quinta-feira, 5 de maio de 2011

Escritor de imagens e sombras

Por Sérgio Augusto em 3/5/2011

Reproduzido do Estado de S.Paulo, 1/5/2011; intertítulos do OI

Reza a lenda que Saul Steinberg (1914-2003) ou tentou em vão arrumar emprego no jornal O Globo ou chegou a colaborar com o diário carioca mas não agradou e foi demitido. Até prova em contrário, é lenda. Ao que eu saiba, o genial humorista e artista gráfico romeno só veio ao Brasil para uma exposição de sua obra no Museu de Arte de São Paulo, em 1950. De qualquer modo, se não foi exatamente aqui que Saul Steinberg iniciou sua carreira jornalística no continente americano, foi para uma aventura editorial carioca que desenhou sua primeira capa de revista, justamente a do número de lançamento de Sombra, que chegou às bancas em dezembro de 1940, cinco anos antes de sua primeira capa para a revista The New Yorker, veículo que o consagrou mundialmente.

Uma pessoa de perfil em primeiro plano a saborear um sorvete, tendo ao fundo um homem a cochilar debaixo de vários guarda-sóis. Rio, verão, preguiça, sombra & água fresca – mesmo à distância, Steinberg pegou bem o espírito da coisa. A capa foi um sucesso.

Panfletos desenhados

Publicação bimensal para grã-finos da zona sul carioca, graficamente ousada e com colaboradores de alto coturno, como Stefan Zweig, Mário de Andrade e Augusto Frederico Schmidt, Sombra só não revelou o traço de Steinberg deste lado do Atlântico porque desde o ano anterior seus desenhos já circulavam em revistas argentinas, importadas pelos irmãos Victor e Cesare Civita, futuros fundadores da Editora Abril, primeiro em Buenos Aires, depois em São Paulo. Na época, o desenhista ainda morava na Itália, de onde só conseguiria fugir da perseguição fascista aos judeus em 1941.

Como outros romenos fora de série (Tzara, Brancusi, Ionesco, Eliade, Cioran), Steinberg viveu e se impôs culturalmente no exílio. Romênia? “Puro dada”, respondia, invocando Tzara, inventor do dadaísmo, abstendo-se de entrar em detalhes. Queria ser escritor, mas desistiu por causa da língua: “Ninguém lê romeno”. Os outros foram para Paris, viver e escrever em francês; ele preferiu a Itália.

Do pai impressor, encadernador e fabricante de caixas de papelão em Bucareste herdou o fascínio por papel, rabiscos, marcas e carimbos. Encaminhado para a engenharia, diplomou-se numa universidade milanesa, mas nem chegou a exercer a profissão. Em Milão, onde viveu oito anos, descobriu sua real vocação, bolando cartuns para a revista humorística Bertoldo, e sentiu na pele a repressão, relembrada em minúcias e com humor no livro Reflexos e Sombras, que Samuel Titan Jr. traduziu para o Instituto Moreira Salles e servirá de catálogo de uma exposição do artista (leia abaixo).

Fruto de conversas gravadas pelo também desenhista e escritor italiano Aldo Buzzi, na década de 1970, Reflexos e Sombras teve seu título inspirado numa série de desenhos de “sombras e imagens refletidas”, que Steinberg publicou na New Yorker em 1977. É um livro de memórias, desde a infância na Romênia (por ele comparada à de um negro no Mississippi) à consagração na América, acrescidas de observações e reflexões sobre o ofício de cartunista, o mundo artístico e o mercado de arte.

Na primeira tentativa de desembarcar em Manhattan, Steinberg foi barrado. A cota de imigrantes estava provisoriamente esgotada e ele se instalou por uns tempos em Ciudad Trujillo, atual Santo Domingo, na República Dominicana, onde aproveitou para aprender inglês, lendo Huckleberry Finn, de Mark Twain. De lá enviou desenhos para a New Yorker e, por intermédio de seu editor, Harold Ross, conseguiu o tão esperado visto. Naturalizado americano em 1943, serviu no setor de inteligência da Marinha, desenhando panfletos antinazistas para fomentar a resistência alemã. Ainda batia continência quando produziu suas primeiras “reportagens gráficas” (sobre a Índia, China e Norte da África) para a New Yorker.

Searas distintas

Sua paixão pela América foi fulminante; em particular por Nova York, com seus arranha-céus art déco e seus táxis que mais pareciam um juke-box sobre rodas, tão multicoloridos eram na década de 1940. Sua criação mais conhecida – o mundo visto a partir da Nona Avenida de Manhattan –, capa da New Yorker e depois pôster parodiado e copiado no mundo inteiro, sintetiza à perfeição o seu encanto pelos Estados Unidos, que procurou conhecer de perto, percorrendo o interior do país, para apreciar os caipiras (“a burguesia das cidades, essa está em toda parte, e é sempre igual”) e enriquecer seu acervo iconográfico. Paradas patrióticas, caubóis, peles vermelhas, bruxas de Halloween, estações de trem, quadrinhos, o coelho da Páscoa, o peru do Dia de Ação de Graças, Tio Sam, Mickey, Lincoln, a Estátua da Liberdade – foi em boa parte brincando, respeitosamente, com esses emblemas da cultura americana que Steinberg desenvolveu sua singular sintaxe visual.

“A América parece ter sido inventada para ele”, disse o grande crítico de arte Harold Rosenberg, o primeiro e mais poderoso padrinho de Steinberg na costa leste – e também o primeiro a defini-lo como um “escritor de imagens, um arquiteto da fala e do som, um desenhista de reflexões filosóficas”.

Aforista do traço e reificador cômico do alfabeto, da palavra e da gramática, que de uma simples linha tanto podia extrair uma corda de roupa como um horizonte, uma ponte ferroviária ou uma mesa, seu grafismo lacônico, alternadamente figurativo e abstrato, irônico e satírico, grotesco e cubista, meio Grosz, meio Klee, meio Miró, arrebatou todos os grandes artistas plásticos do seu tempo e uma legião de críticos, historiadores e intelectuais do porte de E. H. Gombrich (para quem Steinberg conhecia melhor do que ninguém a filosofia da representação), John Hollander, Italo Calvino, Michel Butor, John Updike e Arthur C. Danto. Referência e mestre de André François, Tom Ungerer, Millôr, Jaguar e toda a geração do Pasquim, Steinberg influenciou até artistas de outras searas, como o escritor francês Georges Perec, que teve o estalo de A Vida – Modo de Usar ao ver um desenho (Art of Living) do cartunista, mostrando simultaneamente tudo o que sucede no interior de um prédio de apartamentos.

Se tivesse escolhido o Brasil para viver, só não estaria na revista Piauí desde o primeiro número porque morreu três anos antes de ela ser lançada.

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