domingo, 27 de março de 2011

China decreta a "morte civil" do Nobel da Paz Liu Xiaobo

El País
José Reinoso

  • Liu Xia, mulher do ativista chinês Lu Xiaobo, ganhador do Prêmio Nobel da Paz 2010 Liu Xia, mulher do ativista chinês Lu Xiaobo, ganhador do Prêmio Nobel da Paz 2010
O regime de Pequim impede as visitas a Liu Xiaobo, o Nobel preso, e mantém sua mulher isolada na casa da família

Quando o comitê do Nobel da Paz concedeu o prêmio de 2010 ao dissidente chinês encarcerado Liu Xiaobo, sua esposa, Liu Xia, ficou totalmente surpresa. Pensava que as pressões diplomáticas que o governo de Pequim havia exercido para evitar que seu marido recebesse o prêmio fossem tão fortes que dariam fruto. Não foi assim. O comitê norueguês resistiu e Liu Xia saboreou naquele 8 de outubro de 2010 os momentos mais doces de sua vida depois de anos de medo, ameaças e separação forçada de seu marido. Nesse mesmo fim de semana, a polícia a acompanhou em visita a ele na prisão de Jinzhou (na província de Liaoning, no nordeste), onde seu marido cumpre uma pena de 11 anos por incitar à subversão contra o poder do Estado.

Mas o que Liu Xia não sabia era que aquele encontro, com o qual as autoridades a afastaram dos focos da mídia internacional, seria o último com seu marido em muito tempo. A ira de Pequim por causa da concessão do prêmio a quem considera um "criminoso" e um "separatista" acabava de condenar a família de Liu Xiaobo a não voltar a vê-lo, e a que sua mulher ficasse presa em sua casa em Pequim sob constante vigilância, isolada do mundo, sem telefone nem Internet.

O governo levantou um muro de silêncio em torno do dissidente e sua família, no que parece ser uma tentativa de fazer que o mundo se esqueça do incômodo Nobel da Paz. As autoridades rejeitaram os pedidos de visita, apesar de que, segundo a lei, ele tem direito a uma por mês. Nem sequer por ocasião das festas do Ano Novo chinês - a grande comemoração familiar neste país -, em fevereiro passado, sua esposa ou seus irmãos foram autorizados a encontrar-se com ele, segundo explica Mo Shaoping, amigo de Liu Xiaobo e diretor do escritório de advogados que o representa.

"Não tenho notícias dele desde o ano passado. Também não posso contatar sua mulher. Liu Xia só conseguiu visitá-lo em uma ocasião depois que o prêmio foi anunciado. A família pediu autorização para o Ano Novo, mas foi negada", explica Mo.

O regime de Pequim parece pensar que quanto menos gente tiver acesso ao premiado, menos se falará dele e maior a probabilidade de que a situação do Nobel caia no vazio, especialmente nestes tempos de revoluções no mundo islâmico, nos quais o que Pequim menos deseja é que a figura do defensor da democracia conserve seu brilho.

"As autoridades levantaram um muro a seu redor para que não possa se comunicar absolutamente com o mundo", afirma Gilles Lordet, coordenador de pesquisa da organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras. "Sua mulher está sob estrita vigilância, submetida a prisão domiciliar, porque pode ser considerada o primeiro contato entre Liu Xiaobo e o mundo exterior. Quando as autoridades chinesas castigam os defensores dos direitos humanos, castigam toda a família", afirma.

Liu Xia, de 51 anos, está detida em sua casa desde que foi anunciado o prêmio, segundo a Anistia Internacional. "Também é uma prisioneira, apesar de não ter sido acusada de nenhum crime", afirma Catherine Baber, vice-diretora da ONG para a região Ásia-Pacífico.

Se nos primeiros dias, depois do anúncio do prêmio a seu marido, ela pôde receber algumas ligações telefônicas e comunicar-se pela Internet, isso durou pouco. Seu número de celular foi desativado e a linha de internet, cortada. Sua última mensagem no Twitter foi enviada em 18 de outubro. Depois, o silêncio.

No final de janeiro, Liu Xia, que é poeta e fotógrafa, recebeu um gesto de graça. Seus vigilantes permitiram que ela saísse para jantar com seus pais, coincidindo com a visita oficial do presidente chinês, Hu Jintao, aos EUA. A medida foi interpretada como uma concessão do governo em resposta às críticas de Washington sobre o tratamento dado a Liu Xiaobo e sua família. Mas rapidamente foi isolada de novo.

Em meados do mês passado, a intelectual deu outra vez sinais de vida, embora de forma também efêmera. Em 19 de fevereiro, o "Washington Post" publicou que Liu Xia havia conseguido manter alguns dias antes uma breve conversa por escrito através da Internet com um amigo, na qual afirmou que se sentia "muito triste" e estava "enlouquecendo". "Só o vi uma vez", contou, aparentemente referindo-se ao marido. "Não posso sair. Toda a minha família é refém. Estou chorando. Ninguém pode me ajudar".

"Liu Xia é uma cidadã normal, não foi acusada de nada. O que estão fazendo é ilegal. Espero que ponham fim a esta situação o mais cedo possível. Quanto mais tempo a retiverem, pior será para a imagem internacional da China. Desejaria que a China fosse um país regido pela lei", afirma Mo.

Seu marido, Liu, 55 anos, escritor e ex-professor, foi condenado a 11 anos de prisão em 25 de dezembro de 2009 por publicar na Internet artigos críticos ao Partido Comunista Chinês (PCCh), e em particular por liderar a redação da Carta 08, um manifesto pacífico divulgado em dezembro de 2008 no qual pede a instauração da democracia, o fim do sistema de partido único, um sistema judiciário independente e liberdade de associação, religião e imprensa.

O documento - inspirado na Carta 77 da antiga Checoslováquia, que levaria anos depois, em 1989, à Revolução de Veludo que derrubou o regime comunista - foi assinado inicialmente por 300 intelectuais, entre eles advogados, professores, jornalistas e artistas.
A transcendência e o impacto da carta abalaram o governo chinês, que iniciou uma campanha de perseguição contra os signatários e levou à prisão seu principal ideólogo como castigo exemplar. Para Pequim, tratava-se de cortar pela raiz qualquer movimento que pudesse pôr em risco o poder absoluto do PCCh e garantir o que considera a estabilidade política e social necessária para continuar com as reformas econômicas e a ascensão da China no cenário internacional. Por isso, quando o comitê do Nobel premiou Liu Xiaobo, os dirigentes chineses reagiram com fúria.

Thorbjoern Jagland, presidente do comitê do Nobel da Paz, afirmou que a honra lhe foi concedida por "sua longa e pacífica luta pelos direitos fundamentais na China", e que é "um sinal de apoio àqueles que lutam na China pelos direitos humanos fundamentais", que são "universais".

Pequim respondeu que a escolha era "uma amostra arrogante de ideologia ocidental", que o comitê havia "violado" a integridade do Nobel da Paz e que se tratava de uma ingerência em seus assuntos internos e uma tentativa de desestabilizar o país para impedir seu progresso. Segundo Jiang Yu, porta-voz das Relações Exteriores, Liu não foi condenado por suas críticas, mas "por organizar e convencer a outros que assinassem [a Carta 08] e fomentar a derrubada da autoridade política e do sistema social da China".

Depois da designação de seu marido, Liu Xia publicou uma carta na qual convidou cerca de cem intelectuais e defensores dos direitos humanos para que fossem à cerimônia de entrega do prêmio em 10 de dezembro em Oslo; mas a maioria foi detida, posta sob vigilância ou interceptada no aeroporto quando se dispunha a viajar.

A cerimônia foi realizada sem Liu, cuja ausência foi representada por uma cadeira vazia, transformada em um poderoso símbolo. Sobre ela Jagland depositou o diploma. Foi a primeira vez em 75 anos que nem o premiado com o Nobel da Paz nem qualquer de seus familiares pôde recebê-lo, desde que em 1935 o regime nazista de Adolf Hitler impediu a presença do pacifista Carl von Ossietzky.

No encontro que tiveram em outubro, Liu Xiaobo disse a sua esposa que dedicava o prêmio às "almas perdidas" na repressão das manifestações a favor da democracia na Praça Tiananmen (1989), que causou centenas de mortes, ou milhares segundo algumas fontes.

Sua luta pela democracia e as reformas políticas granjeou para esse nativo de Changchun, capital da província de Jilin, no nordeste, muitos admiradores dentro e fora da China. Mas também inimigos. Alguns, como os professores universitários em Hong Kong Barry Sautman e Yan Hairong, afirmam que não é merecedor do Nobel da Paz porque "referendou as invasões do Iraque e do Afeganistão e aplaudiu as guerras do Vietnã e da Coreia retrospectivamente, em um ensaio de 2001", segundo escreveram em um artigo publicado em dezembro passado no jornal britânico "The Guardian". Além disso, o consideram extremamente pró-ocidental.

Enquanto isso, no fraturado mundo da dissidência chinesa no exílio, alguns de seus rivais o acusam de utilizar a via da cooperação com o regime para tentar promover uma transição para a democracia de forma "gradual, pacífica, ordenada e controlável", segundo as palavras do próprio Liu Xiaobo. Uma via em que não confiam.

O muro de silêncio em torno do casal Liu não é único. A Chinese Human Rights Defenders (CHRD), uma rede de ativistas dentro e fora da China, afirma que no país asiático se desencadeou ultimamente "uma nova onda de repressão desenfreada", em conseqüência dos apelos na China a concentrações "jasmim", semelhantes às da Tunísia e outros países islâmicos.

A Anistia Internacional concorda. "O governo chinês aumentou os recursos para a repressão, a detenção e inclusive a tortura de ativistas, advogados, jornalistas e outros que somente querem liberdade para expressar sua opinião, que os funcionários do governo respondam por seus atos, e participar do que será seu país no futuro ", afirma Baber.

Os EUA demonstraram esta semana sua preocupação pela "aparente detenção e desaparecimento forçado" e ilegal "de alguns dos advogados e ativistas chineses mais conhecidos", segundo Philip Crowley, porta-voz do Departamento de Estado que citou em particular o desaparecimento do professor de direito Teng Biao e dos advogados Tang Jitian e Jiang Tianyong.

Dezenas de dissidentes foram detidos ou postos sob vigilância nas últimas semanas em todo o país, em resposta às convocações à população chinesa para que se manifeste todos os domingos, realizadas por organizadores anônimos através de um site da web americana. Pequim reagiu às revoluções nos países árabes também com um aumento da censura nos meios de comunicação e na Internet, a mobilização de centenas de policiais nos locais designados para os protestos e restrições de movimento aos correspondentes estrangeiros, que ameaçou de expulsão do país se forem, para informar, aos locais designados para as manifestações.

As recentes detenções se somam às de alguns dos ativistas mais renomados, como o advogado Gao Zhisheng, um defensor de casos delicados que está em paradeiro desconhecido há quase um ano, ou o ativista cego Chen Guangcheng, retido em seu domicílio ilegalmente desde que foi libertado da prisão em setembro passado. Chen foi preso em 2006 depois de provocar a ira das autoridades por revelar numerosos casos de abortos forçados, esterilizações obrigatórias e outros abusos em sua região. Os ativistas e jornalistas que tentaram visitá-lo em sua casa, em uma zona rural da província de Shandong (leste do país), foram atacados por bandidos que controlam o acesso ao povoado, e expulsos.

Policiais e agentes de segurança deram uma surra em Chen e sua esposa no início de fevereiro, depois que vazaram um vídeo gravado em segredo no qual mostravam as estritas condições sob as quais estão detidos em sua casa, segundo a CHRD. No vídeo contam que há mais de 60 pessoas que se revezam para vigiar a residência e dispositivos para anular o sinal do telefone celular. Segundo Chen, só permitem que sua mãe, de 76 anos, compre comida e a leve à casa. Na gravação, sua mulher, Yuan Weijing, fala em voz baixa sobre sua preocupação por seus dois filhos e começa a chorar. "Não me atrevo a falar alto", diz.

Os casos de Chen Guangcheng e Gao Zhisheng foram mencionados junto com o de Liu Xiaobo pela secretária de Estado americana, Hillary Clinton, em um discurso em janeiro passado, antes da visita de Hu Jintao a Washington. Clinton pediu sua libertação. O presidente chinês reconheceu nos EUA que "a China ainda precisa avançar muito em direitos humanos", mas disse que estes devem ser vistos no contexto das diferentes circunstâncias nacionais.

A condenação do prêmio Nobel da Paz parece fazer parte dessas circunstâncias nacionais, e a tentativa de silenciar sua família, também. "O governo chinês provavelmente gostaria que o mundo se esquecesse de Liu Xiaobo ou que pensasse que é um verdadeiro criminoso", afirma Baber. "Mas Liu Xiaobo não é um criminoso e o mundo não deve esquecer que ele falou sistematicamente a favor de uma mudança pacífica em seu país e só pediu que o governo lembre que deve prestar contas a sua população".

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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