terça-feira, 21 de dezembro de 2010

2010: o ano em que fomos apresentados a novos dilemas

  • Por Pedro Doria

De vez em quando acontece: vem um ano assim e, do nada, muda tudo. Assim foi 2010. Antes nossa vida digital era uma, agora os dilemas serão diversos. Dentre as muitas novidades do ano, algumas discretamente apontam os rumos futuros da vida em rede. Todas representam dilemas que estamos apenas começando a encarar.

Discretamente como, por exemplo, a questão do conteúdo digital pago. Kindle, iPad e outros tablets são suportes que ficarão cada vez mais comuns. Neles, muitos consumidores já compram livros, revistas, jornais, séries de TV. Depois de comprado, no entanto, de quem é aquele produto?

A pergunta engana em sua simplicidade. Por duas vezes, em 2010, a Amazon avaliou ser seu direito entrar no Kindle de seus clientes e apagar de lá livros que já haviam sido comprados.

No primeiro caso foi por erro seu. Pôs à venda sem ter o direito de fazê-lo uma edição eletrônica de 1984, clássico de George Orwell. No segundo episódio, semana passada, atacou alguns romances eróticos que tinham por tema o incesto. Alegou que o conteúdo é ilegal nalguns cantos.

No mundo físico, seria como se o dono da livraria entrasse em sua casa, tirasse um livro da estante, devolvesse o dinheiro e fosse embora. No mundo digital é fácil fazer. Todos que produzem conteúdo – e isso inclui a nós, jornalistas – querem encontrar uma maneira de vender informação digital. Mas ainda não se deixou claro o que está a venda. É o livro de fato? O direito de lê-lo? É como se fosse um aluguel, algo que expira após um tempo, é posse perpétua?

Discutiremos muito essa questão nos próximos anos. E a Amazon não será a única revendedora que, em alguns momentos, se verá tentada a apagar aquilo que vendeu.

Outra questão nova é a TV via internet. Finalmente aconteceu. Não foi obra de uma máquina. A nova Apple TV não é um sucesso. Os aparelhos de Google TV tampouco estão sendo bem recebidos. Porém a locadora virtual americana Netflix está agitando o mercado. Quase todo aparelho que liga a TV à internet, nos EUA, tem Netflix. E os usuários estão alugando filmes e baixando via rede alucinadamente.

O sucesso da Netflix já despertou uma discussão e despertará outra. De início, há um conflito entre locadora e os provedores de banda larga. Quem vende acesso à internet reclama que a Netflix força um tráfego muito pesado e deveria pagar um dinheiro extra pelo direito de explorar a internet de forma assim tão intensa. Tem uma esperteza no argumento: provedores de banda larga, não raro, também vendem TV a cabo. E já tem gente cancelando o serviço porque pode ver o filme ou série que quiser pagando apenas pelo que consome, se abstendo do pacote completo.

É o que leva à segunda questão da TV digital. O negócio da televisão vive de impor uma grade rígida que tem horário nobre, horário para crianças, horários tantos que fatia e revende aos anunciantes na forma de intervalos comerciais. Um Netflix quebra a grade e desmonta seu modelo de negócios. Vai haver resistência, e resistência dura.

Até agora, a TV aberta é a única mídia que não sofreu muito o impacto da internet. Acabou a calmaria.
E há o caso do WikiLeaks. O vazamento mais famoso feito pela imprensa no período anterior à internet ocorreu em 1968, quando o New York Times publicou uma série de reportagens baseadas num conjunto de documentos conhecidos como os Papéis do Pentágono. Eles provavam que o governo americano já sabia que a Guerra do Vietnã ia mal enquanto dizia o contrário para a população. O presidente mentia.

Ao menos por enquanto, os documentos vazados neste pacote do WikiLeaks mostram só como a salsicha da diplomacia americana é feita. Bonito, não é. Mas tampouco há qualquer coisa de aterradora, que mude de todo nossa percepção do que acontece.

Não importa. Com ou sem WikiLeaks, haverá, no futuro, um ou mais sites na internet publicando segredos vazados aos borbotões. Uns serão responsáveis, outros não. Uns servirão a vinganças pessoais, outros ao interesse público. Viveremos numa sociedade mais transparente e isto afetará diretamente a maneira como governos e empresas funcionam. Seremos mais paranoicos com segurança a princípio. Depois regras mudarão. Provavelmente um dia nos acostumaremos.

Ou não. Existe sempre a possibilidade de o governo americano, que controla o Icann, órgão gestor da internet, intervir. Os EUA nunca se sentiram tentados a intervir agressivamente na gestão da rede porque governos estrangeiros e empresas reagiriam imediatamente. Mas e se, e esta é apenas uma hipótese, quase todos os governos estrangeiros concordarem que algum tipo de controle é necessário?

Aí, pela primeira vez, uma exceção seria aberta. A censura seria instituída na internet, programada em sua estrutura.

Dilemas não nos faltam. Já estavam insinuados antes, mas em 2010 se impuseram definitivamente. E continuaremos agora a seguir nosso caminho, construindo uma nova cultura, uma nova realidade cada vez mais distinta daquela que existiu antes da grande rede. Que tenhamos, todos, um bom ano novo.

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