sábado, 9 de abril de 2011

Novo calor - Arthur Dapieve

A reunião atingira o objetivo de toda reunião: a perpetuação da sua própria espécie, ou seja, a marcação de outra reunião. Eu caminhava pela João de Barros na direção da Bartolomeu Mitre distraído, nessa filosofia sem botequim, quando um carro veio devagar, cruzou a rua e parou um pouco adiante, na General Urquiza. Da janela do carona, um rapaz de barba rala botou meio tronco para fora e disse: "Ô Dapieve..."

Tomei um susto naquele fim de tarde, dois ou três anos atrás, e prestei atenção. "Ô Dapieve...", ele repetiu. O tom era íntimo, quase carinhoso, mas indubitavelmente de reclamação. Imaginei que fosse se queixar do excesso de referências ao Botafogo ou de alguma sacaneada no presidente Lula. "Sou seu leitor", o rapaz prosseguiu. "Queria te dizer pra escrever sobre música brasileira. Você não escreve sobre música brasileira..."

Era uma coisa estranha de se dizer para quem na época, além de artigos no jornal, já tinha um livro sobre rock brasileiro dos anos 80 e outro sobre Renato Russo, mais os textos da fotobiografia dos Paralamas do Sucesso, do Maurício Valladares. De qualquer forma, estava fora de cogitação comentar minha bibliografia no meio da rua. Levantei o polegar e fiz sinal de positivo. Aquilo era estranho, mas não surpreendente.

Uma quantidade frustrante de gente de todas as idades tem uma concepção muito estreita do que pode ser música brasileira. Pode MPB, samba, choro, caipira, axé, ritmos folclóricos, vale até o latino bolero. Entretanto, dependendo do grau de xiismo, mesmo a bossa nova continua sub judice. Tom Jobim, afinal, foi "acusado" de não fazer música brasileira. Não, não pode jazz, rock, funk, rap, eletrônica ou sertanejo. Em suma, nada que cheire, ainda que cada vez mais remotamente, a influência da música americana. Talvez essa pseudo-ortodoxia nada mais seja do que outra forma de antiamericanismo.

No caso do rock, porém, o cisma também foi alimentado, por razões diferentes, pela própria galera que surgiu na década de 80. Acreditava-se, então, que era necessário passar cerol na "linha evolutiva da MPB", de modo a marcar uma distância punk-crítica dos astros da década anterior. Depois, esse confronto geracional foi-se abrandando, conforme o BRock amadureceu e incorporou ritmos de origem não-americana. Coisa que, aliás, Roberto Carlos e os Mutantes já haviam feito na década de 1960.

Existem poucas músicas tão visceralmente brasileiras quanto "Perfeição", o anti-hino nacional que a Legião Urbana gravou em 1993, num disco chamado, ora veja, "O descobrimento do Brasil". No entanto, lembro-me de uma entrevista que fiz no ano seguinte, na qual Renato Russo se queixou, daquele seu jeito às vezes meio cômico, de um papo que ouvira entre alguns pirralhos. Eles discutiam se Legião era rock ou MPB. Concluíram que rock era Pantera - uma banda americana de metal, tão expressiva que hoje precisa ser lembrada assim, entre travessões - e que Legião era MPB. "Eu não entrei numa banda de rock para acharem que faço MPB!", irritava-se Renato.

As duas lembranças, a do encontro nas ruas do Leblon e a da entrevista num apartamento de Ipanema, voltam-me à cabeça a propósito do segundo disco solo de Marcelo Camelo, o recém-lançado "Toque dela" (Universal/Zé Pereira). Será que alguém, seja qual for a geração, vai perder tempo discutindo se é rock ou MPB? Espero que não. Inclusive porque o disco é rock e MPB e, talvez, mais alguma coisa que ainda não estejamos aptos a definir. Um caminho natural para quem é egresso de uma banda de rock carioca com nome em espanhol que, nos seus únicos quatro álbuns de estúdio, já misturava rock, hardcore, ska, samba, choro e otras cositas más.

"Toque dela" é um disco de canções. Isso pode soar uma obviedade, mas não é. O solo anterior de Camelo, "Sou/Nós", de 2008, era um disco de climas, apesar de ter ao menos duas grandes canções, "Janta" e "Santa chuva", gravada anteriormente por Maria Rita. Era bom, embora menos focado que "Toque dela", o que se reflete na própria duração, de mais de 55 minutos (contra os quase 42 minutos do novo CD). Era como se, fora do casamento com os Los Hermanos, Camelo experimentasse novas relações. Com o piano de Clara Sverner, com a sanfona de Dominguinhos e, também, claro, com sua namorada Mallu Magalhães. Por sinal, o disco foi um pouco obscurecido pela fofocada sobre o casal, alimentada pelo Bolsonaro que muitos trazem no peito.

"Toque dela", eu dizia, é um disco de canções. Não à moda literária de Chico ou Caetano, mas fragmentadas, dentro do espírito de um tempo computadorizado. O disco abre logo com três excelentes canções. "A noite" traz Camelo acompanhado pela banda de rock que já lhe fornecia um chão em "Sou/Nós", a paulistana Hurtmold. "ÔÔ" tem a melhor declaração de amor do primeiro trimestre: "Tudo que eu fizer vai ser pra ver aos olhos dela". E "Tudo que você quiser" apresenta um bonito solo de acordeom de outro Marcelo talentoso, o Jeneci, que no ano passado lançou "Feito pra acabar".

Nove das dez faixas do novo CD de Camelo incluem ao menos um instrumento de sopro, normalmente todo um naipe. Essa característica às vezes aproxima do Beirut - música americana? balcânica? mexicana? europeia ocidental? quem se importa? - esse Camelo delicado como sempre, senhor de si como nunca. Esta característica sonora dá a "Toque dela" um calor especial.

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