domingo, 5 de dezembro de 2010

Uma Dama indócil

Sarah Bernhardt tem a carreira e a vida intensa revisitadas em biografia

05 de dezembro de 2010 | 0h 00

Francisco Quinteiro Pires - O Estado de S.Paulo

Sarah Bernhardt não nasceu para a felicidade. Ela foi feita para o sucesso. Ao se transformar na mulher mais famosa de seu tempo - e na inventora de um fenômeno tão atual, o da celebridade -, a atriz francesa pagou o preço da exposição pública. Cumpriu suas vontades sem submissão. A desobediência, porém, teve a insatisfação como companheira. Para um de seus incontáveis amantes, o ator Mounet-Sully, ela se confessou: "Não é minha culpa que eu sempre esteja à procura de novas sensações e emoções. Meu coração exige excitamento maior do que alguém pode oferecer. Sou uma pessoa incompleta."

Lafayette Paris Private Collection/Divulgação
Lafayette Paris Private Collection/Divulgação

A incompletude se explica no começo de tudo, segundo o biógrafo Robert Gottlieb, autor de Sarah - The Life of Sarah Bernhardt (Yale University Press, 236 págs., US$ 25). Nascida em 1844, a atriz francesa era filha ilegítima de Youle, cortesã de homens influentes, como o todo-poderoso duc de Morny, meio-irmão de Napoleão. Pior que a acusação de ser bastarda foi a rejeição da mãe. Ex-editor-chefe da revista New Yorker, Gottlieb acredita que a falta de amor materno incutiu em Sarah a obsessão por ser o centro das atenções.

A carreira artística foi uma ideia do duc de Morny para se livrar da indomável Sarah. Indicada pelo amante da mãe, ela entra no Comèdie Française, o teatro mais importante de Paris. A magreza, a palidez e a baixa estatura não agradaram ao diretor da casa. Os gestos voluntariosos logo provocaram a sua expulsão. Tempos depois, ela se integrou ao Odéon. Nesses teatros, aprendeu a arte de interpretar sem obedecer a regras - ao contrário da contenção recomendada no palco, ela transbordava emoção, erotismo e feminilidade. O maior defeito de Sarah - o caráter indócil e firme - revelou-se a maior qualidade.

Caprichos. Seguindo os próprios caprichos, Sarah Bernhardt inventou o fenômeno da celebridade: os escândalos da vida privada repercutem mais que as realizações artísticas. Segundo Gottlieb, ela gostaria de ser a atriz mais famosa do mundo e ganhar dinheiro com o sucesso. Conseguiu.

A fama se fortaleceu com os boatos sobre a incansável vida amorosa. Com a manipulação de uma invenção recente - a fotografia. As poses para os fotógrafos demonstram o domínio da própria imagem. E com as extravagâncias: o chapéu de morcego empalhado, o caixão mantido no quarto e a criação em casa de um pequeno zoológico com camaleão, crocodilo, filhotes de leão.

Sarah amadureceu, de fato, aos 35 anos. Nessa idade, ela se desligou do Odéon - onde ficou célebre com Ruy Blas, peça de Victor Hugo. Iniciou a primeira das nove turnês pelos EUA, nas quais amealhou fortunas. Pela primeira vez, o biógrafo identifica em Sarah uma preocupação sólida com o ofício. A sua interpretação trágica sem maneirismos se estabeleceu como o padrão para o teatro da época. A maturidade, Gottlieb afirma, levou Sarah a se adaptar a peças de diferentes características: La Dame aux Camélias, Phèdre, Gismonda, La Tosca e Hamlet.

Ela se casou uma vez. A união com Jacques Damala, aristocrata grego que morreu pelo uso de morfina, quase arruinou a vida da atriz. Segundo o biógrafo, o casamento foi o maior erro dela. Um dos modelos de Bram Stoker para inventar Conde Drácula, Damala era uma Sarah de saias em versão exagerada.

Mãe solteira, aos 20 anos ela deu à luz Maurice, criado para ser aristocrata. Muito ligados, os dois só se desentenderam quando do Caso Dreyfus, evento marcado pelo antissemitismo. Maurice defendia a tese da traição à pátria cometida pelo oficial Alfred Dreyfus.

Patriotismo. Descendente de judeus, Sarah a repudiava. Nada poderia irritá-la mais do que ser apontada como antipatriota. Em duas ocasiões, ofereceu provas irrefutáveis de patriotismo. Durante a Guerra Franco-Prussiana, transformou o Odéon em hospital de campanha. Na 1.ª Guerra Mundial, ela se apresentou para os soldados franceses.

Na velhice, arcou com as dívidas do filho playboy, viciado em jogatina. A necessidade de dinheiro, apesar da fortuna gerada pela fama, explica a atuação no palco até o fim.

Em 1905, ao atuar em La Tosca, de Victorien Sardou, no Teatro Municipal do Rio, Sarah machucou o joelho direito em uma cena e nunca mais se recuperou do ferimento. Em 1915, ela decidiu amputar a perna direita, atingida por dores insuportáveis. A coragem de fazer a amputação, segundo Gottlieb, revela o frio realismo com que Sarah se percebia. Foi assim até a morte, em 1923. O funeral de três dias, em Paris, causou agitação comparável ao enterro de Victor Hugo, 40 anos antes. A mulher carente e pecadora se tornara o símbolo de um povo.

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