que Buñuel pode fazer agora?". Eu o ajudei a seguir uma direção mais irônica, com obras mais estranhas. Ele ficava reticente, meio desconfiado.

Há uma coleção de cenas insólitas e desconcertantes nos filmes que vocês fizeram juntos. Por exemplo, a caixa do cliente asiático no bordel de "A Bela da Tarde", cujo conteúdo nunca é revelado, ou a sequência de "O Discreto Charme da Burguesia" na sala de jantar que, de repente, vira um palco de teatro. O que é invenção do senhor e o que foi concebido por Buñuel?
É difícil dizer. Essas cenas do teatro a que você se refere foram ideia minha. Já tinha proposto a ele algumas vezes, mas Buñuel se recusava, dizendo que era uma situação impossível demais, muito "carrièresca". Ele só aceitou, aliás, porque a cena fazia parte de um sonho de um personagem.
Quanto ao objeto da caixa de "A Bela da Tarde", realmente não me lembro de quem veio. Muita gente achou que a cena mostrando o conteúdo tinha sido acidentalmente cortada da versão final do filme"¦ Às vezes, quando perguntavam a Buñuel o que havia lá dentro, ele respondia: "É uma fotografia do senhor Carrière. Por isso as prostitutas ficam aterrorizadas". [risos] Mas era proposital não mostrar nada.

Buñuel dizia que um filme sem um bom roteiro não pode ser bom. O sr. se ressente do fato de os roteiristas serem tão menos reconhecidos do que os diretores?
Não. O diretor é aquele reizinho que fica sentado na sua cadeira, mas que também não pode ser outra coisa. Um cineasta pode dirigir ótimas peças ou escrever excelentes livros, mas jamais será totalmente reconhecido em outra área.
Desde o início, escolhi não me tornar diretor, indo no sentido inverso dos outros jovens da minha geração. Preferi experimentar um campo de trabalho mais amplo, desde o início com a preocupação de entender o que era a linguagem cinematográfica.
As pessoas costumam achar que um roteirista é um romancista fracassado, um escritor de segundo time, mas, na verdade, seu ofício é como o de escrever em outra língua. É por isso que escritores conhecidos e talentosos, como Michel Houellebecq e Bernard-Henri Lévy, quando escrevem para o cinema, fazem coisas inacreditáveis, sem a menor relação com a linguagem cinematográfica.

Qual é a principal lembrança que o sr. carrega do trabalho com Buñuel?
Eu me lembro da solidão. Solidão a dois. Períodos longos, longe de tudo, das mulheres, dos amigos. Face a face, todo o dia, durante as refeições, procurando chegar a uma concentração total. Ficar meses assim é algo extremamente difícil de suportar após um certo tempo [risos].

Ele era uma pessoa difícil de convencer?
Era bem difícil. Quando você está diante de Buñuel, está no nível mais alto; ele exige o seu máximo, disponibilidade e abertura total. Não há espaço para fraqueza.
Mas não era de forma alguma uma pessoa com quem fosse difícil conviver. Era bom, engraçado. Tinha 30 anos a mais do que eu; na época, eu tinha certas vontades que ele já não tinha [risos]. Mas, para mim, não tinha problema. O trabalho tinha um nível de exigência que eu raramente vi depois.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

ELIO GASPARI - O BC vai bem, a serviço da banca

Ele assalta o caixa, o banco repassa a nota manchada, cobra pelo saque, e eu vou para a delegacia


O BANCO CENTRAL está com um parafuso solto. Seu diretor de administração, Altamir Lopes, recomendou à patuleia que, caso ela receba notas manchadas ao sacar dinheiro nos caixas eletrônicos à noite, deverá procurar uma delegacia e registrar um Boletim de Ocorrência.
A proposição é absurda, impertinente e facciosa. É absurda porque, se dois irmãos, João e José, saírem pela madrugada e um assaltar uma padaria enquanto o outro vai a um caixa eletrônico para sacar R$ 20, João colocará o butim num envelope de depósitos automáticos e irá para a noite. José, tendo recebido a nota manchada, deverá ir à delegacia registrar o ocorrido. Pelo menos um delegado, em Santo André, com razão, reteve a cédula.
É impertinente, porque não há norma que ampare a recomendação desse ritual. Procurando inibir as explosões de caixas eletrônicos, a banca passou a usar um dispositivo que mancha as cédulas.
Para impedir que essas notas circulem, o Conselho Monetário Nacional baixou uma resolução (nº 003981). Ela diz que "as instituições financeiras, ao receberem cédulas inadequadas (...) deverão retê-las e recolhê-las ao Banco Central". Portanto, eles não podem colocar essas notas nos seus caixas eletrônicos, repassando-as a clientes que pagam taxas de R$ 1,30 a R$ 2 pelo saque. Se os diretores do Banco Central lidam com assuntos da alta finança com a mesma ligeireza com que opinam sobre a baixa poupança, vai-se mal. Querem impor à clientela a obrigação de batalhar numa delegacia pela recuperação de um valor que lhe pertence.
A recomendação é demófoba. É no andar de baixo que estão pessoas para quem perder R$ 20 ou R$ 50 significa uma refeição. Levada ao pé da letra, a recomendação deveria pedir que se fizesse um B.O. para que o banco explicasse por que colocou notas manchadas no seu caixa.
Parece que a proposta também é inócua, pois a polícia informa que a bandidagem já teria aprendido a limpar a tinta derramada nas notas. Existem no Brasil 180 mil caixas eletrônicos. Estima-se que as chances de uma pessoa receber notas manchadas sejam de 3 em 100 mil. Admitindo-se que sejam de 3 em 10 milhões as chances de o freguês receber uma nota dessas fora do horário de expediente, o montante de cédulas bichadas que os caixas eletrônicos despejam diariamente dificilmente passaria dos R$ 10 mil. Se os bancos resgatassem as notas no dia seguinte, nenhum deles faliria. Sairia mais barato do que uma consultoria companheira.
A troca da nota deve ser feita mediante a exibição do extrato do caixa, registrando-se a transação no cadastro do freguês. Se um cidadão recebe 20 notas manchadas num mês, será possível suspeitar que se trata de um cambista dos assaltantes. A Febraban endossou a recomendação demófoba do BC. Perdeu uma oportunidade de defender os depositantes. Em abril do ano passado, quando o Estado do Rio estava submerso numa enchente que matou perto de mil pessoas, a veneranda guilda da banca teve um apagão moral e informou à patuleia que nenhuma conta ou dívida teria seu vencimento prorrogado. Nos dias seguintes, voltou atrás e desculpou-se. Parecia ter tomado jeito, mas teve uma recaída.

RUY CASTRO - Banhos demais

RIO DE JANEIRO - Livro recente sobre Frank Sinatra, "Lady Blue Eyes - My Life with Frank", assinado por sua viúva Barbara, afirma que Frank tomava 12 banhos por dia. Não deve ser a informação mais importante do livro. Seja como for, ela deixa Sinatra mal -nos dias de hoje, não fica bem tomar banho demais. Mas vejamos.
A grande carreira de Sinatra como cantor, ator e figura pública durou cerca de 40 anos a partir de 1939. Como crooner, gravou 14 faixas com a orquestra de Harry James na Columbia (1939-40) e 93, com a de Tommy Dorsey na Victor (1940-41). Como cantor solo, cerca de 280, de novo na Columbia (1943-52); 370 na Capitol (1953-60); e 450 na Reprise (1960-80). Só aí são mais de 1.200 faixas, e esta é apenas sua discografia oficial. Já é disco à beça.
Somando as faixas que foram gravadas e não lançadas, as muitas gravações especiais (como os V-discs) e os vários takes alternativos, pode-se multiplicar esse número por cinco. Seriam então 6.000 faixas. Sinatra fez também 54 filmes e cantou em quase todos -essa produção chega a mais 160 faixas. Há também os milhares de programas de rádio e TV, que ele manteve durante anos, e os shows em boates, cassinos e estádios -quase tudo foi gravado, e não há mídia que comporte esse material.
Entre cada disco, filme ou show, Sinatra fez política, apoiou presidentes, meteu-se com a máfia e namorou o fino das mulheres -Ava Gardner, Lana Turner, Eva Bartok, Marilyn Monroe, Natalie Wood, Lauren Bacall, Judy Garland, Marlene Dietrich, Grace Kelly, Kim Novak, Angie Dickinson, Janet Leigh, Virna Lisi, Jacqueline Kennedy, muitas mais. Será que tinha tempo para passar o dia tomando banho?
Mas, então, em 1976, Frank se casou com Barbara. Ele, 61; ela, 50. Nos 22 anos que levaram casados, e já semiaposentado, até morrer, em 1998, ele pode ter optado pelos 12 banhos diários.

Chutar o balde da ética e pisar na jaca da gestão - JOSÉ NÊUMANNE

Vão muito além das licenciosidades com a regência verbal cometidas no texto da professora Heloísa Ramos no compêndio Por uma Vida Melhor os desafios enfrentados pela "última flor do Lácio, inculta e bela" mercê da novilíngua implantada pelos militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder. Ainda não deu para perceber direito, mas o recente escândalo do recorde de velocidade de enriquecimento pessoal e desempenho empresarial que derrubou Antônio Palocci da chefia da Casa Civil exigiu um esforço criativo extraordinário para definir em palavras, ou expressões, e explicar com base em conceitos republicanos nos textos o êxito de Sua Excelência como consultor. Não há verbos disponíveis para dar cabo da frequência com que o ex-poderoso varão foi acusado à exaustão de repetir práticas inconvenientes. Nem adjetivos que possam sintetizar o eterno retorno dele, que certamente embatucaria Heráclito de Éfeso, ao mesmo local do, digamos, "descuido".

O doutor foi guerrilheiro, mas não há notícia de memoráveis feitos militares em sua juventude. Mais notoriedade ganhou quando foi acusado pelo ex-assessor Rogério Buratti de ter recebido propina mensal de R$ 50 mil da empresa Leão&Leão em troca de favorecimento da mesma em licitações em sua primeira gestão na prefeitura de Ribeirão Preto, de 1992 a 1996. Médico sanitarista de ofício, destacou-se na República como fiador do compromisso do candidato do PT à Presidência da República pela quarta vez consecutiva, em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, com a estabilidade financeira e o rigor fiscal. Guindado à cúpula da campanha vitoriosa e, depois, feito todo-poderoso ministro da Economia no primeiro mandato presidencial do ex-líder metalúrgico, foi apontado como um dos frequentadores de uma mansão alugada para promover festas e outras atividades estranhas à gestão econômica. Negou sua presença, mas caiu no descrédito quando ela foi atestada pelo caseiro Francenildo Santos Costa. A acusação de ilícito aposentou o verbo reincidir para definir o feito. O prefixo re, usado para denotar repetição, já não se adequava à tentativa de desqualificar o depoimento da testemunha, crime contra o mais sagrado direito da cidadania, a igualdade. A cruel lambança valeu-lhe cargo e poder, mas não lhe custou pena alguma.

Os antigos romanos, dos quais os modernos petistas apreciam além da conta o conceito conveniente de que a dúvida sempre beneficia o réu, no caso destes apenas os réus companheiros (aos adversários eles reservam o agravamento da suspeita para a culpa), diziam há 2 mil anos que "errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico". Não passou pela cabeça privilegiada dos varões de Plutarco que uma pessoa honrada viesse a cometer o terceiro erro consecutivo, não por acreditarem no primado da virtude sobre a tentação do pecado, mas por se sentirem protegidos pela instituição sagrada da res publica (coisa pública). De patrício nenhum se admitia que fosse mais diabólico do que o próprio diabo ao se negar a preferir o erro ao acerto mais de uma vez.

Os súditos de Júlio César, de cuja mulher se exigia que parecesse honesta, não bastando sê-lo, não tiveram premonição nem imaginação suficientes para prover os costumes políticos de um brocardo próprio para os maiorais da República lulopetista. Estes reivindicam o benefício da dúvida sem a contrapartida da obrigação de exalar virtude, além de praticá-la, para que ninguém ponha reparo em suas atitudes. A Luís de Camões, fundador da língua que o pregador padre Antônio Vieira ajudou a tornar pátria, com o reconhecimento do poeta Fernando Pessoa, também faltou imaginação para forjar na fornalha do galaico-lusitano um verbo que admitisse o terceiro erro seguido, o pós-reincidir. Já que, convenhamos, não seria bastante usar o prefixo que designa a terceira vez no neologismo tri-incidir, de vez que esse mostrengo esgotaria suas forças retóricas na esponja que o PT, Lula, Dilma e o mercado ansioso pelas portas que o sanitarista lhes abre dando acesso aos subterrâneos palacianos passaram nos três escândalos por ele protagonizados.

Pois, por incrível que pareça, depois de passar quatro anos no doce exílio da Câmara dos Deputados, período em que os conselhos que deu aos barões dos balcões multiplicaram seu patrimônio por 20, o ex-prefeito e ex-czar da economia, temperado na cúpula da eleição vencida, tetraincidiu. Nem os delírios das noites de tempestade ou a saudade da pátria na Goa distante fariam o soldado caolho imaginar a possibilidade de alguém cair tantas vezes e depois mais vezes ainda ser içado de volta à tona.

O vernáculo tem sofrido com os abusos que lhe têm sido impostos pelos lulopetistas e com o esforço de guias geniais dos povos que repetem o mesmo engano para torná-lo um triunfo sobre a opressão da exaustiva necessidade de acertar. Mas muito mais do que a murcha flor latina, aqui se violentam os bons costumes republicanos, renegados e triturados na prática política da barganha amoral e interesseira. Pior do que violar a gramática é chutar o balde da ética e pisar na jaca das boas práticas de gestão.

A saída de Palocci da chefia da Casa Civil evita a corresponsabilidade de Dilma, ao contrário do que imaginava o nefelibata Cândido Vaccarezza, ao renegar o óbvio de que a informação transmitida a ela das suspeitas sobre o importante assessor a tornaria refém do que contra ele se provasse cada dia que passasse a mais como subordinado dela. À presidente da República cabe exercer o poder delegado pelo povo de maneira soberana, mas com a inevitável contrapartida da onerosa responsabilidade partilhada. O desgaste político do protagonista do escândalo fê-la adotar a antiga prática de que qualquer suspeito deve ser afastado de seu posto de mando até provar a própria inocência nos delitos de que é acusado, inversão do conceito do benefício da dúvida que restitui ao cidadão o poder de seu voto.